25 abril 2005

Maria Cheia de Graça



Nota: 8,5

Maria cheia de graça (Maria Llena Eres De Gracia, 2004) podia até ser um filme tecnicamente regular que ainda assim teria pontos positivos. Principalmente porque a analogia estabelecida pelo californiano Joshua Marston em seu longa de estréia beira a genialidade. A Maria do título, que no cartaz aparenta receber a comunhão, não é a mãe de Jesus, mas carrega em seu ventre frutos que muitos consideram bendito: 62 pacotes de cocaína, cuja "graça" efêmera encontra paralelo no fervor religioso.

Mas a metáfora religiosa pára por aí. A história tem o pé plantado firme na Terra. Grávida de uma criança que não deseja, gerada com um namorado que não ama, a protagonista vive numa pequena comunidade rural colombiana. Cansada da vida indigna numa plantação de rosas, onde trabalha longas horas tirando espinhos dos talos das flores por salário de fome - que tem que dividir com a mãe, irmã e sobrinho -, a garota decide aceitar um trabalho como "mula" num momento de ousadia. Dessa forma, aquele traficante do noticiário, o malandro do Datena, ganha um rosto. E apesar de bonito, não é um rosto para o qual gostamos de olhar.

Convencida por um intermediário, ela aceita levar dentro de seu corpo uma carga de drogas aos Estados Unidos. Cada pacote do tamanho de uma uva. E se apenas um deles vazar, a morte é certa. Sem qualquer perspectiva e agora responsável por uma nova vida, Maria opta pela saída mais fácil, rápida e arriscada. A decisão espelha as tomadas pelas crianças do brasileiro Cidade de Deus, algo que clama há décadas por solução e que, apesar de ser motivo de vergonha nacional, continua cada vez pior. O rosto fica ainda mais feio...

Acompanhando esta menina de 17 anos, o público tem contato com o universo do tráfico de drogas internacional do ponto de vista mais baixo. O processo de preparo dos pacotinhos, o jejum para recebê-los, a dura viagem até Nova York, onde a carga deverá ser entregue. Tudo dolorosamente realista. Dolorosamente compreensível.

A segunda metade da co-produção dos Estados Unidos e Colômbia se passa em Nova York, onde Maria encontra a solidariedade entre seus pares. Se estabelece na comunidade colombiana no bairro pobre do Queens. Nesse ponto a realidade também parece um reflexo da nossa, algo que está sendo discutido atualmente até nas novelas: a vida dos imigrantes ilegais, a eterna busca pelo gramado mais verde do vizinho e o lado negro desse sonho.

Mas se a história de Maria é igual a milhares de outras, como anuncia o slogan do filme, a linda, talentosa e estreante Catalina Sandino Moreno a torna especial. Sua atuação, pela qual foi indicada ao Oscar de melhor atriz 2005, é naturalmente comovente e em momento algum parece falsa ou forçada. Aliás, essa é também a atmosfera geral do filme, que recebeu honrarias em inúmeros festivais internacionais. O diretor abre mão dos recursos consagrados nesse tipo de drama. A música não sobe, ele não chama o público às lágrimas. Diz não ao melodrama barato. Prefere retratar a realidade de forma natural, herança, talvez, de seus anos como jornalista e cientista político. Decisão acertadíssima. Afinal, pra quê aumentar se a realidade já é suficientemente dramática?

O Sétimo Dia



Nota: 8

Se Walter Salles Jr. não tivesse impregnado o sertão de Abril despedaçado (2001) com um olhar estetizante, tipo Sebastião Salgado, é bem possível que desembocasse em O sétimo dia (El séptimo día, 2004).

No filme espanhol, baseado em um caso verídico, o acerto de contas entre os Jiménez e os Fuentes já dura trinta anos. Tudo começou quando Amadeo Jiménez e Luciana Fuentes tiveram um namoro fugaz. Subitamente abandonada, num momento de raiva ela pede ao irmão que mate o ex-amado. O assassinato tem como troco o incêndio na casa em que a matriarca dos Fuentes dormia. Hoje, a adolescente Isabel (Yohana Cobo) ouve muitas histórias sobre a morte de seu tio Amadeo, mas não desconfia que os Fuentes remanescentes ainda planejam descontar a traumática morte da mãe.

As tramas dos dois longas são, nota-se, muito similares. Ambos tratam de famílias rivais cujas mortes intercaladas não parecem ter remédio. A diferença é que o filme de Carlos Saura não tenta angelizar os inocentes filhos da vingança. Abril é do Bem. O sétimo dia é do Mal.

Com o filme, Saura equilibra a sua antologia. Nascido em 1932, ele filmou de forma crítica e intimista - entre 1956 até os meados dos anos 80 - as conseqüências da ditadura de Francisco Franco (1892-1975) na sociedade espanhola. Com o esgotamento da temática, passou a investir na música e na força visual da dança. Trocou o discurso político seco e direto pela poesia de óperas trágicas como Carmen (1983), Flamenco (1995), Tango (1998) e Goya (1999). O sétimo dia vem para conciliar: o relato realista remete à primeira fase; o lirismo do cancioneiro campestre, à segunda.

Esse lirismo não parece deslocado. Pelo contrário, prenuncia com um compasso fúnebre a matança que virá. Não por acaso, o filme se associa diretamente ao western americano - em particular à obra de Sam Peckinpah (1925-1984) e de Sergio Leone (1929-1989), dois mestres da violência que imprimiam como poucos os cantos de cisnes da vida numa película.

Desde as ações que acontecem dentro de um bar até o crepúsculo na praça central, tudo aqui funciona como faroeste - mas Saura evita esquematismos de gênero. Esse é o passo que dá além de Salles. A perpetuação da desgraça não é só um fator privado, particular das duas famílias. Isabel se relaciona com um garoto instável: dali pode nascer uma história de rancor totalmente nova. Trata-se de um problema social.

O grande réu do espanhol, portanto, é a vila interiorana cuja paisagem ele filma contemplativo, mas cuja população ele enquadra desdenhosamente. É o lugar e a gente que Deus deixou quando descansou no sétimo dia da criação. Curiosamente, o final desse réquiem sangrento, depois de todo o pó, se perde no horizonte do mar - igualzinho ao desfecho de Abril despedaçado. A diferença é que Saura faz uma escolha muito mais controversa e, por isso, corajosa.

Cabra Cega



Nota: 8

Década de 70, anos de chumbo. Dois jovens militantes da luta armada, que sonham com uma revolução social no Brasil, vêem de dentro de um apartamento seus sonhos ruírem. Thiago (Leonardo Medeiros) é comandante de um grupo de ação esquerdista, que após ser baleado em uma emboscada policial, precisa se esconder na casa de Pedro (Michel Bercovitch), arquiteto simpatizante da causa. Rosa (Débora Duboc), menina do interior que entrou com o pai na luta de esquerda, é seu único contato com o mundo lá fora.

Thiago é usado como exemplo em Cabra Cega, que explora a situação limite de jovens guerrilheiros que tentam a todo custo mudar a sociedade em que vivem. Ex-líder estudantil que optou pela luta armada, Thiago questiona a passividade da classe média que assiste calada e omissa a toda a crueldade da ditadura militar. O filme critica, sutilmente, um país que viveu um período de censura de mãos atadas.

Fruto de uma vasta pesquisa elaborada a partir de depoimentos de ex-guerrilheiros sobre o dia-a-dia na clandestinidade, Cabra Cega explora os motivos que levaram alguns brasileiros a ultrapassar seus limites físicos e emocionais em prol de uma causa. Não por acaso, o dia 31 de março foi escolhido pelo diretor Toni Venturi para ser apresentado no Rio de Janeiro: há exatos 41 anos acontecia o golpe militar no Brasil.

Dessa vez Venturi parece ter conseguido finalmente aproximar-se do público – os anteriores O Velho e Latitude Zero não tiveram tanta repercussão de crítica. Sem ser panfletário, o longa causa arrepios em muitos momentos, ao mostrar o enfraquecimento do movimento e o abandono da estratégia armada. Graças à belíssima trilha sonora, a época, que já pareceu remota, é sentida na pele durante a exibição.

Cabra-cega aborda a resistência armada contra a ditadura brasileira. Cavalaria passa, polícia esbraveja, indignados marcham. Em meio à correria, dá para ver no rosto das pessoas o orgulho de se opor ao regime. Mas algumas cenas resgatadas da TV Tupi, hoje de domínio público, mostram o corpo já sem vida de Che Guevara (1928-1967) escarafunchado na Bolívia.

Assim, desde o primeiro momento a utopia da revolução popular entra em choque com a realidade da repressão. Esse é o conflito que permeará todo o filme - vencedor de cinco Candangos no Festival de Brasília de 2004, Melhor Filme - Júri Popular, Melhor Diretor, Melhor Ator (Leonardo Medeiros), Melhor Roteiro e Melhor Direção de Arte.

Na história, o militante Thiago (Medeiros), baleado no peito no dia em que viu a sua companheira e amada ser capturada pela polícia, precisa passar uns dias no “aparelho” de seu mentor, Mateus (Jonas Bloch). Lá recupera as forças e aguarda novas diretrizes. Sozinho, fechado - e silencioso por medo de ser denunciado - no apartamento, lhe resta esperar. Mas ficar afastado da ação, ouvir notícias de camaradas mortos, começa a lhe fazer mal. No desespero Thiago refletirá sobre a sua vida e o seu engajamento.

Cabra-Cega tem, nessa sua releitura da história recente, muito em comum com Quase Dois Irmãos (2004). O longa de Lucia Murat também confina um militante setentista de esquerda - neste caso, junto com presos comuns na Penitenciária da Ilha Grande - e o obriga a "parar para pensar". Entretanto, são propostas distintas. Toni Venturi não tem a ambição de Lucia, alça vôo mais modesto, mas por isso mesmo resulta mais coerente e conciso. Trata-se do típico pequeno grande filme.

Em um primeiro momento, esse thriller dramático parece querer aplicar uma lição de moral em Thiago. Um companheiro de aparelho, Pedro (Michel Bercovitch), por exemplo, participa de ações mas não deixa de viver a sua rotina acadêmica, muito menos a sexual - vivência que soa perda de tempo para o abnegado ferido. Aos poucos, porém, aprendemos a nos identificar (e a sofrer) com as angústias de Thiago. As suas mínimas vitórias no cárcere privado - descobrir o amor ou aquele LP do exilado Caetano, curtido com fone de ouvido para não chamar a atenção - passam a ser vitórias nossas também.

Ainda que o resto do elenco não se aprofunde tanto nos seus personagens como o talentoso Medeiros, ainda que o texto tenha resquícios de discursos, de diálogo "lido" - coisa que Venturi se preocupou em tentar limar - a direção segura não perde o foco da narrativa. Desde o começo equilibra bem a crítica consciente à implosão dos aparelhos e o afago emocional naqueles que um dia perderam a vida ou sobreviveram em nome da liberdade do país.

20 abril 2005

O Filho do Máscara



Nota: 2

Das duas, uma: ou Hollywood está passando por um processo incontrolável de explosão demográfica, ou a infertilidade no campo criativo das grandes idéias está gerando rebentos intragáveis. Se você considerar este novo trabalho do diretor Lawrence Guterman (Como Cães e Gatos), pode apostar na segunda hipótese que é mais garantido.

O filme mal chega a mencionar as relações e interferências de seu predecessor. Começa com uma cena de museu, em que um professor tão arqueológico quanto as peças em exposição explica a origem de uma valiosa máscara. Lá se esconde Loki (Alan Cumming, de X-Men 2 e Pequenos Espiões), o homem-mau, rebelde sem causa à procura dessa relíquia por determinação de seu pai, o todo-poderoso Odin (Bob Hoskins, de Dicionário de Cama e Encontro de amor). Ou Loki traz de volta esse adereço carnavalesco ao seu longínquo planeta, ou os estragos serão incalculáveis.

Pelos mistérios inexplicáveis por nossa vã filosofia, a verdadeira máscara perdida vai parar na casa de um pacato casal, Tonya (Traylor Howard, de Eu, Eu Mesmo & Irene) e Tim Avery (Jamie Kennedy, de Pânico e Inimigo do Estado). Ela, uma aspirante ao cargo de mãe, que insiste em ter filhos. Ele, um esboço de cartunista, tímido, travado e receoso com a idéia de ser pai. Quem se encarrega de trazer o molde facial ao doce lar é Otis, o cachorro.

Sem querer, Tim acaba usando a máscara numa festa de Halloween, e assim adquire os poderes que este artefato precioso oferece. Tempos depois, eis que finalmente Tim cede aos apelos de sua amada e resolve ter um filho. E aí nasce nosso protagonista, Alvey (Ryan e Liam Falconer), já incorporando a maldição do objeto desde seu nascimento.

O filho do outro

Em outro filme recente de berços e maternidade, O Filho de Chucky (2004), havia ao menos a coerência de manter o escracho de cabo a rabo. Fazia sentido uma continuação, pois todo o projeto se desenvolveu a partir de uma história com veias de terror e trama de novela: o nascimento, a ressurreição, o casamento e a prole. Neste aqui, porém, o cordão umbilical sequer existe. Não há nada no original que faça sugerir uma seqüência. Principalmente uma como esta.

Este fedelho esverdeado que inventaram torna-se capenga perto do piloto da série. Há um esforço em trazer elementos do primeiro para reativar a memória e a graça do que foi aquela remota comédia anterior: o baile, os dedos que se transformam em revólveres, caras e caretas. Mas tudo isso fica perdido no universo das referências soltas, onde nem se percebe a utilidade destas ferramentas cômicas.

A grande diferença entre o progenitor e este caça-níqueis está na desenvoltura dos protagonistas e o significado desta relação entre eles e o espaço cênico. Sobrava elasticidade em Jim Carrey, como se o filme todo fosse um puxa-puxa. Apesar de aparentemente nonsense, o roteiro era “amarrado”. Havia um ritmo na montagem na velocidade de um projétil de estilingue. Para o total entretenimento, bastava o chiclete colorido que quase saía da tela para trazer o espectador ao núcleo da diversão.

Nesta continuação, a dimensão que o diretor estabelece é totalmente diferente. Tudo é mais preso, tudo é mais quadrado dentro da lente da câmera. Apelou-se, então, para a criação de movimentos bruscos dentro desse espaço limítrofe. Seres alucinados, hipercinéticos, pululando de um canto pra outro da tela. Igual àquelas representações pictóricas de apostilas de aula de Biologia, em que as moléculas sob altas temperaturas e alta pressão tendem a ocupar um espaço maior. O Filho do Máskara está mais para Flubber (1997) do que para O Máskara (1994) pai. O filme, literalmente, “atira para todos os lados”, sem estabelecer uma coerência estética na sua estrutura celular.

Não há outra explicação para a quantidade de melodias improvisadas nas diferentes versões da música "Can't Take my Eyes of You", o resumo da ópera desse caldo cultural transgênico. Pinça estilos tão diferentes entre si, que chega a ser até contraditório. Bebe da fonte do universo cromático negro e sorumbático de um Tim Burton, por exemplo (Cumming é a própria fantasia de Edward Mãos de Tesoura), passando pela citação descarada do giro craniano de 360º e o posterior gláucico regurgito de O Exorcista. Isso sem falar na aceita cafonice das cores da escola de samba Mangueira que Joel Schumacher reproduziu em Batman Eternamente (1995). A cena da ovulação, em que monstrinhos de ralo de esgoto apostam corrida para ver quem chega primeiro ao Paraíso rotundo, é tão indescritível quanto bizarra. Há nela tanto um clima de paz celestial quanto de sacanagem das mais perversas.

Mas a verdadeira relação entre pai e filho que o filme ao mesmo tempo aborda e esquece é a submissão de Loki (na versão dublada, quem dá voz é o roqueiro decadente Supla) ao jupiteriano ser superior etéreo e amorfo, Odin. Sua aparição no céu como representação da onipresença é mais contundente do que parece. Através das autoritárias vozes de comando, todos os complexos e sentimentos de culpa estão nesse jogo pouco explorado pelo diretor. É nessa carga genética de demonstração de poder que há um conteúdo retratado com um pouco mais de vigor. Analisar cada diálogo dessas cenas seria campo pra Psicologia, mas é importante registrar onde está o ponto forte de uma boa idéia dissipada pelas macaquices circenses. Perto desse confronto familiar, que até se utilizou do sobrenatural pra deixar a coisa ainda mais complicada, o bebezinho polimorfo não é nada mais do que uma bexiga de festa pobre. Vítima de uma produção cinematográfica infecunda repleta de profissionais estéreis.

11 abril 2005

Vozes Inocentes



Nota: 8

A guerra é assunto de adultos insensíveis, como o cinema latino-americano parece ressaltar cada vez mais. Quando tratam das suas respectivas ditaduras, argentinos (Kamchatka) e chilenos (Machuca) guardam as crianças como reservas de pureza, enquanto brasileiros (Ação entre Amigos, Cabra-Cega, Benjamim) preferem acreditar que o amor é a última trincheira da salvação.

A película mexicana Vozes inocentes (Voces inocentes, 2004) também parte dessa idéia de que a guerra deve ser mantida longe das crianças, do contrário contamina o seu espírito - no bom sentido - primitivo. Aqui, não apenas a infância, como também a alienação, simboliza a paz: corre alegre o tempo todo, de um lado ao outro, o deficiente mental que brinca com os meninos.

Mas boa parte da pureza de Chava (Carlos Padilha) já se perdeu quando o pai fugiu de El Savador para os EUA, deixando-o como precoce chefe da casa, ao lado da mãe (Leonor Varela, a heroína de Blade 2). O pior virá quando o menino completar doze anos. O exercito salvadorenho logo o converterá em soldado contra os rebeldes da guerrilha FMLN - que igualmente querem cooptá-lo para o seu lado.

O roteiro de Oscar Torres se baseia na sua própria história durante a Guerra Civil que tomou o país entre 1981 e 1992. Milhares de crianças que mal conseguiam segurar um fuzil foram arrancadas da sua inocência. As cicatrizes ainda ardentes podem explicar parte do sensacionalismo que o diretor Luis Mandoki (Uma carta de amor, Olhar de anjo) imprime à película.

Tudo bem, o tema é árduo, mas assusta a falta de sutilezas. Tome criança chorando e família acuada em barracos entre o fogo cruzado na cidade. Tome discurso inflamado do padre local. Repare que a denúncia dos horrores da guerra, pretensamente libertária, passa pela defesa desses dois símbolos tradicionalíssimos, a família e a igreja. Tome também a descoberta do amor infantil sendo estripada pelo conflito. E tome close-up.

O fato de Vozes inocentes recorrer a todo tipo de chantagem emocional para sequestrar o espectador à sua causa não seria, em si, de todo mal - muitos filme melhores e piores também agem assim. O problema é que Mandoki e o diretor de fotografia Juan Ruiz Anchia tentam dar à narrativa um certo realismo, com a câmera tremida a todo momento, mas não percebem que o tom documental entra em conflito com o sentimentalismo artificial.

As duas coisas simplesmente não se combinam. Isso gera aberrações como enquadramentos desfocados que, de um momento a outro, se endireitam para pegar a feição angustiada de Chava. Falando assim, soa preciosismo, mas não é. Na tela fica parecendo tosquice da Televisa.

Se você não se importa com esses detalhes formais, pode se emocionar com o filme sem problemas. Mas as barbeiragens de Mandoki - como a exposição desavergonhada de Carlos Padilha, um ator-mirim que não tem condição de segurar tantos closes - são mais violentas do que um fuzilamento.

Quase Dois Irmãos



Nota: 8,5

A trajetória vitoriosa de Quase Dois Irmãos, consagrada no Festival do Rio 2004 - no qual levou os prêmios de direção (Lúcia Murat) e ator (Flávio Bauraqui) - começou em 1998, quando o roteiro do filme - criado por Murat e Paulo Lins (Cidade de Deus) - foi premiado pelo Ministério da Cultura. Mais tarde, em 2002, foi também um dos 10 selecionados para o Laboratório Sundance e garantiu o apoio do Ministério das Relações Exteriores da França. O currículo de sucesso prenuncia um ótimo filme, no entanto, não garante uma produção isenta de defeitos.

O longa-metragem parte de uma premissa interessante: a exploração sociológica do encontro entre militantes de esquerda e prisioneiros comuns nas penitenciárias federais durante a ditadura.

A história é contada em três tempos narrativos diferentes e intercalados. O primeiro, nos românticos anos 50, mostra como um garoto da classe-média, filho de um jornalista apaixonado por samba, tomou contato com o mundo da favela e se tornou amigo do filho de um importante compositor do morro (interpretado por Luis Melodia). Vinte anos depois, o reencontro. Miguelzinho - agora Miguel (Caco Ciocler) - é um preso político, condenado pela oposição ao regime. Jorginho (Flávio Bauraqui), o filho do sambista, é detento comum, preso por assalto a banco. O terceiro momento do filme - na década de 1990 - traz os dois (vividos por Werner Schünemann e Antonio Pompeo) debatendo melhorias sociais no morro, ambos líderes estabelecidos de suas comunidades. O primeiro um deputado, o outro um chefe do narcotráfico, cada um com seus filhos ou protegidos.

Favorecidos pelo alto número de presos políticos no presídio carioca de Ilha Grande durante a ditatura, os chamados "subversivos" - como Miguel - criam normas de comportamento para toda a cadeia. Porém, com o tempo, a quantidade de detentos intelectualizados é superada pela de presos comuns e a balança começa a pender para os marginais. A disputa pelo poder provoca conflitos e culmina com o surgimento da Falange Vermelha (o futuro Comando Vermelho), uma organização criada pelos detentos comuns aplicando as técnicas de organização aprendidas com os militantes.

A análise desse momento crucial para a sociedade brasileira é fascinante. A ascensão das duas organizações - tanto a criminosa quanto a militante - ao poder é um pertinente convite ao debate.

Quase dois irmãos só perde o passo ao intercalar esse momento tão interessante com as dispensáveis tramas da década de 50 - que pouco agrega à história - e dos anos 90, quando os debates entre Jorge e Miguel soam redundantes com as imagens do dia-a-dia da favela, que se parece demais com Cidade de Deus (até os atores do grupo Nós do Cinema são empregados). O mesmo ocorre com as visitas da filha do ex-militante (Maria Flor) ao morro para relacionar-se com um traficante (Renato de Souza), entre outras cenas que chocam, mas trazem pouca relevância.

Tamanha discrepância deixa claro que o tema do coração da diretora - que também foi presa política - é mesmo a parte central. Assim, fica a dúvida da necessidade da divisão narrativa. Felizmente, tais segmentos não prejudicam o coração do filme, em que Flávio Bauraqui (Madame Satã) faz um trabalho excepcional, cheio de vitalidade, e eclipsa a contida, mas também ótima, atuação do competente Caco Ciocler (Desmundo). Sem dúvida, parte do sucesso de Quase dois irmãos pode ser atribuída a Flávio, que transcende suas cenas e ajuda o filme a posicionar-se como um dos melhores do Brasil.

Questão de Imagem



Nota: 8

Por que todos acham que os gordinhos são sempre mal amados? Questão de Imagem (Comme Une Image, 2004) aborda esse assunto, mostrando que para a maioria das pessoas, apenas a aparência exterior é o que conta. A sensibilidade do cinema francês em “tocar” certas feridas de maneira sutil é sempre uma experiência interessante. Premiado em Cannes 2004 pelo roteiro, a diretora Agnès Jaoui repete o mesmo estilo de seu filme anterior, O Gosto dos Outros (2000), que ganhou os César (Oscar francês) de melhor filme, roteiro e atores coadjuvantes.

À primeira vista, a motivação da personagem principal parece bastante clichê. Lolita Cassard tem 20 anos, é gordinha, se acha feia e não consegue manter nenhuma auto-estima. À sua volta ela tem apenas sua família e o grupo de suas aulas de canto. Seu pai é Étienne Cassard, escritor de sucesso, egocêntrico radical, e que vive obcecado pelo pânico do envelhecimento. Ele tem como segunda esposa, uma mulher bem mais jovem e fanática pela aparência. Juntos, eles têm uma filha de cinco anos, que é controlada o tempo todo por sua mãe nas horas das refeições. A professora de canto de Lolita, Sylvia Miller, acha que a menina não tem talento. Ela é casada com um escritor, Pierre Miller, que em seu terceiro livro publicado busca o reconhecimento de seu talento. Uma rede de relações complicadas arma-se a partir do momento em que a professora de canto de Lolita descobre que ela é filha de Cassard, seu escritor favorito, e que poderia ajudar na carreira do marido.

O filme trata das relações humanas. Basta olhar com um pouco mais de atenção, para perceber como são ricos os personagens. Todos são carregados de particularidades e emoções. Lolita não se sente amada pelo pai e, para chamar sua atenção, se torna uma adolescente em constante estado de irritação. Para ela, sua principal rival é a madrasta e quando esta larga seu pai, sua felicidade é completa. Ao mesmo tempo ela odeia ser filha do famoso Cassard, pois sabe que muitas pessoas só se aproximam dela por causa disso. Ela própria não acredita que pode ser amada apenas pelo o que ela é.

Já Étiene Cassard parece colecionar pessoas por diversão. Desde o início do filme é clara sua posição egocêntrica. Ele se cerca e dispensa as pessoas conforme seu humor, mas no fundo não passa de um adulto inseguro. Fica perceptível sua fragilidade ao ser deixado por sua jovem esposa e parte em busca de abrigo junto à sua filha, a qual sempre ignorava. Com o desenvolvimento da história, alguns personagens evoluem, outros regridem e uns permanecem estáticos diante do enredo da história. Não há aquela redenção obrigatória dos filmes americanos. É apenas a história de pessoas comuns, seus sentimentos e interesses ocultos.

As cenas são acompanhadas de uma eclética trilha musical - pop, rock, clássico, canto lírico e religioso - que parece reafirmar a proposta da narrativa, a riqueza de emoções que compõe cada ser humano. Toda essa diversidade terá seu clímax numa reunião durante um fim-de-semana. O grande programa será a queda das máscaras, movidas por uma ironia feroz sobre o jogo de aparência dentro e fora da família. Nesse momento percebemos que todos são vítimas e culpados por alguma coisa. Como na vida real não existem inocentes.

O Clã das Adagas Voadoras



Nota: 6,5

Zhang Yimou criou dramas de indiscutível beleza e lirismo. Lanternas Vermelhas, Nenhum a Menos, pode ir dizendo os títulos - há um ou outro que peque em termos de impacto emocional, mas Yimou não teve um filho feio até agora.

Mas com Herói e O Clã das Adagas Voadoras, ele pariu supermodelos.

O gênero Wuxia Pian desenvolveu-se na China praticamente em paralelo com o advento do cinema na região. Explicando de modo muito diluído em água morna, os Wuxia Pian são como adaptações dos contos de trovadores chineses para as telas. Aquela gente de olhinho fechado (excluindo-se a Renée Zellweger) voando pelos bambuzais, para a incompreensão do Ocidente despido de magia, são mitos como nossos superheróis, porém baseados em habilidades reais de gente que sabia o bastante para ficar dichavada. Quem já viu chinês pegando copo no ar antes de quebrar ou voando por cima de balcões e carros como se fosse a coisa mais tranqüila do mundo, não duvida muito que eles não sejam capazes de parar seu coração com três toques de polegar.

Yimou nutre o desejo de fazer Wuxia Pians já há algum tempo, quase desistiu depois que O Tigre e o Dragão (um bom filme, mas com uma filosofia chinesa de livro de rodoviária) foi lançado, pois temia ser chamado de aproveitador, mas o sucesso do filme só facilitou o financiamento de seu Herói. O lançamento de Herói foi tão atrasado pela Miramax, dona dos direitos internacionais de distribuição, que todo mundo começou a importar o DVD chinês. A Miramax tentou entrar com uma ação para impedir a importação de DVDs (!!!), temendo que isso prejudicasse a bilheteria do filme. Quase 3 anos depois, o filme é lançado nos EUA e fica 2 semanas em primeiro lugar. O que isso mostra?

Que você não pode nem tem o direito de bloquear a curiosidade das pessoas. Que o poder de uma obra cinematográfica vai além das previsões dos executivos. Eu já tinha visto o filme em DVD (você também, que eu sei) e a única coisa que me ocasionou foi uma vontade irrepreensível de ver o filme numa tela grande e num cinema onde as pessoas fiquem de boca calada. Ver o filme em DVD antes foi como uma propaganda que só me atraiu a sala de exibição.

Depois de Herói, Yimou realizou o não-tão-bom O Clã das Adagas Voadoras. É quase uma covardia colocar ambos os filmes lado-a-lado, mas o novo filme de Yimou tenta orientalizar-se menos para o paladar do público mundial e um pouco da magia acaba se perdendo. O Clã... é um convencional romance Wuxia Pian, onde sente-se uma certa mão pesada no quesito roteiro e lutas.

No ano 859, a China passa por terríveis conflitos. A dinastia Tang, antes próspera, está decadente. Corrupto, o governo é incapaz de lutar contra os grupos que se rebelam. O mais poderoso e prestigiado deles é o Clã das Adagas Voadoras. Leo e Jin, dois soldados do exército oficial, recebem a missão de capturar o misterioso líder do grupo e, para tanto, elaboram um plano: Jin se disfarça como um combatente solitário, ganha a confiança da bela revolucionária cega Mei e, assim, infiltra-se no grupo. Mas a dupla não contava com os sentimentos que Mei despertaria nos dois. As Adagas Voadoras opõe-se ao governo. Atuando em várias partes do Reino, o sargento de uma pequena localidade (Andy Lau, o Antônio Fagundes de Hong Kong) segue a pista de que o bordel local estaria servindo de abrigo para a filha cega (Zhang Ziyi, ainda mais deliciosa) do Poderoso Chefão do clã. Ele consegue prendê-la, mas resolve usá-la de isca para ser guiado ao grupo de marginais. Para isso, uma fuga é forjada por um dos policiais (o galã Takeshi Kaneshiro). Durante a fuga, os dois acabam se apaixonando, mas nada não é o que parece.

O Clã das Adagas Voadoras começa com uma majestade do caralho. A cena do bordel é um banquete para olhos e mentes. Os protagonistas estão completamente cativantes e a ação, à princípio, parece indicar que Yimou está guardando o melhor para o final. Infelizmente, o resto de O Clã... segue monocordicamente. O romance desenvolve-se numa série de "eu te odeio, eu te odeio, eu te amo" e, particularmente, nunca chegou a realmente me envolver. Belas cenas como a do bambuzal perdem um pouco do impacto pelo ritmo irregular da história.

Yimou concentra a tal palheta de cores no verde (ele varia mais no final), ainda rico, mas cansativo depois de certo tempo. O filme é lindamente fotografado, a trilha sonora especialmente folclórica nos catapulta direto à época retratada no filme, mas há um excesso de lirismo que compromete a emoção - nós queremos nos afastar para ter uma melhor perspectiva da beleza dos quadros, mas dificilmente acabamos "entrando" neles. Porém, a história tem algumas boas (embora pouco surpreendentes) reviravoltas que, somado a química de Kaneshiro e Ziyi, mantém o espectador sempre interessado. Há espaço no roteiro para criar um ótimo arco de desenvolvimento dos personagens.

O Clã das Adagas Voadoras é Wuxia Pian bem mais comercial, composto de visuais nada menos que fantásticos, mas tenta apelar um tanto na história e nos sentimentos. O filme equilibra-se numa corda bamba, a atravessa sem cair, mas meu Deus, como balança até chegar ao final. Mantenha em mente que, mesmo assim, o filme é um deleite aos sentidos, melhor do que qualquer porcaria que os executivos americanos querem nos empurrar. O filme é repleto de razão de ser, vai satisfazer o espectador que quer mais de seus filmes de entretenimento do que um boquetinho de puta (o folclore e costumes culturais apresentados no filme farão o dia daquele que gosta de aprender enquanto se diverte), é capaz até de agradar o espectador comum mais do que Herói, se a gente reclama é porque Yimou criou um padrão altíssimo para si mesmo.

04 abril 2005

Desde que Otar Partiu



Nota: 8

A diretora Julie Bertuccelli começou ao lado de grandes cineastas como Krzysztof Kieslowski e Bertrand Tavernier, dos quais foi assistente de direção no passado. Aparentemente, ela aprendeu muito bem seu ofício. Seu primeiro longa-metragem, Desde que Otar partiu (Depuis Qu’Otar est Parti, 2003) - co-produção belga-francesa - é uma aula de como se fazer um drama, sem precisar se apoiar nos surrados clichês do gênero.

De cara, a produção não precisa de trilha sonora com violinos ou ângulos dramáticos para pontuar emoções. Seu apoio emocional reside exclusivamente nas fantásticas atuações do trio de protagonistas, em especial na de Esther Gorintin, que cresce ao longo do filme, passando de idosa teimosa e inofensiva a grande condutora da trama. Preste atenção nos olhos da atriz de 90 anos na cena da roda gigante, quando ela fuma um cigarro que comprou na ausência da outras mulheres da família. Aquela tragada tem mais interpretação do que vários filmes inteiros protagonizados por essas loirinhas bestas de Hollywood.

O longa conta a história de três mulheres lutando para sobreviver na República da Geórgia pós-União Soviética: Eka (Gorintin), sua filha de meia-idade Marina (Nino Khomassouridze) e a neta Ada (Dinara Droukarova), estudante universitária compenetrada. As três vivem na capital Tbilisi, que passa por uma grande crise financeira e social. Os blecautes são freqüentes, a água termina abruptamente, as transições políticas parecem levar séculos e o povo tem que se virar como pode. No caso das três, com a parca renda obtida por Marina num mercado de pulgas e, eventualmente, com o dinheiro que seu irmão manda de Paris.

As três mulheres sofrem com a ausência do único homem da família. Médico formado, Otar só consegue emprego como pedreiro na França e liga com freqüência para a mãe, que o tem como filho preferido. Basta um toque do telefone para que a velhinha dispare pela casa à cata do aparelho. Tal predileção irrita Marina, que vive tendo pequenas discussões com a mãe. Essas rusgas, porém, são sempre apaziguadas pela jovem Ada, que trata ambas com reverência.

A dinâmica do relacionamento entre elas é obtida com enorme simplicitade pela diretora. É fantástico notar como não são necessários grandes diálogos ou explicações para perceber tudo isso. Bastam breves cenas cotidianas ou trocas de olhares.

Porém, é justamente esse cotidiano que é alterado quando chegam notícias de Paris. Otar não voltará para casa jamais e cabe a Marina e Ada o fardo de revelar a notícia à matriarca. No entanto, para não testar os limites da idosa, ambas optam por uma elaborada farsa: vão continuar a correspondência de Otar com a mãe como se nada tivesse acontecido, falsificando as cartas dele.

A solução mentirosa tem ecos de Adeus, Lênin, mas não compactua do bom-humor do filme alemão. A opção pela farsa aqui é dolorosa e prejudicial às duas gerações mais jovens da família. Além disso, as conseqüências de seus atos virão de maneira surpreendente, num desfecho comovente e inesperado, banhado pelo charme da Cidade Luz.

Reencarnação



Nota: 6

Um sujeito corre pelo Central Park em neve enquanto surgem os créditos iniciais do filme, embalados por uma música suave. A seqüência dura uma eternidade... ele corre, corre, corre... até que o público flutua numa espécie de torpor hipnótico. Mas ao passar por baixo de um arco de pedra, o corredor - agora só uma silhueta - pára, põe a mão no peito e morre, derrubando a audiência de seu estado alfa.

A seqüência inicial de Reencarnação (Birth, 2004), do competente Jonathan Glazer (Sexy Beast), prenuncia o tom da produção, assinada por Milo Addica (A última ceia) e Jean-Claude Carrière (colaborador de Luis Buñuel). Cadenciado como um metrônomo, o drama é pontuado por pouquíssimos momentos de emoção pronunciada, preferindo apoiar-se na criação de um clima de tensão, algo extremamente favorecido pela fotografia em tons beges fabricada por Harris Savides.

O nome do sujeito que morreu é Sean. Uma década após seu falecimento, a viúva Anna (Nicole Kidman, com cabelos curtíssimos e ruivos) prepara-se para seu segundo casamento. Ela e seu noivo, Joseph (Danny Huston), vivem num enorme apartamento no Upper East Side, área nobilíssima de Nova York, onde estão dando a festa para anunciar seu noivado. Tudo parecia perfeito, até que surge (ou ressurge) Sean (Cameron Bright), um menino de 10 anos de idade que insiste em afirmar que é o marido falecido de Anna. A revelação, claro, desestabiliza toda a vida do casal, muito a contragosto da matriarca da família (Lauren Bacall). Mas estaria o menino falando a verdade? Tudo indica que sim, já que ele conhece em detalhes informações que só o verdadeiro Sean poderia saber.

O jovem Bright (O enviado) e Kidman têm atuações milimetricamente controladas, que favorecem o clima realista da história e casam perfeitamente com a atmosfera criada pelo diretor. Até o final o filme funciona harmoniosamente bem, mas o desfecho acaba com toda a graça e atmosfera criada. Não que precisássemos de mais um menino fantasma para nos satisfazer, mas o final deixa a história muito inverossível.

Fracasso em todos os mercados onde foi lançado, o filme não merecia tamanho desprezo. Foi prejudicado pela polêmica ocorrida durante a sua primeira sessão, realizada no Festival de Veneza em setembro de 2004. Nela, a película foi recebida com frieza e alguns críticos deixaram a sala no meio da projeção. Algumas vaias também irromperam da platéia. A razão do comportamente exarcerbado do público é uma cena em que Kidman divide uma banheira com o garoto. A seqüência mais constrange do que choca, mas aos olhos do público puritano deve ter parecido uma orgia pedófila.

O filme é bom, o suspense de primeira, mas o final...

Herói



Nota: 7

Se você pensou que já tinha visto tudo que era possível sobre artes marciais em O Tigre e O Dragão (Wo hu cang long, de Ang Lee, 2000), prepare-se! Herói (Ying xiong, 2002), de Zhang Yimou, eleva os filmes orientais sobre guerreiros ao patamar de obra de arte com seqüências de tirar o fôlego.

Herói é uma história mítica baseada em fatos históricos. Na China ancestral, antes do surgimento do primeiro imperador, a nação se dividia em sete reinos. Qin, o soberano da província do norte, sofre constantes ameaças e tentativas de assassinato e o que mais o preocupa são três assassinos de elite contratados por seus adversários políticos. Certo dia, um dos magistrados de seu reino entra no palácio carregando as armas dos assassinos, afirmando ter derrotado os três em combate.

Jet Li retorna às suas raízes de Hong Kong no papel de um espadachim claramente inspirado em Yojimbo (de Akira Kurosawa, 1961). O ator interpreta o guerreiro sem nome que conseguiu a façanha de matar os assassinos Espada Quebrada (Tony Leung Chiu Wai), Céu (Donnie Yen) e Neve Voadora (Maggie Cheung). O rei havia prometiado riquezas jamais imaginadas para aquele que conseguisse tal proeza. E assim, o vitorioso soldado começa a narrar suas batalhas, que são mostradas na tela em flashback. A cada nova história, o guerreiro sem nome ganha o direito de se aproximar um pouco mais do soberano, que - suspeitando dos relatos - confronta as histórias que está ouvindo a outras versões que lhe foram contadas.

Para cada nova variante descrita, o diretor criou um banquete para os olhos. Esteticamente as cenas são obras-primas. A câmera registra uma riqueza de detalhes nunca vista em produções similares. As locações são espetaculares. Toda a ação se desenvolve em lagos, montanhas, florestas e desertos. Em cada um desses lugares o vento, a água, o sol, as folhas e as árvores participam da ação. Tudo isso é combinado com os belos figurinos e trilha sonora. Do começo ao final, Herói é um quadro em movimento e as cenas de luta, um espetáculo de balé com espadas.

Não pense que a história é apenas sobre luta. O roteiro de Zhang Yimou é a união perfeita de sensibilidade e ação. Todos os elementos shakespearianos estão lá. Traição, mentira, honra, amor e sacrifício convivem harmoniosamente com as artes marciais.

Yimou faz sua estréia neste gênero de filmes que ele acompanha desde sua adolescência. Histórias sobre os "Wuxia" são bastante comuns na China. Wu significa artes marciais e Xia seria o equivalente a um cavaleiro errante. Mas ao contrário dos cavaleiros que estamos acostumados, o Wuxia têm o espírito livre. Seus valores estão concentrados em honra, lealdade e justiça. A partir do século 18, as histórias dos Wuxia ficaram extremamente populares criando-se assim lendas e feitos extraordinários. Estes mitos também servem de inspiração no ocidente. George Lucas criou seus Cavaleiros Jedi espelhando-os nesta cultura.

Um tema constante das novelas Wuxia é a superação de suas habilidades por meio da concentração, a repressão de seus sentimentos e muito estudo. Fazendo isso o guerreiro consegue transcender tudo. Existem dois estilos: Wudan (que usa a força interior) e o Shaolin (que usa a força exterior). Ao contrário do que se pode imaginar, as técnicas não são opostas e é do perfeito equilíbrio de ambas que uma pessoa tira a sua verdadeira força. Assim como Herói.

Robôs



Nota: 6

Quando dirigiram A era do gelo (2002), Chris Wedge e o brasileiro Carlos Saldanha tiveram que maneirar nos pincéis. Afinal, o Pleistoceno, período quaternário do Cenozóico, não era exatamente um tempo de muita poluição visual, se é que você me entende. Portanto, nada melhor para aplacar essa sede de imaginação do que situar o projeto seguinte, Robôs (Robots, 2005), no futuro. E acredite, a dupla forra todo fotograma com o máximo de formas, cores e informações possíveis.

A excelência estética do longa e o frenesi das cenas de ação compensam as obviedades do roteiro. Rodney Lataria (voz de Ewan McGregor no original e Reynaldo Gianecchini em português) cresceu numa cidadezinha de interior. Filho de um lavador de pratos, só conseguia peças de segunda mão para as suas "atualizações de idade". O jovem Rodney sonhava conhecer Robópolis, a terra das oportunidades onde o inventor Grande Soldador (Mel Brooks), ídolo de todos, dizia que "todo robô pode brilhar, não importa do que seja feito". Uma espécie de Silvio Santos robótico, símbolo do sucesso capitalista. Não do ponto de vista da elite, mas sim do povo. O trabalhador que deu certo e incentiva outros a chegar lá. Mesmo o desenho assumindo-se anti-consumista, não consegue fugir do paradoxo.

Sozinho na metrópole, Rodney percebe que não é bem assim. Dom Aço (Greg Kinnear) aposentou Grande Soldador do comando da empresa e agora lidera uma renovação no mercado. A elite toma o poder. Peças de reposição não serão mais fabricadas, só produto de primeira linha. Quando o herói descobre que a maioria dos robôs não tem como sobreviver à reciclagem, inclusive o seu pai, decide enfrentar Dom Aço em nome dos ideais do velho Soldador.

Reveste-se de crítica ao consumismo, assim, a clássica história do Bem contra o Mal, da pureza interiorana contra a selvageria da cidade, da maioria negligenciada contra a minoria corporativa. Cientes de que essa trama batida ainda rende bom caldo, Wedge e Saldanha não se acanham em acrescentá-la de arquétipos: o herói esguio com o seu par romântico, o gordinho desengonçado e, claro, o tagarela do alívio cômico - cuja dublagem eficiente de Robin Williams tende a se perder por aqui.

A utilização desse formato edificante, mais fácil de compreender, se legitima na medida em que Robôs é um desenho feito para crianças, de verdade, numa indústria que tem medo de se assumir juvenil. Os pequenos devem aproveitar apenas o desbunde visual em sua plenitude frenética, pois não encontra-se a crítica que existia em Vida de Inseto, por exemplo. Resolveram dar uma de tio Walt e ensinar "boas lições" para as crianças, passar uma moral da história. Enquanto no nível digital o desenhos estão progedindo cada vez mais, no nível crítico o descenso é evidente.

Resta aos maiores se divertirem com paródias de O Senhor dos Anéis e Star Wars. Mas a idéia principal não é essa, definitivamente. Quando tenta soar adulto, Robôs esbarra no anacrônico (a referência a Cantando na Chuva sequer rende versos decentes) e no desgastado (se zoar Britney Spears já não funciona tanto, imagine então fazer piada com flatulência). Do anti-consumismo ao progresso... não deixa de ser melhor que as "fábulas" disneynianas, mas não deixa de ser o outro lado da moeda.

03 abril 2005

O Chamado 2



Nota: 3

Quem não conhece uma boa lenda urbana? São aquelas histórias como a da loira do banheiro, que aparece por todos os colégios do Brasil para qualquer estudante que a invoque ao praguejar seu nome três vezes, no escuro e sozinho. O fetiche por esse tipo de conto já rendeu incontáveis conversas por acampamentos e mesas de bar mundo afora. Felizmente (ou infelizmente, no meu caso) a lenda da loira do banheiro jamais foi confirmada.

O Chamado (2002) conta a história de uma dessas lendas, sobre uma fita VHS que leva seu espectador à morte sete dias após tê-la assistido. Nesse tempo, o infeliz ainda é assombrado pela bizarra Samara Morgan, uma menina amaldiçoada que foi morta pela mãe adotiva. Considerado um dos melhores filmes de terror dos últimos anos, trata-se da refilmagem quase literal do japonês Ringu, de Hideo Nakata, 1998.

Nesta versão hollywoodiana, a jornalista Rachel Keller (Naomi Watts) investiga a morte da sobrinha, aparentemente relacionada ao tal VHS. Com a competentíssima direção de Gore Verbinski e a fotografia de Bojan Bazelli, o filme supreendeu o mundo ao apresentar uma atmosfera sinistra e fatos estranhos que não são necessariamente explicados - elementos típicos do horror japonês. A "suspensão temporária da descrença" faz-se primordial para entrar no clima da história. Como em toda lenda urbana, não adianta perguntar ou tentar entender os fenômenos. O bizarro é bizarro e pronto!

E haja suspensão temporária da descrença para assistir a O Chamado 2, agora dirigido pelo criador da franquia: Hideo Nakata. O filme continua a história do primeiro, com Rachel e seu filho Aidan (David Dorfman) recomeçando suas vidas após terem sido assombrados por Samara. Mas como tudo que é bom dura pouco (e, em Hollywood, gera continuações), a tranquilidade deles é logo interrompida.

Um adolescente (sempre eles) acaba morto após assistir a uma cópia da fita amaldiçoada e, para piorar, a terrível Samara continua assombrando Rachel, com o objetivo de possuir o corpo de Aidan. A trama se aproxima superficialmente dos personagens e introduz novos, como a dispensável mãe natural da fantasminha nada camarada.

Sem os elementos surpresa gastos no primeiro filme - como a expressão assustadora de Samara, o estado em que ela deixa suas vítimas e os apavorantes cinco minutos finais - não há muito o que se fazer a não ser seguir por um caminho seguro. Foi exatamente esta a decisão tomada pelos produtores, o que acabou frustando os fãs de filme de terror, que ficaram com um gostinho de quero mais com o fim do primeiro da série. A história repete alguns elementos do primeiro, tenta reproduzir seu clima sombrio (sem muito sucesso), e nos causa no máximo uns 2 bons momentos, que juntos não dão 10 minutos de filme. Eu só recomendo o primeiro filme. Esse O Chamado 2 se resume em uma continuação confusa do original, com cenas de terror forçadas, um roteiro cheio de furos escandalosos e com muitos clichês.