Maria
Nota: 7
Em Jesus de Montreal (89), do canadense Denys Arcand (As Invasões Bárbaras), um grupo de atores encena uma controvertida montagem da Paixão de Cristo. Ao mesmo tempo em que se defendem de ataques conservadores, eles passam a reviver em seu cotidiano situações bíblicas. Compreensivelmente, o ator que interpreta Jesus é quem mais se perturba com o trabalho.
Movimentos psicológicos e espirituais semelhantes enriquecem Maria, que recebeu o Grande Prêmio do Júri no Festival de Veneza em 2005, ainda sob o calor da polêmica provocada por A Paixão de Cristo (04), de Mel Gibson. Não é preciso se assustar com a lembrança: a recriação do norte-americano Abel Ferrara (O Rei de Nova York) está para a carnificina de Gibson como vinho para água de torneira.
Em primeiro lugar, há um filme-dentro-do-filme, "Isto é Meu Sangue", recebido com pedras por grupos católicos antes mesmo de seu diretor (Matthew Modine), que também interpreta Cristo, conseguir lançá-lo. Além disso, há um episódio misterioso: a atriz que fez o papel de Maria Madalena (Juliette Binoche), em vez de retornar para casa, preferiu ir a Jerusalém.
Outro núcleo é protagonizado por um apresentador de TV (Forest Whitaker) que se dedica a uma série de programas sobre Jesus. Não é um período qualquer: sua mulher (Heather Graham) está prestes a ter uma criança e se sente especialmente só. À medida que as tramas se encaminham para um encontro, Ferrara impõe à história uma atmosfera de suspense em torno da fé, repleto de sugestões, ambigüidades e perguntas sem resposta.
Ao final, intensifica-se o diálogo entre o que é divino e o que é humano, com a riqueza plástica e simbólica de um quadro que não se cansa de explorar.
Maria aborda a fé religiosa, é um trabalho um tanto inesperado do diretor nova-iorquino Abel Ferrara, conhecido por histórias violentas, quase sempre ambientadas no universo do crime e da droga, como Vício Frenético (1992) e O Funeral (1996).
Maria venceu o Grande Prêmio do Júri do Festival de Veneza de 2005.
O próprio Ferrara, em entrevistas sobre o filme, revelou ter-se inspirado em alguns dados reais, como um programa de televisão de um jornalista que falava sobre Jesus Cristo - idêntico ao personagem Ted Younger (Forest Whitaker) - e a dificuldade de alguns atores saírem de seus papéis quando um filme termina.
Uma crise desse tipo, justamente, é o ponto de partida para que a atriz Marie Pilesi (Juliette Binoche) decida ficar em Jerusalém, depois de ter atuado em um filme sobre Jesus Cristo, em que ela fez o papel de Maria Madalena.
Ela, que era uma atriz famosa e requisitada, resolve isolar-se e continuar sozinha uma redescoberta espiritual provocada pelas sensações que viveu durante as filmagens e que a levam a questionar todo seu modo de vida.
Em Nova York, Ted Younger é apresentador de um programa de televisão sobre a vida de Cristo, em horário nobre. O novo filme é um assunto quente para ele, que resolve entrevistar o diretor, o ambicioso Tony Childress (Matthew Modine).
O desaparecimento da atriz principal intriga Younger, que parte para uma pesquisa incansável sobre seu paradeiro, levada às últimas conseqüências - ele é até mesmo capaz de seduzir uma de suas melhores amigas em troca do celular de Marie Pilesi.
Jornalista rico, poderoso e bem-sucedido, Ted é aquele tipo de pessoa a quem ninguém diz não e a quem não falta nada. As coisas mudam quando sua mulher (Heather Graham) tem um parto prematuro e o bebê corre risco de vida. Nesse momento, conversar com Marie torna-se para ele a porta para o reencontro de novas prioridades espirituais.
O enredo reforça também uma redefinição da figura bíblica de Maria Madalena, que segundo evangelhos não reconhecidos pela Igreja Católica - como o de Maria e o de Filipe - nunca teria sido prostituta e sim um dos apóstolos mais próximos de Cristo.
Por ser mulher, teria sido vítima de machismo e discriminação. Esta é também, aliás, uma das teses sustentadas pelo best seller O Código Da Vinci, de Dan Brown, adaptado para o cinema. Mas em Maria o tom é muito mais sóbrio.
Ironicamente, foi o sucesso de um filme de estilo totalmente oposto a este, A Paixão de Cristo, que possibilitou que este projeto mais suave e reflexivo encontrasse financiamento. Antes dele, os produtores de Maria só ouviam que "ninguém queria ver um filme sobre religião".