Baixio das Bestas
Nota: 7,5
Seja na capital ou no campo, o desencanto com a paisagem humana é o mesmo. Depois de nos apresentar aos instintos mais baixos dos recifenses em Amarelo Manga, o cineasta pernambucano Cláudio Assis mostra em Baixio das Bestas que a perspectiva na Zona da Mata não é muito melhor. Especialmente porque ali o tempo - o senhor de qualquer mudança - não passa.
Caminhões com a carga da cana-de-açúcar cortada atravessam a cena o tempo inteiro. É o indicativo de movimento. Já quem mora na vizinhança da Usina Cruangi, e não está de passagem, nasceu e morrerá no mesmo lugar. Tem o velho que cuida da neta incorporando, ao mesmo tempo, o carcerário, o cafetão e o incestuoso. Há os agroboys que passam o dia batendo punheta no cinema abandonado. E as prostitutas que passam a tarde esperando ansiosas pela orgia da noite. Com os caminhões, outro único indício de evolução: a plantação de cana que cresce, amadurece, colhe-se e queima.
Você pode chamar Cláudio Assis de putanheiro e mal-intencionado, mas não pode dizer que ele desconhece o que está fazendo. O cineasta e a sua equipe dominam câmera, lente e corte. Com as tomadas fixas no tripé, atores no meio do plano sem muita movimentação, enquadrados com rigor, ele nos transmite o engessamento do tempo de forma limpa. Com a opção pelo formato cinemascope (lente que alarga as horizontais, para fazer o filme caber na tela inteira na hora de exibir), ele apequena ainda mais as pessoas na paisagem fixa. Com a montagem dinâmica, contrapondo planos gerais da plantação e da estrada à encenação propriamente dita, ele nos mostra que o tempo está, sim, passando. É só aquela gente vil do baixio, com referencial corrompido, que não vê.
A certa altura o agroboy vivido por Matheus Nachtergaele, na cabine de projeção do velho cinema, olha para a câmera, para nós, enquanto fuma seu baseado, e solta: "o bom do cinema é que você pode fazer o que quiser". Poder, pode - a questão é saber como. Assis amadurece do primeiro para o segundo longa, mas não dá pra dizer que ele virou um acadêmico - com sorte, jamais se dirá. A prioridade é a controvérsia, e tome nudez, palavrão, violência. Homem nasceu mesmo para o mal. Dramaturgicamente, cria-se até um impasse: não há surpresa possível quando os personagens fazem o que já se espera deles.
Baixio das Bestas confirma o que Amarelo Manga (2002) já havia demonstrado: no cenário de pasmaceira dominante do atual cinema brasileiro de ficção, é natural que se acompanhe de perto, e com interesse, a parceria de inconfundível personalidade entre o diretor Cláudio Assis e o roteirista Hilton Lacerda - que também colaborou em Baile Perfumado (1997), de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, e Árido Movie (2004), de Ferreira.
Em Amarelo Manga, ao menos duas vigas sustentavam a busca por uma abordagem de risco: o feixe de personagens atípicos, comprimidos em panela de pressão que parece o tempo todo prestes a explodir, com uma série de dramas interligados pelo fio um tanto esgarçado do acaso; e o rigoroso tratamento estético - com ênfase na fotografia de Walter Carvalho e na direção de arte de Renata Pinheiro - que procurava integrar o conjunto.
Baixio reúne o mesmo núcleo de colaboradores (reforçado pelo operador de câmera Lula Carvalho e anabolizado pela filmagem em esplendoroso super 35 mm) e radicaliza as duas coordenadas: a beleza da textura e dos enquadramentos serve ao horror da sociedade de consumo em estado bruto, sem perspectivas -certa miséria existencial que leva a um desenho do mundo como uma gaiola em que os mais fortes devoram os mais fracos, mas continuam presos ali.
Cria-se, no entanto, um ruído: esse universo de barbárie não é exposto de dentro, pelas suas próprias entranhas, mas de fora, por um olhar que se apresenta como estrangeiro e, nas cenas de violência sexual contra mulheres, um tanto voyeurístico, abdicando do poder de sugestão das imagens em nome da crueza descritiva.
O filme, pela abordagem e pelo universo explorado, teria um grande potencial crítico e contestador, algo que falta ao cinema brasileiro atual, tão distante do cinema novo, mas o diretor optou por bestializar o homem, e os culpados acabam sendo os próprios homens. Como sempre, na cinematografia burguesa brasileira, o culpado pela sua desgraça é o próprio pobre, e mostrar ele como um animal humano, é sempre mais fácil do que criticar a própria burguesia e o sistema pseudo-democrático que mantem esse cinema alienante funcionando.
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