06 maio 2005

A Corporação



Nota: 10

Lá pela metade das 2h20 de A Corporação (The Corporation, 2003), um caso engraçado - não fosse trágico - resume tudo.

Um grupo de ativistas do movimento ambiental Earth First certa manhã invade a casa do então conselheiro da Shell, Mark Moody-Stuart, para piquetear em seu quintal. Pendura faixas no telhado: "Assassino". O executivo e a sua esposa não chamam a polícia, mas saem de casa para conversar com os revoltosos. Moody-Stuart, carismático (tanto que ganhou o título de Sir da realeza britânica) nos seus sessenta anos, se aproxima como quem quer entender o motivo de tamanho ódio. Explica que não toma decisões empresariais sozinho. A sua esposa serve chá no que já virou um piquenique. "Desculpem, mas não temos leite de soja", diz sorrindo.

Os manifestantes confessam que não odeiam Mark Moody-Stuart, mas a corporação que ele representa.

Assim, é o conflito entre o interesse público e o privado que enfocam os diretores Jennifer Abbott e Mark Achbar. O documentário canadense começa de maneira exemplar. Toma-se o exemplo de uma brecha legal na Constituição dos Estados Unidos que, num processo em 1886, definiu que uma empresa pode ser julgada como um indivíduo. Formou-se, na prática, o conceito de pessoa física e pessoa jurídica. Pronto. O homem de negócios se exime de culpa social - e de responsabilidade ambiental - por trás da jurisprudência que vigora não sobre ele, mas sobre a companhia.

Afinal, toda corporação nasceu para produzir e lucrar. O problema - apontam os diretores com sustento em várias entrevistas de CEOs, pensadores e ativistas, sempre dos dois lados - é que as pessoas atribuem às empresas características humanas. A loja de produtos naturais Body Shop é enérgica, saudável. O McDonalds é jovem, feliz. Pior do que isso: atribuem à iniciativa privada a função de administrar a vida pública. Não é difícil adivinhar que uma coisa é incompatível com a outra. Entende por que tanta gente diz "não à privatização"?

A Corporação trata desse assunto e o aprofunda. Discute como a publicidade e a manipulação da mídia - com exemplos bem fundamentados, nunca retóricos - forjam no imaginário popular as empresas como símbolos humanos. Analisa todos os desdobramentos desse mal-entendido mundial, como o caso de vacas com mamas gigantescas que contaminam o seu leite com o pus da agressão genética da Monsanto. E acaba profetizando o apocalipse. Um caso em que uma empresa de pesquisa embrionária conseguiu patentear um segmento de DNA abre perigoso precedente: até a vida virou produto.

Baseado no livro The corporation - the pathological pursuit of profit and power, de Joel Bakan (também roteirista), o documentário pode parecer um tanto acadêmico nesse seu exercício tese-demonstração. Na verdade é acadêmico sim, mas no bom sentido, complexo e didático, nunca maçante ou omisso.

Isso não quer dizer independente. Jennifer Abbott e Mark Achbar não são documentaristas clássicos, observadores imparciais. Eles tomam posição desde o início, subjetivamente, na narração em off coberta por imagens pró-ambiente - água, ar, mãos enfiadas em montes de sementes orgânicas, livres de impurezas corporativas.

O lance é que esse compasso, quase um mantra do bem, não nos é oferecido de forma camuflada. No fim do filme, como no desfecho de Fahrenheit 11 de setembro (2004), somos chamados a agir, literalmente. A diferença de A Corporação para Michael Moore e os outros cineastas panfletários que andam na moda é o seu compromisso com provas, não só com o convencimento.