Um Filme Falado
Nota: 7,5
Um gênero cinematográfico que remonta às origens do cinema é o travelogue. Trata-se do registro de viagens e lugares notáveis, com a declarada intenção ilustrativa de apresentar as localidades filmadas a um público ávido por informações sobre outros lugares, algo que só a recente arte do cinema poderia então suprir, muito melhor do que os simples registros fotográficos e muito mais barato do que as perigosas e caríssimas viagens propriamente ditas. Um Filme Falado começa como um travelogue: Rosa Maria (Leonor Silveira, exultante como sempre) acompanha sua filha de sete anos, Maria Joana, por um cruzeiro marítimo pelo Mediterrâneo, e vai narrando à menina todas as marcas do tempo que ficam na História e compõem a geografia: monumentos, lugares, templos. Uma fórmula, talvez: entramos num país, a câmera filma um sítio histórico, a mãe apresenta-o à filha, didaticamente, e a menina começa uma saraivada de perguntas. Uma fórmula ou antes a exposição das regras do jogo? A clareza para com o espectador, constante eterna dos filmes de Oliveira, encontra aqui uma devoção e uma emoção novas: o diretor parece ele mesmo querer guiar as novas gerações para nos fazer notar, tal como Napoleão fez outrora com seus comandados, que séculos e séculos nos contemplam.
Começamos em Portugal. De lá, um monumento em homenagem ao infante Dom Henrique inicia uma série sobre a história portuguesa (a batalha de Alcácer-Ceguer). Mas daí se inicia uma outra, mais espectral: paralelamente à história concreta e tangível dos lugares, Manoel de Oliveira tem prazer em nos apresentar e nos fazer crer que outra história, fluida e invisível mas não menos concreta (de fato, parece que ela é o cimento que faz com que os lugares assumam a forma concreta). Essa história é a das lendas, das sereias, dos mitos e das crenças. O Castelo do Ovo em Nápoles é sustentado por um mito, assim como a lenda de que numa manhã de nevoeiro a alma do Infante Dom Henrique tomará forma e voltará a Portugal. Fugimos logo dos registros factuais de lugares para entrar num tecido mais denso da História, o das práticas humanas e de suas tentativas de explicação para fenômenos que não conhecem na totalidade.
Mas o cruzeiro há de continuar: passamos por Marselha, França, onde o navio recolhe Delphine, uma poderosa empresária (aliás Catherine Deneuve) e onde somos apresentados a uma digressão sobre o poder do petróleo no mundo, sobre guerras e sobre como a história sempre caminha para a frente (é em Marselha que a França estoca petróleo emergencial em caso de guerra). Passamos por Nápoles, Itália, onde sobe ao navio a atriz e modelo Francesca (Stefania Sandrelli), e onde observamos as ruínas de lugares históricos, como o Vesúvio (digressão, naturalmente, sobre a vontade divina em punir, o bem e o mal, etc.). Depois, a Grécia, onde vemos entrar no navio a cantora Helena (Irene Papas), e onde visitamos Atenas, berço da civilização ocidental, e conversamos sobre a Igreja Ortodoxa, sobre deuses e templos, teatros e democracia. A primeira parte do filme obedece à lógica de uma tele-aula histórico-filosófica: contemplamos os lugares, observamos a distância histórica que nos separa dos tempos passados (a fascinação de Oliveira por tudo que é da natureza da ruína não dos dá chance de não atentar para isso) e extraímos ensinamentos daquilo que vemos e aprendemos. Não exatamente um travelogue, mas um travelogos: o que importa aqui é menos o pitoresco da viagem do que a densidade da História que se pode transmitir, o poder que é a passagem do conhecimento de um pai para um filho, de um emissor (um diretor) para um receptor afetivo (seu público), a força que é fazer um “filme falado” para engajar a mais nova pétala de flor (uma menina de sete anos) na História de um mundo que é seu (o Velho Mundo, bem entendido).
A segunda parte do filme perspectiva e amplia a primeira. Depois de vermos a História inscrita in loco a ferro e fogo, vem a reflexão. Dentro do navio, sentam-se à mesa o capitão John, um americano (John Malkovich), e as três celebridades de cada nacionalidade (francesa, italiana, grega) que vemos entrar no navio a cada parada. Cada pessoa fala sua própria língua, mas como por milagre todos se entendem perfeitamente. Muito corteses e galanteadores entre si, discutem sobre filhos (a continuidade da História), sobre grandes empreendimentos e por fim chegam à questão da tecnologia e do modo como a tecnologia define o ocidente e instaura um cisma em relação ao oriente. Terreno mole onde se imbricam política, cultura e filosofia, a discussão só pode se terminar por um clamor de compreensão mútua e o nascimento de valores convergentes que possam reaproximar os dois grandes e separados blocos terrestres. Não que Manoel de Oliveira busque aqui uma saída redentora de boa consciência: ele é o primeiro a saber que a História não se joga com benevolência e boas intenções (a cena em que Leonor Silveira não consegue explicar à sua filha o porquê de pessoas civilizadas matarem umas às outras – “É de sua natureza”; “Mas o que é ‘sua natureza’?”) é particularmente pungente e graciosa). Resta ao menos a tentativa de construção de uma ponte entre culturas – algo que parece ser fortemente a aposta central do filme.
A partir daí o tecido fica intrincado. Passeamos pelo Egito, pela Turquia e por Aden. Só então a personagem de Leonor Silveira ganha dimensão e passado: ela é casada com um piloto de avião, e vai aportar em Bombaim, Índia, onde vai encontrá-lo, e de lá partirão juntos em férias. John Malkovich chama-a à mesa com suas outras amigas, e em cinco continuam a prosa do dia anterior. Curiosamente, o inglês passa a ser o esperanto o grupo, o que permite algumas reflexões sobre a língua inglesa, a colonização cultural americana, o poder da língua portuguesa no mundo (está nos cinco continentes) e a relativa fraqueza da língua grega, restrita unicamente à Grécia, mesmo tendo sido uma raiz decisiva de quase todas as línguas ocidentais. Um fato curioso é que, mesmo que falem em continuidade, a única pessoa que deixa descendência é Leonor Silveira: todas as outras mulheres não tiveram filhos, e o único laço amoroso do capitão John é com o mar.
Manoel de Oliveira encara o terrorismo não como um deus ex machina apocalíptico e muito menos como um ato repreensível do ponto de vista da civilização. Trata-se de apenas mais um episódio daquilo que é “humano, demasiado humano”, a eterna luta pela sobrevivência e para o subjugo do outro. Mas, do ponto de vista de outra civilização, a da continuidade dos saberes através das letras e da passagem de vivência e informação (esse é o real sentido do título do filme, um filme falado), o que resta é um clamor para que o mundo se veja como uma verdadeira comunidade global, e para que, unido, supere seus problemas, como na babel imaginária que compõem Malkovich, Irene Papas, Catherine Deneuve e Stefania Sandrelli, culturas e línguas diferentes falando diferentes linguagens e se entendendo mutuamente. Oliveira é e sempre foi um cineasta da história. Diversos de seus filmes são estudos de caso que tentam entender a História e revelar a seus espectadores essa maravilhosa e fantasmagórica dimensão do homem no tempo. Um Filme Falado é menos isso do que um testemunho diante da História, como uma grande escultura, um monumento que abre a boca num último clamor diante da barbárie que bate à porta. Materialista e sem pressupostos de moral, Oliveira entrega sua mensagem universalista ao mesmo tempo em que renova sua profissão de fé no cinema como arte inclusiva (catalisadora de todas as artes) e perspectiva (faz refletir sobre todas elas e sobre si própria). A mesa das atrizes, para além de toda construção temática, é ela própria uma forma de dizer que o cinema é um monumento histórico tão grande quanto as ruínas de Pompéia ou o Partenon, Nápoles ou Constantinopla. Várias camadas de História se fazem presentes num filme de Oliveira, e a passagem entre elas é que compõe toda a beleza que jamais nos deixa de maravilhar, como nos maravilha a história e o humano em geral. Um Filme Falado adiciona à fórmula a contundência de um dos maiores choques em fim de filme nos últimos anos. Em todo caso, um choque que é mais um duplicado clamor por compreensão mútua do que uma mortuário e suicida confissão de que o apocalipse está próximo. É a constatação de que o funesto bate à porta, mas que ainda é possível, universalismo exige, expulsa-lo da varanda.
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