24 maio 2007

O Hospedeiro



Nota: 8

Quem acha que o cinema oriental se resume às escolas japonesas e chinesas (principalmente Hong Kong) está enganado. A Coréia do Sul vem caminhando a passos largos desde 1990 para se estabelecer como um dos pólos mais fortes da sétima arte. Tudo bem que a sua influência é menor do que as outras escolas citadas acima e seu apelo é ainda regional. Mas isso vem sendo revertido ao longo dos últimos anos. Prova disso foi o sucesso de Old Boy, de Park Chan-wook. Agora, mais um projeto se junta à lista. O Hospedeiro (Gwoemul, 2006) é o mais novo trabalho do jovem Bong Joon-ho, um nome a se prestar atenção. O filme se tornou a produção mais lucrativa da história da Coréia do Sul, foi ovacionado em diversos festivais e promete fazer uma ótima carreira internacional.

A trama começa com dois cientistas em um laboratório de uma base militar dos Estados Unidos na Coréia do Sul. Um deles, o norte-americano, ordena ao seu subalterno que despeje uma substância tóxica que irá escoar até o rio Han. Obviamente, o tal líquido irá gerar um mutante, um poderoso monstro que irá aterrorizar as pessoas que usam o rio como local de diversão. Com esse início, fica a impressão de mais uma produção repetitiva com os mesmos temas e situações. Que nada! Ao longo do filme, Joon-ho revitaliza o gênero. Ele cria elementos de curiosidade e suspense, que prendem o espectador em sua narrativa.

Perto do rio mora uma família que tem um quiosque de alimentação. Nele reside um pai idoso (Hie-bong Byeon), seu filho meio abobalhado Gang-du (Kang-ho Song) e sua neta (Ah-sung Ko). Fazem parte da família o desempregado Nam-il (Hae-il Park) e a competidora de torneios de arco de flecha Nam-ju (Du-na Bae). Um belo dia de sol o monstro resolve aparecer. O ataque é fenomenal e mortífero. No final, a pequena menina é levada pelo monstro. Ela é dada como morta, mas a família resolve se unir e partir em seu resgate. Ao mesmo tempo, o governo resolve isolar a área do rio. Eles acreditam que o bicho carrega um vírus letal.

O Hospedeiro é um filme de monstro. E dos bons. Tem todos os elementos característicos do estilo, além de ser uma história universal, mesmo sendo encenada na Coréia do Sul, com efeitos especiais ótimos. Apesar de não ter participado da computação gráfica, Peter Jackson deve ter ficado orgulhoso (sua empresa Weta Workshop - a mesma de O Senhor dos Anéis - cuidou do modelo da criatura). Uma produção marcada por um humor irônico, que surge nas situações mais estapafúrdias possíveis. Um humor satírico, quase absurdo. O interessante é que o tom de comédia não desvia a sua atenção. Ele é inserido para relaxar o público nos momentos mais tensos.

Ao mesmo tempo, é também uma aventura dramática embasada com um forte comentário sociopolítico. Bong Joon-ho, junto com os co-roteiristas Baek Cheol-Hyeon e Hah Joon-Won, aproveitou um incidente real que aconteceu em 2000 na Coréia do Sul para construir sua história. E o tema aqui não são só os perigos da poluição, mas a desconfiança em relação ao governo e suas costumeiras mentiras em situações como estas. E nessa crítica, nem os Estados Unidos escapam.

Escola de Idiotas


Nota: 1

Escola de Idiotas (School for Scoundrels, 2006) termina com cena de aeroporto. Você conhece cena de aeroporto, não conhece? Corre-corre no saguão, casal apaixonado perigando se separar por um vôo que já vai sair... Deve ter escrito no manual de embarque de Hollywood que gente apaixonada não precisa passar pela revista. Cadê a segurança nacional nessas horas?

Bem, repetindo, o fato é que, como milhares de outras comédias românticas, Escola de Idiotas termina com cena de aeroporto - e isso basicamente diz tudo sobre a qualidade do roteiro e o menosprezo da inteligência alheia. É a Verdade Incontestável da Metonímia Absoluta: se o filme termina com cena de aeroporto, não há mais nada que se possa fazer.

Então a questão é a seguinte (já que o filme é, por definição, metade comédia e metade romance): existe aí no meio alguma piada, nem que seja uma só, algum relampejo de originalidade, que compense o desfecho-chavão?

Aí depende do ponto de vista. Na história, Roger (Jon Heder) é um jovem guarda de trânsito que sofre de ansiedade e baixa auto-estima. Para superar esses problemas - e tentar conquistar sua vizinha, Amanda (Jacinda Barrett), mulher de seus sonhos - ele decide se matricular em um curso secreto, ministrado pelo estiloso Dr. P (Billy Bob Thornton), que ensina homens fracos a se tornarem leões. Roger aprende algumas lições - mas não demora até que o professor comece a se engraçar pra cima de Amanda também.

Depende muito, saber se virá um riso verdadeiro ou aquele riso amarelo, porque o espectador deparar-se-á com alguns tipos manjados - na classe de Roger tem o aluno careca, o aluno gordo, o aluno que ainda mora com a mãe... Estereótipos assim sempre redundam nas mesmas piadas, e rir delas depende muito do nível de tolerância do espectador. Em outras palavras, não há no texto ou na construção dos personagens nada muito ousado ou original.

Mas Jon Heder ajuda - e o filme, no fim das contas, é sobre ele e sua rivalidade com o canastrão Bob Thornton. Alçado ao estrelato depois de Napoleon Dynamite, atualmente em cartaz nos EUA com Escorregando Para a Glória, Heder é daqueles abençoados com uma feiúra singular - o avanço dos dentes se favorece pelo recuo do queixo e a boca aumenta em comparação com os olhos pequenos. Quando Heder tira a camisa, então... Ser feio e saber tirar proveito disso é o seu grande talento.

E a melhor qualidade dentre as poucas de Escola de Idiotas, mérito do diretor Todd Phillips (Caindo na estrada, Starsky & Hutch), é saber se aproveitar do desconstrangido Heder. Quando o ator veste aquele shorts "saint-tropeito" de jogar tênis, a câmera o enfoca de baixo para cima. Quando Heder veste a sunga para pular na piscina, Phillips pega o bailado submerso do branquelo magriça de todos os ângulos. A câmera parece ter afeição especial pelo close-up do ator - mesmo nos momentos "dramáticos" aquela boca dentuça sorri para nós, o que dá ao filme um sadio espírito de descompromisso, ainda que por um segundo.

Nesse ponto, Escola de Idiotas sabe muito bem seguir a grande linha da comédia recente de Hollywood (O Âncora, O Virgem de 40 anos, etc.), que é a linha do humor de constrangimento. O ator pode até se desinibir, mas a insistência da câmera em expor seu ridículo, em planos com duração maior do que a montagem padrão exige, transforma aquela desinibição em constrangimento para o espectador.

Se o filme fosse por esse caminho o tempo inteiro, seria ótimo. Mas há aquela responsabilidade com a fórmula - o personagem sempre precisa sofrer de amor entre uma piada e outra, ficar plantado sozinho com a flor na mão, tomar um temporal na cabeça quando sai de casa sem o guarda-chuva, correr pelo aeroporto... Não há boa vontade que resista. Desse jeito ainda vão inventar um beijo-na-chuva dentro do avião.

Homem-Aranha 3



Nota: 2

No primeiro filme ele ganhou seus poderes e aprendeu que deveria usá-los com responsabilidade social. No segundo, quase sucumbiu ao estresse dessa filantropia superpoderosa. No terceiro, desfruta de uma recém-adquirida celebridade - e paga o preço do sucesso e do distanciamento.

De certa forma, Sam Raimi, o criador independente de obras cultuadas como a trilogia Uma Noite Alucinante, também sofreu do "Mal de Parker". No terceiro filme da série que adapta as aventuras dos quadrinhos do maior herói da Marvel Comics, o cineasta - hoje também uma celebridade - teve um dos orçamentos mais gordos já vistos no cinema: insanos 258 milhões de dólares. Com isso, empolgou-se com efeitos e possibilidades técnicas e desconectou-se do que fez os dois primeiros longas tão excepcionais, o roteiro.

O maior erro de Homem-Aranha 3 é primário e encontrado em grande parte dos filmes de Hollywood: a necessidade de amarrar obsessivamente todos os personagens e obrigatoriamente inseri-los dentro do arco narrativo. Mania de curso de roteiro do tipo "receita de bolo" (quem já leu qualquer coisa do Syd Field sabe do que estou falando), em que todos os personagens precisam partir de um ponto e chegar noutro, aprender alguma coisa, crescer. Diabos, por que eles não podem passar o filme inteiro sem aprender coisa alguma? Por que todos os antagonistas têm que dividir núcleos dramáticos?

Nos filmes anteriores, algumas dessas idéias já apareciam, mas como o grupo era menor, ficava mais fácil explicá-las e justificá-las. Já o excesso de "gente" no terceiro filme exige um grau da chamada "suspensão de descrença" que desafia as leis da lógica - até mesmo as de um filme em que o protagonista foi mordido por uma aranha geneticamente alterada! Um exemplo simples pra ilustrar isso: Gwen Stacy (Bryce Dallas Howard) é colega de sala de Peter Parker (Tobey Maguire). Ao salvar um prédio em perigo na Ilha de Manhattan (1,5 milhão de habitantes), o Homem-Aranha depara-se justamente com... Gwen Stacy. Ao marcar um jantar romântico com Mary Jane (Kirsten Dunst) em um dos milhares de restaurantes da cidade, Parker encontra-se com... Gwen Stacy. Eddie Brock (Topher Grace), que mais tarde irá transformar-se no vilão vingativo Venom, antes de conhecer Parker estava saindo com... Gwen Stacy. Enfim, é mais fácil ser mordido por um queijo cottage radioativo que reunir tantas coincidências convenientes ao texto - e aqui só menciono uma de uma dezena. Há algumas muito piores, mas não quero estragar surpresas (desagradáveis). Onde está o acaso genuíno?

Nesse ponto o filme é tão falho que chega a denegrir toda a história da série. A palavra, pra quem não faz parte do nosso restrito mundinho nerd, diz respeito às "correções de continuidade" quando a origem ou o passado de um personagem não se adequam a uma necessidade narrativa contemporânea e roteiristas dão um "jeitinho", geralmente safado, de alterá-la. Sam Raimi, seu irmão Ted e Alvin Sargent fazem exatamente isso em Homem-Aranha 3, mexendo lá atrás, na morte do Tio Ben, que estava tão bem resolvida no primeiro filme. E o público ficou estúpido repentinamente?

Rumores dizem que as filmagens começaram sem um roteiro concluído. Ao término de Homem-Aranha 3 fica a sensação de que isso realmente aconteceu, tamanha a quantidade de absurdos.

Isso não significa, porém, que Homem-Aranha 3 não agrade por diversos outros aspectos - estéticos principalmente. A dinheirama sobra na telona, com efeitos especiais de cair o queixo nos nada menos que três novos vilões. O Homem-Areia (Thomas Haden Church), apesar de psicologicamente não chegar aos pés do saudoso Doutor Octopus (Alfred Molina, no segundo filme), dá um show de estilo. Sua transformação é sensacional, bem como seus agigantados arroubos de fúria granulada. Venom, o aguardadíssimo "Aranha do mal", está igualmente perfeito, idêntico aos quadrinhos. Menos interessante é o Novo Duende (James Franco), mas a cena de pancadaria aérea entre ele e o Amigão da Vizinhança é das melhores do filme.

Sensacional também é a seqüência em que Parker, dominado pelo simbionte alienígena que praticamente caiu do espaço nele (olha a coincidência absurda aí de novo... com uma área de 85 km² só em Manhattan, o bicho vai cair logo no pé do Aranha?) sai pela cidade totalmente alterado, seguro de si e totalmente sexy. É engraçadíssima e, mesmo sem efeitos e cascatas de dinheiro, faz valer o ingresso, juntamente com outras maravilhosas cenas cômicas (J.J. Jameson, a participação de Bruce Campbell...) que resgatam um pouco de dignidade ao texto.

Certos filmes crescem no público depois de serem assistidos. Homem-Aranha 3 empalidece. Filme fraco, sem sal, sem graça. E pensar que eles planejam fazer mais um trilogia... aranhas radioativas!

22 maio 2007

A Morte de um Bookmaker Chinês - Cassavetes (76)



Nota: 8,5

Mr. Sophistication e suas De-Lovelies se apresentam todas as noites, sob direção musical de Tony Maggio, no palco do Crazy Horse West, clube noturno de Los Angeles que flerta perigosamente com a decadência, mas que resiste às intempéries porque é administrado com amor e devoção por seu dono, Cosmo Vitelli.

A seiva de vida que John Cassavetes (1929-1989) extrai desses personagens faz de A Morte de um Bookmaker Chinês um de seus filmes mais impressionantes, e não só em virtude do patamar de excelência então alcançado pelo seu método de realização (seu longa anterior foi Uma Mulher sob Influência).

A história de Cosmo (Ben Gazzara) evoca a do próprio Cassavetes: um homem e seu sonho, nadando contra a corrente, cercado de uma trupe na qual confia, prestigiado por um público fiel e persistente até o fim. O cineasta trata esse protagonista romântico - que se envolve em séria confusão a partir de dívidas de jogo - com uma atenção exemplar.

Baseado em idéia para um policial "noir" que Cassavetes teve em conversa com Martin Scorsese, Bookmaker foi muito mal recebido na estréia. Remontado dois anos depois com cerca de 30 minutos a menos, encontrou, afinal, seu ponto.

Neste filme realizado em 1976, o diretor John Cassavetes exercita sua maestria habitual para descrever a jornada irreversível de um perdedor. Um grande perdedor dostoievskiano, Cosmo Vitelli (Ben Gazzara). Imigrante que se fez do nada, ele venceu na vida pelo próprio esforço. Hoje é dono do clube de striptease, onde é o pequeno rei de uma comunidade um tanto exótica. Uma verdadeira família, formada por ele, suas dançarinas, um cantor e mestre de cerimônias e alguns empregados.

O filme começa sob o signo deste sucesso, numa bela seqüência. Vestido a rigor, Cosmo passa na casa de suas três dançarinas favoritas, uma loura, uma ruiva e outra negra, uma mais bela do que a outra, cada uma vestida de uma cor. Para cada uma delas, tem uma flor que combina com seu vestido e uma taça de champanhe dentro da limusine. Toda essa liberdade e atitude de dono do mundo encontra o início do fim justamente no lugar para onde se dirigem Cosmo e suas acompanhantes: uma casa de jogo dirigida pela máfia.

A própria ida a este lugar é um desafio: Cosmo acabou de pagar o que devia aos integrantes do submundo para ter seu clube. Julga que agora pode tudo. Uma sensação que fica abalada quando ele perde no pôquer e se torna novamente devedor dos criminosos. Quando a manhã chega, ele tem de assinar papéis de compromisso com os chefões. Quando parte para levar, cavalheirescamente, suas belas em casa, acredita que poderá se safar da situação. Não é tão simples.

Longe de constituir um filme policial, como o nome até sugere, A Morte de um Bookmaker Chinês é a crônica de uma derrota. Uma derrota esplêndida, que paradoxalmente não arrasta a alma do personagem. A narrativa, que começa com um tom sedutor, torna-se sombria quando os bandidos vêm coletar a dívida. Não querem dinheiro, querem sangue. Exigem que Cosmo mate um bookmaker chinês (Soto Joe Hugh), que suje as mãos num acerto de contas que não lhe diz respeito. Ele não pode dizer não. A independência que ele tanto preza está definitivamente comprometida.

Mesmo acuado, Cosmo nunca esquece de sua comunidade: os artistas do Crazy Horse. Ele intermedia suas brigas, apara as arestas, telefona para comandar a casa quando está longe. Ali está sua verdadeira alma. O show tem de continuar. Manter a arte viva é preciso. Viver não é preciso.

Fiel ao seu cinema sem flashbacks, em que a história dos personagens está inscrita neles, Cassavetes cria condições para que a leiamos nesse desenrolar de sua vida sempre conjugada no tempo presente. A cena final é aberta o bastante para que se especule mais de um destino para o protagonista. O jogo com a inteligência da platéia continua depois que as luzes de cinema se acenderam.

Vermelho Como o Céu



Nota: 9

Não é difícil entender o porquê da seleção de Vermelho Como o Céu (Rosso Come Il Cielo, 2005) como o melhor filme de ficção na 30ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo no voto do público. O longa reúne elementos de fácil apelo, já bastante testados e aprovados pelo público, de enorme aceitação. Trata-se de um drama de superação baseado em fatos. E com crianças. E sobre cinema! É a trifeta do sucesso-família.

Isso não significa, porém, que se trata de um filme a ser execrado ou evitado. Pelo contrário. Os tais elementos, reunidos pela mão habilidosa do cineasta Cristiano Bortone, tornaram-se matéria-prima para uma obra sensível e com potencial para ser bastante lembrada e querida.

O diretor conheceu Mirco Mencacci, personagem principal da história, quando eles trabalharam juntos em Sou Positivo (Sono Positivo), longa que o cineasta lançou em 2000. Mencacci é cego desde a infância e atualmente um dos editores de som mais respeitados da indústria cinematográfica italiana. Ao saber da história de vida do profissional, deve ter parecido um desperdício a Bortone não realizar Vermelho Como o Céu. É praticamente um filme pronto.

Depois de um acidente no início da década de 1970, o toscano Mirco (vivido com intensidade por Luca Capriotti), aos oito anos, começou a perder gradualmente a visão. Além das brincadeiras infantis, as maiores perdas imediatas foram o cinema - que o garoto adorava - e a escola, já que o governo italiano na época não permitia que deficientes visuais dividissem as aulas com alunos "normais". Assim, ele é enviado a um tradicional instituto para meninos cegos em Gênova. E é lá, em meio à repressão da visão retrógrada sobre sua condição, que ele descobre sua vocação.

A história tem lá seus excessos (a manifestação parece um tanto atropelada, sem desenvolvimento), previsibilidades (o final é anunciado 10 minutos antes de acontecer) e personagens falhos (o diretor do instituto principalmente), mas no geral é mesmo cativante. O elenco de meninos - em sua maioria deficientes - é encantador. Simone Gullì, que vive o bonachão Felice, é um achado, bem como o protagonista, Capriotti.

E como não poderia deixar de ser, a edição de som - que curiosamente não tem a participação de Mirco Mencacci - é primorosa. As cenas de exploração sonora são excelentes e poéticas, captadas com tecnologia de ponta e cristalinas. Em determinados momentos, dá até vontade de fechar os olhos e "ver" o filme como seu personagem principal.

A questão mais estimulante com que se defronta o cineasta é: como filmar os sons? Por meio desse desafio o espectador é levado a questionar a uniformidade do mundo das imagens, do qual nos tornamos reféns. Pois, em vez de fetichizá-las, como no cultuado Cinema Paradiso, Vermelho desconstrói seu mecanismo, demonstrando, por meio dos sons, como se constitui a ilusão. Desse modo, o que oferece é uma lição plena de sentidos.

Marcas da Vida



Nota: 8,5

Marcas da Vida trata-se de um suspense ambientado no mundo atual, em que o pesadelo de câmeras que o escritor George Orwell criou em seu livro 1984 se tornou tão banal que qualquer um pode ser o ditador do próprio mundo, tamanha a facilidade em observar a vida alheia.

É nesse contexto que se apresenta Jackie (Katie Dickie), uma operadora de câmeras de segurança que passa o dia enclausurada numa sala. Seu trabalho consiste em observar uma série de monitores ligados a câmeras espalhadas pela cidade de Glasgow.

Em gramática cinematográfica, exposição é o termo usado para exprimir a maneira como a trama de um filme se desnuda ao espectador. A exposição em Janela Indiscreta não é verbal, mas visual: bastam dois porta-retratos para sabermos que James Stewart namora Grace Kelly e se arrebentou numa corrida de carros. Marcas da Vida (Red Road, 2006) é um representante da era Big Brother - trata de vigilância constante e invasão de privacidade. A exposição do filme, porém, contraditoriamente, é mínima.

A diretora inglesa Andrea Arnold - em seu primeiro longa-metragem, que já levou o prêmio do júri no Festival de Cannes de 2006 - economiza nas palavras. Com um recorte de jornal, ficamos sabendo que Clyde (Tony Curran) saiu da prisão antes do tempo. Com os olhares atravessados que Jackie (Kate Dickie) troca com o seu sogro, aprendemos que algo não deu certo em seu casamento. O que vem depois, até o fim da metragem, é um monte de dúvidas. O que faz com que Jackie, funcionária do centro de vigilância de Glasgow, o famoso CCTV do Reino Unido, espie e persiga Clyde pelas ruas o tempo inteiro?

O exemplo hitchcockiano não é só ilustração. Tanto o clássico quanto Marcas da Vida tratam de intimidade - e identidade - em um mundo dominado pela teleobjetiva. O caso é que não se desvenda uma pessoa à distância, mesmo com todos os olhares e todos os ângulos sobre ela. Esse é o paradoxo da modernidade, do acesso total à informação que, pelo excesso, representa acesso nenhum, que Andrea Arnold discute.

O espectador assume, pelas câmeras que Jackie controla no CCTV, o papel de voyeur. Ficamos sabendo que Clyde agora tem um serviço braçal, que ele transa com garotas no terreno baldio, que ele bebe com amigos, que ele mora em um edifício de apartamentos populares chamado Red Road. Não sabemos nada, porém, do que motiva Jackie a observá-lo. Uma diferença em relação a Janela Indiscreta está aí. Dividíamos com James Stewart apenas a curiosidade pelo outro e a busca do flagrante. Não há flagrantes em Marcas da Vida - o que tinha que acontecer já aconteceu.

E o que aconteceu Jackie não nos diz. A curiosidade dela pelo cara nasce de rancor, de atração, de medo, de ira? Marcas da Vida é um suspense primoroso justamente porque conserva, como poucos, esses mistérios. E a resolução do problema, tanto para Jackie quanto para nós, não se dá somente na imagem. (É nos suspenses que a imagem nos engana mais do que nunca.) A solução virá por meio de uma coisa rara nesses tempos de Second Life, de insulfilm, de CCTV, virá pelo contato.

16 maio 2007

Os 12 Trabalhos



Nota: 8,5

Se o diretor Ricardo Elias mantiver essa progressividade contínua do olhar apurado e do aprimoramento técnico e dramático de seus filmes, é bem capaz que daqui a 10 trabalhos ele consiga atingir o Olimpo. Os 12 Trabalhos (2007), seu segundo longa-metragem, mantém uma relação ainda que distante com seu projeto de estréia, De Passagem (2003), mas dá para se ver logo de cara que o resultado é superior. Há uma similaridade entre ambos na vontade de permear as veias urbanas, o caminho, o percurso, as linhas do mapa que delineiam uma cidade de São Paulo suja e caótica, porém necessária ao desenvolvimento do país.

Ambos os filmes retratam uma população em trânsito, em que o farol vermelho pode significar a estagnação de um projeto de vida. No primeiro projeto, a transição entre um ponto no espaço e outro se dá por meio de trilhos e trens, basicamente. O trajeto é remoto, efêmero, passa rápido. Já desta vez, as ruas e asfaltos saem do papel de figurantes e se tornam quase que personagens atuando colados aos protagonistas. A velocidade é igualmente máxima; não por afinidade com motores envenenados, mas numa tentativa selvagem de se ganhar dinheiro dentro de uma perversa economia desenfreada que ainda não entendeu direito os processos e efeitos da globalização. Entretanto, o recapeamento asfáltico não se evapora nem sai de cena. Ele se mantém perene, firme e forte, como se fosse o sustentáculo de sobrevivência de personagens esquecidos, secundários, invisíveis tais quais os entregadores de pizza.

Inspirado livremente no mito de Hércules, o filme retrata um momento da vida de Heracles (Sidney Santiago), um jovem negro da periferia de São Paulo que consegue emprego de motoboy graças à ajuda de seu primo Jonas (Flavio Bauraqui), com quem tem uma forte ligação de amizade. Em seu período de experiência é designado a realizar 12 tarefas, ou melhor, fazer 12 entregas rápidas pela cidade em um único dia. A chance de se tornar um motoboy é vista por ele como uma possibilidade de libertação. Se conseguir esse emprego, ele terá uma renda mensal, uma ocupação diária e a dignidade resgatada. Mas para atingir esse patamar de realização tem de se deparar com a burocracia, o preconceito, a grosseria e a desconfiança.

Assim como um motorista perdido no meio da complexa malha viária urbana, consultando o guia para a escolha acertada de uma via dentre inúmeras possibilidades, o filme também abre o leque para algumas interpretações. A utilização do menos conhecido nome grego de Hércules em detrimento do popular romano pode denotar um ato subversivo do diretor aos alicerces bibliográficos, fazendo com que Os 12 Trabalhos ganhe um semblante mais solto, mais autoral. Essa sutil inversão silábica faz com que Heracles seja único em seu espaço, pequeno diante da frota de 300 mil motoqueiros que circulam diariamente pelas avenidas mas grande em suas tentativas de reposicionamento social.

Deixando um pouco de lado aspectos de cunho sociológico dentro desse tema, anteriormente explorados no documentário Motoboys - Vida Loca (2004), de Caíto Ortiz, Os 12 Trabalhos mergulha no campo ficcional das situações ao mesmo tempo reais e pitorescamente improváveis. O exagero na retratação da chefe do estabelecimento de serviços terceirizados é uma liberdade antimítica que Elias usa com propriedade. Há uma fluidez interpretativa maior e mais coerente do que em relação ao filme primogênito.

Este hercúleo longa-metragem não deixa de ser também uma tentativa de sobrevivência aos arquétipos cinematográficos que ora caem em fórmulas gastas como Motoqueiro Fantasma (2007), ora destroem tudo quanto é beleza cinematográfica canônica como Borat (2006). Mais arterial do que a escola Globo Filmes, Os 12 Trabalhos atropela ostracismos cênicos à procura de seu espaço nas brechas entre retrovisores e faixas de pedestres, numa marcha acelerada de grosseria com civilidade. Ao final da jornada fica a sensação de que conquistou justamente o ordenado de seu suado labor, numa metrópole que mata dois motoqueiros por dia e um número equivalente de cineastas desapadrinhados.

Lady Vingança



Nota: 8

Assim como Cidade de Deus é sinônimo de cinema brasileiro. Todo mundo viu, todo mundo gosta e Fernando Meirelles é nossa bandeira da Sétima Arte lá fora. Assim é para os sul-coreanos, Oldboy (2003), do genial Park Chan-Wook.

Capítulo central da Trilogia da Vingança do cineasta, o filme ganha agora companhia no Brasil, com o lançamento de Lady Vingança (2005), fecho da série iniciada por Sympathy for Mr. Vengeance(2002). Finalmente teremos mais assunto com os colegas sul-coreanos...

O drama segue a estilosa e frenética cartilha de Oldboy, integrando-se plástica e tematicamente à cultuada série, incluindo aí a ausência de linearidade, com a trama avançando e retrocedendo a todo momento, conforme os planos da personagem principal se apresentam. Mas o diretor também adiciona um elemento inédito à trilogia: a sensibilidade feminina. A belíssima abertura, toda em tons claros e com muito branco - algo extremamente significativo para a história - é deslumbrante, incluindo a bela música tema de Cho Young-wuk (também de Oldboy), e já dá indícios do que esperar: Na pele alva de uma bela mulher, grafismos vermelhos como sangue. Esse contraste visual é recorrente no filme, especialmente no visual de Lee Geum-ja, a personagem principal, vivida pela popular atriz coreana Lee Young-ae.

Geum-ja passou os últimos treze anos na cadeia, pagando seu débito para com a sociedade devido ao cruel assassinato de um garoto de 7 anos. Mas o crime não é tão simples quanto parece - e a angelical detenta aguarda 13 anos planejando pacientemente sua vingança contra o responsável pela sua prisão.

Acontece que Geum-ja não é o atormentado brutamontes Oh-Dae Su de Oldboy (interpretado por Choi Min-sik, que também tem papel fundamental - e atuação maravilhosa - em Lady Vingança). Wook-Park brinca com as expectativas do público, acostumado a ver machões vingativos (ou mesmo "machonas", feito a Noiva de Tarantino), apresentando uma protagonista diferente.

Ela quer vingança, sim. Mas também, na evoluída ótica das mulheres, busca redenção. É justamente nesse ponto que Lady Vingança torna-se um filme tão excepcional quanto Oldboy - na virada não do roteiro, mas da personagem.

Não é a compreensão da situação pelo público que muda, mas a percepção da personagem principal. E o resultado dessa mudança é memorável e, curiosamente, de uma violência psicológica como poucas. Dá vontade de virar o rosto em determinados momentos, apenas para não ter que dividi-los com os envolvidos. E não se tratam de línguas cortadas ou polvos mascados, mas viscerais debates sobre responsabilidade, ética e justiça e decisões que pesam sobre os ombros de pessoas tão normais quanto cada um de nós. A violência em Lady Vingança é social e política, além de tóxica.

Hércules 56



Nota: 8,5

O documentário Hércules 56, de Sílvio Da-Rin insere-se na vasta e interminável filmografia que tem a ditadura militar de 1964 como elemento inspirador. O tema é recorrente, seja no documentário (Jango, Barra 68, Vlado), seja na ficção (Batismo de Sangue, Prá Frente Brasil, Lamarca), sem falar em O Que É Isso Companheiro, de Bruno Barreto, que narra o mesmo episódio priorizando o entretenimento.

Para quem conhecia a história do seqüestro do embaixador norte-americano e sua posterior troca por 15 presos políticos (enviados no México a bordo do tal avião Hércules 56) apenas pelo filme de Barreto, o documentário de Da-Rin é uma proveitosa luz na escuridão. A começar por colocar o deputado Fernando Gabeira, autor do belo (e oportuno à época) livro que inspirou o filme, em seu devido lugar: um mero coadjuvante do seqüestro, a ponto de nem participar do filme. Ele apenas é citado no depoimento do hoje ministro Franklin Martins, este sim um dos mentores do plano.

Sílvio Da-Rin se propõe a contar a história do seqüestro e da viagem dos presos políticos a partir do depoimento dos envolvidos. Teórico do documentário, ele é autor do ótimo Espelho Partido, um livro que contextualiza a evolução da linguagem do gênero e enumera as armadilhas que espreitam o caminho de quem pretende fazer do documentário um reflexo da realidade. Para Sílvio, esse reflexo tende a funcionar melhor com a transparência de sua metodologia, ou seja, a quebra do espelho, para a reflexão possível depois de montados os cacos.

O teórico se sai muito bem quando passa à prática. Dribla como Garrincha duas das principais armadilhas dos depoimentos históricos, ou seja, uma certa tendência do depoente a reinventar o mundo de forma favorável e a visão translúcida de fatos distantes no tempo. Ao reunir cinco dos mentores do seqüestro numa mesa de bar (aparentemente sem bebidas alcoólicas), ele consegue uma melhor aproximação entre reflexo e real. Na presença de todos os envolvidos, quase como uma acareação, é muito mais difícil distorcer a realidade. Da mesma forma, lapsos de memória de um são preenchidos por outro.

A presença de velhos conhecidos à mesa de bar permitiu um clima amplamente favorável ao tema. Possibilitou um dos grandes momentos do filme, que é a sincera autocrítica dos resultados da luta armada no Brasil. Só isso já valeria o ingresso, mas o filme de Sílvio oferece mais. Na contra corrente da não utilização da música no documentário, ele a usa de forma contida e absolutamente funcional dentro da história que pretende contar. Desde "Hasta Siempre Comandante", fechando a fase cubana, até a contida versão de Jards Macalé para "Aquele Abraço", na volta ao Brasil, em plena sintonia histórica com os relatos, até os sons de fundo como moldura para certas passagens.

Os depoimentos são colocados de duas formas distintas. Os mentores do seqüestro contam suas versões na mesa de bar, com o processo de filmagem escancarado. Os microfones invadem despudoradamente a cena e o próprio Sílvio aparece ao lado dos depoentes, fazendo poucas intervenções. Paralelamente, os presos políticos que embarcaram no vôo do Hércules 56 são entrevistados da forma habitual, sozinhos, em suas casas ou escritórios. Afinal, são visões individuais da soltura e da viagem.

Outra boa sacada é a manutenção do letreiro com o nome do depoente sobre suas fotos em dois momentos: na época e nos dias atuais. Não é uma criação funcional apenas do ponto de vista estético. Ela permite ao espectador uma dimensão do tempo que nos separa do vôo do Hércules.

Outro mérito do filme é que a informalidade permitiu boas doses de humor, com efeito bastante reflexivo. Há episódios pitorescos, como a chegada ao México, quando as autoridades mexicanas reclamam junto aos militares, em espanhol, do uso das "esposas" (algemas) nos presos, e o comandante militar brasileiro responde que nenhum dos presos veio com as esposas (mulheres), que diz muito sobre o preparo dos militares para a missão. Mas há também divertidas autocríticas da tendência ao divisionismo das esquerdas, como quando um deles conta que um torturador, em meio à tortura, diz que eles nunca vão vencer os militares com tantas facções distintas. O diretor teve o bom-senso de não tentar didatizar as dezenas de grupos políticos citados pelos depoentes, caso contrário teria de dobrar a metragem do filme.

Da-Rin faz bom uso (ainda que econômico) de um minucioso levantamento de imagens antigas. Os seis integrantes do grupo de presos políticos que já morreram aparecem em preciosos depoimentos dados à época em que desembarcaram em Cuba. Cenas da decolagem do Hércules, a chegada ao México, a passagem por Cuba e outras, estabelecem bom diálogo com os depoimentos, construindo um todo coeso. Brilhante como forma e conteúdo, Hércules 56 entra para a galeria de grandes documentários brasileiros em lugar de destaque.

Baixio das Bestas



Nota: 7,5

Seja na capital ou no campo, o desencanto com a paisagem humana é o mesmo. Depois de nos apresentar aos instintos mais baixos dos recifenses em Amarelo Manga, o cineasta pernambucano Cláudio Assis mostra em Baixio das Bestas que a perspectiva na Zona da Mata não é muito melhor. Especialmente porque ali o tempo - o senhor de qualquer mudança - não passa.

Caminhões com a carga da cana-de-açúcar cortada atravessam a cena o tempo inteiro. É o indicativo de movimento. Já quem mora na vizinhança da Usina Cruangi, e não está de passagem, nasceu e morrerá no mesmo lugar. Tem o velho que cuida da neta incorporando, ao mesmo tempo, o carcerário, o cafetão e o incestuoso. Há os agroboys que passam o dia batendo punheta no cinema abandonado. E as prostitutas que passam a tarde esperando ansiosas pela orgia da noite. Com os caminhões, outro único indício de evolução: a plantação de cana que cresce, amadurece, colhe-se e queima.

Você pode chamar Cláudio Assis de putanheiro e mal-intencionado, mas não pode dizer que ele desconhece o que está fazendo. O cineasta e a sua equipe dominam câmera, lente e corte. Com as tomadas fixas no tripé, atores no meio do plano sem muita movimentação, enquadrados com rigor, ele nos transmite o engessamento do tempo de forma limpa. Com a opção pelo formato cinemascope (lente que alarga as horizontais, para fazer o filme caber na tela inteira na hora de exibir), ele apequena ainda mais as pessoas na paisagem fixa. Com a montagem dinâmica, contrapondo planos gerais da plantação e da estrada à encenação propriamente dita, ele nos mostra que o tempo está, sim, passando. É só aquela gente vil do baixio, com referencial corrompido, que não vê.

A certa altura o agroboy vivido por Matheus Nachtergaele, na cabine de projeção do velho cinema, olha para a câmera, para nós, enquanto fuma seu baseado, e solta: "o bom do cinema é que você pode fazer o que quiser". Poder, pode - a questão é saber como. Assis amadurece do primeiro para o segundo longa, mas não dá pra dizer que ele virou um acadêmico - com sorte, jamais se dirá. A prioridade é a controvérsia, e tome nudez, palavrão, violência. Homem nasceu mesmo para o mal. Dramaturgicamente, cria-se até um impasse: não há surpresa possível quando os personagens fazem o que já se espera deles.

Baixio das Bestas confirma o que Amarelo Manga (2002) já havia demonstrado: no cenário de pasmaceira dominante do atual cinema brasileiro de ficção, é natural que se acompanhe de perto, e com interesse, a parceria de inconfundível personalidade entre o diretor Cláudio Assis e o roteirista Hilton Lacerda - que também colaborou em Baile Perfumado (1997), de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, e Árido Movie (2004), de Ferreira.

Em Amarelo Manga, ao menos duas vigas sustentavam a busca por uma abordagem de risco: o feixe de personagens atípicos, comprimidos em panela de pressão que parece o tempo todo prestes a explodir, com uma série de dramas interligados pelo fio um tanto esgarçado do acaso; e o rigoroso tratamento estético - com ênfase na fotografia de Walter Carvalho e na direção de arte de Renata Pinheiro - que procurava integrar o conjunto.

Baixio reúne o mesmo núcleo de colaboradores (reforçado pelo operador de câmera Lula Carvalho e anabolizado pela filmagem em esplendoroso super 35 mm) e radicaliza as duas coordenadas: a beleza da textura e dos enquadramentos serve ao horror da sociedade de consumo em estado bruto, sem perspectivas -certa miséria existencial que leva a um desenho do mundo como uma gaiola em que os mais fortes devoram os mais fracos, mas continuam presos ali.

Cria-se, no entanto, um ruído: esse universo de barbárie não é exposto de dentro, pelas suas próprias entranhas, mas de fora, por um olhar que se apresenta como estrangeiro e, nas cenas de violência sexual contra mulheres, um tanto voyeurístico, abdicando do poder de sugestão das imagens em nome da crueza descritiva.

O filme, pela abordagem e pelo universo explorado, teria um grande potencial crítico e contestador, algo que falta ao cinema brasileiro atual, tão distante do cinema novo, mas o diretor optou por bestializar o homem, e os culpados acabam sendo os próprios homens. Como sempre, na cinematografia burguesa brasileira, o culpado pela sua desgraça é o próprio pobre, e mostrar ele como um animal humano, é sempre mais fácil do que criticar a própria burguesia e o sistema pseudo-democrático que mantem esse cinema alienante funcionando.

14 maio 2007

Batismo de Sangue



Nota: 9

Histórias sobre a ditadura brasileira (1964-1985) formam uma das fontes de inspiração do cinema brasileiro atual. Depois do sucesso e premiações de O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, de Cao Hamburger - que chegou a competir no Festival de Berlim -, chega às telas Batismo de Sangue.

Dirigido pelo mineiro Helvécio Ratton (Uma Onda no Ar), o filme, que recebeu os troféus de melhor direção e fotografia no Festival de Brasília 2006, adapta as memórias do religioso e escritor mineiro Frei Betto, como é conhecido o frade, jornalista e escritor Carlos Alberto Libânio Christo, ex-assessor do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Exibindo cenas de tortura com uma franqueza que o cinema nacional não registrava havia muito tempo, como aconteceu em filmes como Lúcio Flávio, Passageiro da Agonia (1977), de Hector Babenco, e Pra Frente Brasil (1982), de Roberto Farias, Batismo de Sangue aborda um período que começa em 1968, quando um grupo de jovens frades dominicanos aderiu à luta armada.

Sem o conhecimento da cúpula da Igreja Católica, esses religiosos faziam contatos e davam apoio à fuga de guerrilheiros de esquerda, em plena ditadura militar, governo do general Emílio Garrastazu Médici.

Entre eles, Frei Betto (Daniel Oliveira) e Frei Tito de Alencar (Caio Blat) - que terminou se suicidando na França, em 1973, depois de sofrer um longo processo de depressão, causado pelas torturas sofridas sob as ordens do delegado Sérgio Paranhos Fleury (Cássio Gabus Mendes).

O projeto dessa filmagem começou em 2002, quando Frei Betto enviou ao diretor Helvécio Ratton seu livro Batismo de Sangue com uma dedicatória: "Coragem! A realidade extrapola a ficção." Também ajudou Ratton o fato de ter militado na luta armada nos anos 1970. O futuro cineasta chegou a viver exilado no Chile por alguns anos.

Ao voltar ao Brasil em 1973, foi preso e passou alguns meses em celas escuras, isolado e, às vezes, completamente nu e encapuzado, como ele relata no livro Helvécio Ratton - O Cinema Além das Montanhas, de Pablo Villaça, da Coleção Aplauso, da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.

O filme tem, é claro, "a tortura como um personagem central", observa o diretor, já que o filme narra o apoio de frades dominicanos a grupos de esquerda que lutavam contra a ditadura militar brasileira dos 60 e, sobretudo, os efeitos da prisão e tortura em Frei Tito, que se suicidou na França, em 1974, aos 29 anos, sofrendo de visões persecutórias.

Quando Batismo de Sangue deu a Ratton o troféu Candango de melhor diretor, no Festival de Brasília, no ano passado, Frei Betto referendou o filme e a iniciativa de abordar os anos de chumbo no cinema.

"Não queremos vingança, mas esquecer seria injusto", afirmou o religioso. Ratton, que viveu exilado no Chile durante a ditadura militar, diz que "o revanchismo" tampouco é sua meta com o filme, mas acredita que "se estabeleceu no Brasil um pacto de silêncio em relação à tortura".

O diretor pretendeu romper esse pacto, filmando com intenso realismo as cenas de tortura que terminaram por arrancar dos frades a informação que levou ao assassinato, em 1969, do líder guerrilheiro Carlos Marighella (Marku Ribas) pelo delegado Fleury (Cassio Gabus Mendes) e sua equipe.

"Tito foi quebrado pela tortura. Mostrar isso com meias-verdades seria de um cinismo enorme, em nome não sei de quê, a não ser esse pacto do silêncio. Chega de meias-verdades. Vamos às verdades inteiras", afirma o diretor.

A representação da tortura por Ratton em Batismo de Sangue tem sido um aspecto questionado pela crítica, que enxerga nela certa intenção sádica do cineasta.
Ratton diz se espantar com o fato de que a mesma atenção da crítica brasileira não se volte para o blockbuster norte-americano 300, em que a violência é muito mais explícita e brutal".

Para o diretor, no entanto, há uma explicação para o incômodo que a abordagem da tortura em seu filme provoca. "Acho que o que dói em Batismo de Sangue é que aquilo aconteceu realmente e há muito pouco tempo. Foi ontem, em relação ao tempo histórico. Os personagens dessa história ainda estão vivos", afirma.

Mas não é só a barbárie que Batismo de Sangue encena. Numa reconstituída carceragem do DOPs que existiu em São Paulo, os frades presos rezam uma missa em que o vinho é substituído por Q-Suco de uva e a hóstia, por bolachas Maria.

"Acho que essa cena passa a idéia da resistência, não a física, mas aquela que possibilita emergir de um momento de desespero", avalia o diretor, que prepara novo longa com "um pouco de leveza, para compensar a densidade".

Proibido Proibir



Nota: 7

A alegria e a dor de ter 20 anos transpiram no brasileiro Proibido Proibir, assim como amores e dissabores.

Triângulos amorosos em que dois grandes amigos se apaixonam pela mesma mulher são recorrentes no cinema. O caso clássico é Jules e Jim, de François Truffaut. Na filmografia brasileira recente, temos Cidade Baixa, de Sérgio Machado, e agora Proibido Proibir.

Não é nisso, portanto, que reside a originalidade do filme de Jorge Durán, e sim no seu enfoque de um dos grandes temas, se não o único, do cinema nacional: os impasses da classe média diante das contradições sociais do país.

Os três protagonistas são estudantes de uma universidade pública do Rio de Janeiro. Leon (Alexandre Rodrigues, o Buscapé de Cidade de Deus) estuda sociologia. Sua namorada, Letícia (Maria Flor), arquitetura. E seu amigo e companheiro de apartamento Paulo (Caio Blat) faz medicina.

Na hora de colocar à prova os conhecimentos adquiridos no campus, cada um deles tem um rico corpo-a-corpo com a cidade do Rio e, por extensão, com o Brasil. E os três acabarão envolvidos numa situação crítica quando o filho de uma paciente pobre de Paulo é jurado de morte por policiais corruptos.

"É proibido proibir", como se sabe, foi um dos slogans da rebelião estudantil de maio de 1968 na França e também título de uma polêmica canção de Caetano Veloso. O mote aponta para a liberdade absoluta, para a subversão de todas as normas repressivas.

A trama é muito bem construída, as situações são convincentes e os atores, não apenas o trio protagonista, defendem seus personagens com garra, em especial Caio Blat, que se afirma como um dos grandes talentos da nova geração.

Merece destaque também a maneira como Durán captou a geografia carioca. Na contramão da maioria dos filmes rodados no Rio, Proibido Proibir praticamente passa ao largo da orla da zona sul e dos morros favelizados, espraiando-se entre o centro e os subúrbios "planos" da zona norte e destacando (graças à carreira de Letícia) marcos da arquitetura urbana, como a igreja da Penha e o edifício Capanema.

O final em aberto, que não convém revelar aqui, é pleno de significado afetivo e político, sobretudo quando, já sobre os créditos, a voz roufenha de Nelson Cavaquinho canta o clássico samba "Juízo Final".

Chileno radicado no Brasil desde 1973, Jorge Durán, roteirista de alguns de nossos filmes mais importantes, retorna à direção duas décadas depois de seu outro único longa, A Cor do Seu Destino (1986). Cabe esperar que Proibido Proibir, premiado nos festivais de Biarritz e Havana, seja o início de uma nova e vigorosa fase.

O que o filme tem como diferencial é uma vívida intersecção entre o individual e o social, criando uma situação em que os três estudantes atravessam a fronteira invisível, porém real, da cidade dividida do Rio de Janeiro. Para localizar os filhos de uma paciente do Hospital Universitário, Paulo e os amigos acabam se arriscando numa favela, onde têm um encontro direto com a violência que só conhecem pelos noticiários.

A audácia deles nessa incursão nada tem de inverossímil. Ao contrário, mostra total coerência com a generosidade e paixão destes três seres que, por talento do roteiro e da direção, sem contar a entrega dos atores, parecem totalmente reais, de carne e osso.

Mais de uma pessoa estranhou que o filme fosse escrito e dirigido por um sessentão, o que é puro preconceito, afinal. Durán exibe uma energia que, ao que tudo indica, continuará a gerar novos e belos filmes. O próximo já está sendo preparado, novamente com Caio Blat no elenco.

09 maio 2007

Eu Me Chamo Elizabeth



Nota: 8

Eu me Chamo Elisabeth, aborda o rito de passagem da infância para a adolescência com a delicadeza e a sinceridade que o tema exige. No centro do filme, está Betty (a encantadora Alba Gaïa Kraghede Bellugi), menina de dez anos que mora com a família em um casarão na França rural da década de 40.

Betty vive uma série de perdas e decepções ao longo da trama: primeiro, sua irmã mais velha vai estudar fora; depois, sua mãe (Maria de Medeiros) decide deixar seu pai (Stéphane Freiss); por fim, seu melhor amigo a engana diante dos colegas de escola.

O filme tem direção de Jean-Pierre Améris (Más Companhias), que também escreveu o roteiro, com ajuda de Guillaume Laurant (colaborador de O Fabuloso Destino de Amélie Poulain).

Elizabeth, ou Betty, é interpretada pela iniciante Alba Gaïa, que até então só havia feito uma ponta no filme de François Ozon O Tempo que Resta.

A jovem atriz se mostra mais do que confiante no papel de uma criança que vive no limite entre o drama da solidão e o histerismo do medo de fantasmas.

Seus problemas tornam-se mais latentes quando sua irmã é matriculada em um colégio interno e seus pais estão em vias de separação. No mundo estóico de Betty, nem mesmo a empregada da casa a ajuda, já que é praticamente muda.

A oportunidade de encontrar um amigo, ou ao menos alguém para confessar o quanto está sozinha, acontece quando um dos pacientes da clínica que seu pai dirige foge e entra no jardim da casa de Betty.

A menina, ao vê-lo indefeso, acaba escondendo-o em uma cabana usada para guardar bicicletas. Como o lugar é inadequado e o fugitivo se nega a ir sozinho para longe, Betty decide partir com seu confidente.

A história tem muito a oferecer ao público mais jovem. Grande parte do mérito recai no excelente trabalho com os atores, no roteiro sensível sem ser piegas e na fotografia bucólica, sedutora. Em especial, no carisma cintilante da jovem atriz, cuja naturalidade mostra-se envolvente e encantadora.

Inferno



Nota: 7,5

Inferno (L'enfer, 2005), dirigido por Danis Tanovic, (oscarizado por Terra de Ninguém) é a segunda parte de uma trilogia (paraíso/inferno/purgatório) concebida pelo cineasta Krzysztof Kieslowski, com roteiro escrito por ele e seu colaborador Krzysztof Piesiewicz. Mas com a morte do cineasta da Trilogia das Cores em 1996, o primeiro filme, Paraíso, acabou dirigido por Tom Tykwer (Corra, Lola, Corra). Por causa do tema, notamos que Tykwer procurou imagens mais oníricas e etéreas, em que sua câmera dava uma impressão de liberdade. O azul era a cor predominante. Tanovic toma um caminho diferente. Seu filme possui uma estrutura fechada, quase que sufocante, em que o vermelho dita o tom.

Na trama Sophie, Céline e Anne são irmãs. A primeira (Emmanuele Béart, um espetáculo de mulher e atriz), mais velha entre as três, mora com o marido (Jacques Gamblin) em Paris. Ela acredita que seu marido a trai e sai em busca de provas. A caçula Anne (Marie Gillain) estuda arquitetura e mantém uma relação passional com seu professor, Fréderic (Jacques Perrin), que é pai de sua melhor amiga. Céline (Karin Viard) é solteira e vive para cuidar da mãe (Carole Bouquet), inválida. Ela está sendo seguida por um misterioso homem (Guillaume Canet). Notamos que todas as três estão vivendo uma espécie de inferno na Terra. Um mundo de decepções, angústia, romances frustrados e obsessões. Estão condenadas a repetirem os mesmos erros e cometerem as mesmas crueldades que sofreram.

O roteiro de Kieslowski e Piesiewicz busca inspirações em O Inferno de Dante, e em Medéia, de Eurípides. O infanticídio aqui é emocional. Tragédia e amor não correspondidos são o combustível que movem os personagens. Tanovic aproveita essas influências para criar metáforas visuais que corroboram a epístola. Coisas como uma abelha tentando subir em um canudo para não se afogar dentro de um copo com um líquido vermelho. Ou mesmo Sophie arrancando vagarosamente as folhas de uma planta. Figuras que representam sua fragilidade em meio de sua tortura psicológica.

A linguagem cinematográfica acompanha o jogo cênico. Tanovic por muitas vezes carrega sua câmera com movimentos delicadamente espirais reforçando as imagens de um caleidoscópio que abrem e fecham a narrativa. Isso representa uma jornada complexa de multifacetadas camadas de um mundo claustrofóbico, em que os erros serão cometidos de geração para geração. Mas Tanovic mostra que a salvação não está longe. Será um caminho árduo, mas em direção à luz. Para isso os personagens precisarão confrontar a verdade. Para aliviar a dor, uma peça do intricado quebra-cabeça só será revelada no final. Mas isso também poderá causar uma enorme desilusão.

Tecnicamente podemos destacar ainda o ótimo trabalho de fotografia de Laurent Dailland e da cenógrafa Aline Bonetto. No campo das interpretações é impossível destacar alguém no elenco. Protagonistas e coadjuvantes defendem seus personagens com bastante dignidade e perícia. Até mesmo o veterano Jean Rochefort aparece em uma ponta como um dos pacientes da clínica na qual a mãe das três irmãs está internada. Agora é esperar para quem vai ser o escolhido para retratar o purgatório.

Ódique?



Nota: 6

"Ah, a juventude de hoje em dia. Pra onde esse mundo vai? Porque, no meu tempo, os jovens não viviam fumando maconha e falando palavrão desse jeito."

É esse tipo de indignação de ponto de táxi que impregna Ódiquê?, primeiro longa-metragem de Felipe Joffily. Não é, porém, um catastrofismo de cima para baixo, nostálgico. O "no meu tempo" é o agora. Como o paulistano Cama de Gato, o filme carioca é um retrato pessimista pintado por quem compartilha os vinte anos. A diferença é o sotaque.

O diretor Joffily estava chegando aos 30 quando rodou o filme há oito anos. Na história, três amigos (Cauã Reymond, Dudu Azevedo e Alexandre Moretzsohn) se reúnem para planejar a viagem que eles farão no Carnaval para Arraial d'Ajuda, na Bahia. O problema é que um deles foi escalado para trabalhar no feriado e decidiu pedir demissão. Como conseguir dinheiro? Com uma arma emprestada, um carro importado do amigo playboy e muito "tóxico" na cabeça.

A comédia dramática Ódique?, é uma espécie de resposta carioca ao paulista Cama de Gato, com alguns toques de Cidade de Deus. No elenco, estão Cauã Reymond, Leo Carvalho e Cássia Kiss.

O filme tem a pretensão de ser um retrato crítico da juventude de classe média carioca, que não mede esforços para alcançar seus objetivos - seja lá quais forem.

No caso, é algo banal, como passar o Carnaval no Nordeste. Para conseguir dinheiro, eles se envolvem em crimes que viram uma bola de neve.

O trio central é interpretado por Reymond, Alexandre Moretzsohn e Eduardo Azevedo, que seriam os representantes típicos de uma parcela da juventude da classe média carioca, que só quer se dar bem. Um deles não pensa duas vezes antes de abandonar o emprego, para não ter que trabalhar durante o feriado e frustrar seus planos de viagem.

Os outros dois não parecem ter muitas perspectivas na vida, por isso a viagem só é mais uma curtição. Para conseguir o dinheiro, eles chamam o amigo Paulinho Tantan, playboy filho de político, que adora se envolver numa briga e sempre se safa por conta do seu dinheiro.

O plano inclui um seqüestro, que acaba não dando muito certo, e leva o quarteto a entrar em outras confusões, como um assassinato e a simulação de um outro seqüestro.

Ódiquê? pretende incomodar e acaba conseguindo, ao tentar dar legitimidade aos atos moralmente repreensíveis de seus personagens.

Tito, personagem de Reymond, agride duas vezes um flanelinha negro e deficiente mental. A cena parece querer criar na platéia uma repulsa contra o personagem, mas o desenrolar da trama mostra que "eles não são tão maus assim", como tenta confirmar o final da história.

Em tempo: "ódiquê" é corruptela no carioquês, para "ódio de quê?".