25 abril 2005

Cabra Cega



Nota: 8

Década de 70, anos de chumbo. Dois jovens militantes da luta armada, que sonham com uma revolução social no Brasil, vêem de dentro de um apartamento seus sonhos ruírem. Thiago (Leonardo Medeiros) é comandante de um grupo de ação esquerdista, que após ser baleado em uma emboscada policial, precisa se esconder na casa de Pedro (Michel Bercovitch), arquiteto simpatizante da causa. Rosa (Débora Duboc), menina do interior que entrou com o pai na luta de esquerda, é seu único contato com o mundo lá fora.

Thiago é usado como exemplo em Cabra Cega, que explora a situação limite de jovens guerrilheiros que tentam a todo custo mudar a sociedade em que vivem. Ex-líder estudantil que optou pela luta armada, Thiago questiona a passividade da classe média que assiste calada e omissa a toda a crueldade da ditadura militar. O filme critica, sutilmente, um país que viveu um período de censura de mãos atadas.

Fruto de uma vasta pesquisa elaborada a partir de depoimentos de ex-guerrilheiros sobre o dia-a-dia na clandestinidade, Cabra Cega explora os motivos que levaram alguns brasileiros a ultrapassar seus limites físicos e emocionais em prol de uma causa. Não por acaso, o dia 31 de março foi escolhido pelo diretor Toni Venturi para ser apresentado no Rio de Janeiro: há exatos 41 anos acontecia o golpe militar no Brasil.

Dessa vez Venturi parece ter conseguido finalmente aproximar-se do público – os anteriores O Velho e Latitude Zero não tiveram tanta repercussão de crítica. Sem ser panfletário, o longa causa arrepios em muitos momentos, ao mostrar o enfraquecimento do movimento e o abandono da estratégia armada. Graças à belíssima trilha sonora, a época, que já pareceu remota, é sentida na pele durante a exibição.

Cabra-cega aborda a resistência armada contra a ditadura brasileira. Cavalaria passa, polícia esbraveja, indignados marcham. Em meio à correria, dá para ver no rosto das pessoas o orgulho de se opor ao regime. Mas algumas cenas resgatadas da TV Tupi, hoje de domínio público, mostram o corpo já sem vida de Che Guevara (1928-1967) escarafunchado na Bolívia.

Assim, desde o primeiro momento a utopia da revolução popular entra em choque com a realidade da repressão. Esse é o conflito que permeará todo o filme - vencedor de cinco Candangos no Festival de Brasília de 2004, Melhor Filme - Júri Popular, Melhor Diretor, Melhor Ator (Leonardo Medeiros), Melhor Roteiro e Melhor Direção de Arte.

Na história, o militante Thiago (Medeiros), baleado no peito no dia em que viu a sua companheira e amada ser capturada pela polícia, precisa passar uns dias no “aparelho” de seu mentor, Mateus (Jonas Bloch). Lá recupera as forças e aguarda novas diretrizes. Sozinho, fechado - e silencioso por medo de ser denunciado - no apartamento, lhe resta esperar. Mas ficar afastado da ação, ouvir notícias de camaradas mortos, começa a lhe fazer mal. No desespero Thiago refletirá sobre a sua vida e o seu engajamento.

Cabra-Cega tem, nessa sua releitura da história recente, muito em comum com Quase Dois Irmãos (2004). O longa de Lucia Murat também confina um militante setentista de esquerda - neste caso, junto com presos comuns na Penitenciária da Ilha Grande - e o obriga a "parar para pensar". Entretanto, são propostas distintas. Toni Venturi não tem a ambição de Lucia, alça vôo mais modesto, mas por isso mesmo resulta mais coerente e conciso. Trata-se do típico pequeno grande filme.

Em um primeiro momento, esse thriller dramático parece querer aplicar uma lição de moral em Thiago. Um companheiro de aparelho, Pedro (Michel Bercovitch), por exemplo, participa de ações mas não deixa de viver a sua rotina acadêmica, muito menos a sexual - vivência que soa perda de tempo para o abnegado ferido. Aos poucos, porém, aprendemos a nos identificar (e a sofrer) com as angústias de Thiago. As suas mínimas vitórias no cárcere privado - descobrir o amor ou aquele LP do exilado Caetano, curtido com fone de ouvido para não chamar a atenção - passam a ser vitórias nossas também.

Ainda que o resto do elenco não se aprofunde tanto nos seus personagens como o talentoso Medeiros, ainda que o texto tenha resquícios de discursos, de diálogo "lido" - coisa que Venturi se preocupou em tentar limar - a direção segura não perde o foco da narrativa. Desde o começo equilibra bem a crítica consciente à implosão dos aparelhos e o afago emocional naqueles que um dia perderam a vida ou sobreviveram em nome da liberdade do país.