06 maio 2005

Bom Dia, Noite



Nota: 7,5

A Itália, Estado laico - já que em 1978 o Catolicismo deixou de ser o credo oficial do país -, abriga no coração da sua capital o epicentro da religião. O fato do Vaticano se situar em Roma cria uma dicotomia nacional que hoje se acentua. A direita política se rende, no pedido de renúncia do primeiro-ministro Silvio Berlusconi, aos anseios populares. É o mesmo povo que corrobora em festa o conservadorismo da Igreja Católica, oficializado com o novo papado de Bento XVI.

Curiosa coincidência que chegue ao Brasil, neste momento, Bom dia, noite (Buongiorno, notte , 2003). Isso porque o filme de Marco Bellocchio trata justamente, nas suas entrelinhas, do conflito entre a consciência política e a culpa cristã.

A história se baseia na trajetória real de Aldo Moro (1916-1978), presidente do Partido Democrata Cristão da Itália no emblemático 1978 - ano em que João Paulo II assumiu como papa. Moro foi sequestrado pela Brigada Vermelha e mantido sob cativeiro por 55 dias, tempo em que os raptores comunistas aguardaram uma revolta popular que não veio.

Anna Laura Braghetti, única mulher no grupo dos sequestradores, deixou a prisão em 1994 e escreveu em conjunto com a jornalista Paola Tavella o livro Il prigioniero (O prisioneiro), que deu origem a este filme. Bellocchio também se escora nas cartas deixadas por Moro para construir o roteiro, mas são as experiências de Anna Laura - transformada em Chiara na trama com toques de ficção - que se destacam aqui.

No começo parece que Chiara (a atriz Maya Sansa) encampa a idéia do sequestro apenas para acompanhar o namorado monossilábico. É ela quem trabalha numa biblioteca enqanto os outros sondam Moro. É ela, a única com saída para o mundo, que traz o jornal - arrancado de sua mão assim que ela adentra o apartamento-cativeiro.

É nessa mulher, mero peão na BV, que o conflito principal aflora. Os dilemas psicológicos são introduzidos escrupulosamente por Bellocchio na forma de símbolos de tradição cristã. No Réveillon, Chiara se enamora. A ofensiva contra o presidente acontece ao mesmo tempo em que ela deve cuidar do bebê da vizinha. "Criar" um preso político, subentende Bellocchio como se estivesse ao ouvido de Chiara, equivale à maternidade.

A comunista não duvida dos seus ideais, mas as palavras conciliadoras de Moro, como uma súplica de piedade diante da fatalidade à vista, começam a se chocar na cabeça de Chiara - momentos pontuados pelos tensos acordes de Shine on you crazy diamond do Pink Floyd (canção que pode soar deslocada mas se encaixa muito bem). O que pesa mais? O perdão cristão ou a idéia comunista de que a vida é menor diante do bem do proletariado? A penumbra que se forma ao redor da cabeça da moça quando ela espreita no cubículo de Moro - retrato de luz quase renascentista - se assemelha muito a um confessionário.

Isso pode ser apontado como uma deficiência do filme: diante de Chiara todos os outros personagens parecem rasos, ingênuos ou automatizados. Dá para ver de outro jeito também: privilegiando-a, com rigor e objetividade, resumindo os dilemas da Itália nessa mulher, Bellocchio não deixa o espectador se dispersar com pormenores.