28 setembro 2006

Veludo Azul - David Lynch (1986)




Nota: 9


Imagine a seguinte visão. Um lindo céu azul, uma bela cerca branca e um agradável jardim com rosas vermelhas. É manhã numa pacífica cidade americana do Meio-Oeste. As pessoas são gentis e cumprimentam você com sorrisos no rosto. Um homem rega seu jardim na companhia de seu cãozinho. Tudo está perfeito no mundo. O homem se contorce de dor e cai ao chão agonizando. Seu imprestável cachorrinho se limita apenas a latir. Enquanto ele sofre, é possível observar de perto a grama do jardim. Escondida dentro dela, um grupo de insetos nojentos rasteja na escuridão em alguma atividade incompreensível e desagradável. Bem vindo ao mundo de David Lynch.

Esta é a cena de abertura de um de seus filmes mais conhecidos, o clássico Veludo Azul (1986). Possivelmente o melhor ponto de partida para entrar em contato com a filmografia do cineasta, pois estão presentes todas as suas características mais marcantes.

O diretor pode ser comparado a outros grandes cineasta contemporâneos, como Tim Burton, também um criador de mundos, Brian DePalma e Lars Von Trier, que de maneira semelhante trabalham com os limites do cinema e as sensações que ele provoca.

Um típico jovem americano, Jeffrey (Kyle MacLachlan), da pequena cidade de Lumberton, faz uma surpreendente descoberta, uma orelha humana amputada. Ao tentar descobrir o "dono" da orelha, percebe que seu mundo é maior e mais assustador do que pensava. Lumberton tem dois lados, sua aparente tranqüilidade e sua sombra assustadora. Tudo lembra um filme de atmosfera noir, com sua femme fatale Dorothy (Isabella Rossellini), a jovem inocente Sandy (Laura Dern) e o memorável vilão Frank Booth (Dennis Hopper).

Em princípio, estamos diante de outro representante do gênero policial, mas as aparências enganam. Com absoluto controle sobre imagens e sons, Lynch desfaz a ilusão de realidade. É impossível ter certeza da época em que se passa a trama, cenas de horror e violência contrastam com a beleza do lugar, criminosos cantam In Dreams enquanto torturam suas vítimas e mortos se recusam a cair no chão, permanecendo em pé. Veludo Azul lembra um sonho, alternando momentos terríveis e belos.

Com as freqüentes referências a sonhos e a própria atmosfera onírica de seus filmes, é difícil não pensar em Lynch como um surrealista. Seus filmes não são repletos de metáforas indecifráveis, como seus detratores costumam afirmar. Não há metáforas, só cinema. Sensações quase abstratas e não compreendidas pelo espectador, mas sentidas pelo subconsciente. Aceitar seu cinema envolve não o uso da razão, mas o da intuição.

O surrealismo possui características em comum, como a ruptura dos padrões tradicionais de espaço e tempo, ênfase em deformações físicas e mutilações, clima de mistério e humor negro satirizando instituições respeitáveis da sociedade como o Estado e a Família. Lumberton é a perfeita utopia americana, um lugar onde todos são felizes conformados com suas vidas. Mas a cortina de felicidade é rasgada, revelando um mundo de drogas, violência e perversão.

Ao final, Jeffrey resolve o mistério e derrota a ameaça de Frank Booth e seus comparsas. No entanto, o pássaro que surge para anunciar o triunfo da bondade é falso, mecânico. Não se ignora o horror, após presenciá-lo. Jeffrey e seus amigos preservam a inocência, o espectador jamais. É uma sutil crítica ao final feliz fácil de Hollywood, talvez a instituição respeitável mais atacada por Lynch.

Para atingir este estágio de perfeição estética e artística, o diretor teve um começo de carreira interessante. Inicialmente um estudante de pintura, logo passou a se interessar pela possibilidade de criar imagens em movimento. Nascia um cineasta. Seu primeiro longa, Eraserhead (1977) é famoso por suas imagens incomuns e pelo clima grotesco. O sucesso no circuito cult bastou para dirigir O Homem-Elefante (1980) e a polêmica adaptação de Duna (1984).

O primeiro filme narra a vida de John Merrick (John Hurt), deformado ao ponto de ter ganho o apelido de Homem-Elefante. Aberração de circo em 1884, Merrick é descoberto por um médico inglês e apresentado ao resto do mundo. Sua transição do mundo do circo para o lado respeitável da sociedade será traumático.

Além de excelentes atuações, também conta com uma fotografia em P&B fantástica, de inspiração expressionista, o que demonstra as influências do expressionismo no cinema de Lynch, influência que também pode ser vista em outros filmes, comprovando o misto de referências e influências do diretor.

O expressionismo seria a busca pelo lado escuro da alma humana, um retrato deformado de sensações como angústia e melancolia, com a intenção de mostrar que nem tudo no mundo é belo. Veludo Azul expressa o dilema entre o desejo por uma vida tranqüila e as nossas necessidades mais inconfessáveis. Esse dilema pode ser visto em praticamente todos os filmes do autor.

David Lynch também não segue as regras de caracterização típicas de outros filmes. Inicialmente, seus personagens são propositadamente superficiais, caricatos até. Por exemplo, Jeffrey é um rapaz americano comum e bem intencionado. Nada mais é dito sobre ele, seu passado, suas relações com a família, etc.

Esse "método" de caracterização além de auxiliar na aura de mistério (comum ao surrealismo e ao expressionismo), aumenta o impacto quando os personagens trocam de identidade. Situação surreal freqüente no cinema de Lynch, pois levanta questões sobre identidade, tempo e espaço. Exemplificando, essa metamorfose ocorre explicitamente em A Estrada Perdida e Cidade dos Sonhos e de maneira apenas sugerida em Veludo Azul. Na cama com Dorothy, o mocinho Jeffrey mostra o quão "bom menino" realmente é.

Coração Selvagem (1990), aprofundou seu estilo marcante. É um road-movie sobre o casal Sailor (Nicolas Cage) e Lula (Laura Dern), cujo amor é proibido pela família dela. Ambos partem pela estrada, mas com assassinos no encalço. Além de sua atmosfera absurda, também é lembrado por sua extrema violência (algumas cenas são revoltantes) e pelo humor cínico. Coração Selvagem antecede em muitos anos Assassinos Por Natureza, Tarantino e toda uma série de filmes violentos-e-engraçadinhos que surgiram nos anos 90.

Também é uma sátira as aventuras e clichês típicos de Hollywood. Não importa as ameaças, o casal está destinado a vencer seus inimigos e consumar seus amor. Bem adequado ao senso de humor do filme, poucas vezes um Deux Ex Machina foi tão artificial e levou a um final feliz ridículo, de tão exagerado.

Difícil traduzir a sensação que dá ver ao ver os filmes de Lynch. Aberta a qualquer interpretação, uma leitura possível é compreende-los como a representação metalingüística do próprio estilo cinematográfico de David Lynch. É a ilusão que se cria e se destrói diversas vezes. Sabemos ser apenas uma imagem, mas somos seduzidos mesmo assim. Nos mundos que Lynch constrói e desconstrói, certezas são dúvidas, ilusões são reais e anarquia é regra. Mas quem tem certeza do que é real ou não?

Lynch nos lembra constantemente que tudo é possível no cinema e desta maneira busca libertar o olho domesticado do espectador, como Buñuel mostrava o órgão ocular sendo cortado no surrealista Um Cão Andaluz.

Sua filmografia causa o mesmo espanto e perplexidade que escritores tão distintos entre si, mas igualmente notórios como James Joyce, William Burroughs, Kafka e Lewis Carroll. Diante de seus filmes, somos como Alice entrando na toca do Coelho e admirando o Gato com sorriso e o sorriso sem Gato. Cineasta das sensações, autor de imagens e sons inesquecíveis, David Lynch é o nosso motorista numa estrada perdida.

A Estrada Perdida - David Lynch (1997)



Nota: 10

Existe um fator cultural muito forte e que, de uma maneira ou de outra, acaba sempre por vir à tona quando da exibição de alguns filmes de David Lynch. Esse fator é desdobramento do que Serge Daney, um dos grandes nomes da história da crítica cinematográfica, já apontava nos anos 70: a consolidação de sociedades cada vez mais eficazes na atitude de ler (e decifrar, dissecar estruturas de linguagem), mas cada vez menos capazes de ver. Quando se fala em "civilização da imagem", por exemplo, não se leva em conta a distinção entre o visual e a imagem, o primeiro correspondendo à "verificação óptica" de um procedimento de significação (leitura), enquanto a imagem seria o que ainda resguarda uma experiência para além do visual, uma forma de percepção que dribla a equação mais comum. O próprio cinema, nos seus termos particulares, assim que abraçou a narratividade ergueu todo um edifício de códigos que ultrapassa a simples analogia icônica. Em se tratando de A Estrada Perdida, entretanto, tudo cujo modelo operacional é aferido nesse confuso acordo entre visão e cognição deve ser deixado de lado. São justamente os dois binômios-base da cultura visual (causa-efeito e visão-cognição) o que pode impedir a fruição plena desse filme.

O grande tema de Lynch é a luz. Mesmo o som, perfeitamente trabalhado tanto em A Estrada Perdida quanto em Veludo Azul ou História Real, é uma espécie de cara-metade dos objetos reluzentes, um murmúrio da luz (se há uma imagem recorrente em Lynch, é a de uma lâmpada com defeito, ou com insetos dentro dela, acendendo e apagando ao som de um ruído incômodo). Até as extraordinárias trilhas sonoras de Angelo Badalamenti acompanham as curvas de luminosidade dos filmes de Lynch para que são compostas. Em A Estrada Perdida, assim como em Cidade dos Sonhos, o diretor segue uma lógica de cinema-instalação; o que vale é atravessar o filme, passar pelo seu campo magnético. Nenhuma parede é mero anteparo, qualquer superfície tem cor, tem estampa, reflete ou texturiza uma imagem ou uma luz. Além de duração e força, a luz em Lynch tem motivo e forma – daí ele sempre frisar sua fonte e sua incidência. Mas essa luz, esse clarão que cega possui também outro nome, complementar à sua natureza física: o amor. O universo lynchiano é movido a paixão, é o lugar da efervescência, do irracional, da sensualidade, do sonho. E, sabemos, o que essa moeda traz no verso é o pesadelo da perda, o afundamento, a loucura, o destino trágico.

A Estrada Perdida apanha Fred (Bill Pullman) e Renne (Patricia Arquette) numa fase difícil do casamento. Ele a está sentindo distante, como no sonho que resolve contar: "você estava lá, mas não era você". O filme é exatamente sobre isso: estar lá e não estar, ou ainda, estar com alguém e não saber quem é, não importando se acabou de conhecê-la ou se estão casados há anos. A angústia irredutível do amor é igual àquela provocada pela imagem: mesmo a esposa, mesmo a pessoa com quem se passa a maior parte da vida é sempre um "outro", guarda sempre um mistério, o que remete a um dos princípios fundadores da imagem, qualquer imagem: a alteridade radical, o fato de que, por mais próxima que ela possa estar, sempre haverá uma opacidade, uma intransponibilidade. "Você nunca irá me ter", diz Alice (Patricia Arquette de novo, agora loira) a Pete, após transarem na areia do deserto, faróis do carro sobre eles, numa das cenas mais sensuais da história do cinema. Esses personagens que se confundem (e nos confundem), esses rostos que se misturam são projeções de qualquer relação amorosa.

Lynch é um dos poucos cineastas a ainda trazer para a tela o nunca visto – além de ressignificar o muito visto – e lidar com as ressonâncias do inexplorado, do ausente. Não há outra maneira de filmar a ausência senão através de suas vibrações na superfície dos objetos mostrados. É justamente isso que vemos em A Estrada Perdida, um filme em que tudo que interessa está na tela, mas sempre fazendo ecoar algo distante. Essa invasão do fora-da-tela, do desconhecido, do acaso, é uma verdadeira invasão de privacidade, como nas fitas de vídeo que Fred e Renne recebem, e que consistem em imagens feitas dentro da sua própria casa por alguém que eles nem desconfiam como pode ter entrado lá. A imagem, pornográfica por excelência, é sempre (e em si mesma) invasiva: "roubar" o semblante de alguém e expô-lo em praça pública: a imagem é já a ob-cena (Daney). A Estrada Perdida vai plantando armadilhas, vai seduzindo o espectador, mexendo com sua mente. Mas o destino dessas pistas recolhidas já foi dado na primeira imagem do filme: a estrada vazia, escura, e a câmera (e, por conseguinte, nós) assumindo o ponto de vista do motorista, vendo a interminável sucessão de listras amarelas, uma após a outra, parcelas cuja soma não fornece um resultado redondo. Cabe ao filme apenas iluminar essas listras através do alcance limitado imposto pelo farol do carro – o resto é escuridão.

E há os momentos mágicos, como na cena em que Alice aparece para Pete ao som de "This magic moment" (Lou Reed), e isso basta para que ele se apaixone. Entrada em cena que lembra a primeira aparição de Sandy (Laura Dern) em Veludo Azul: quando o amor surge no filme, este se enche de uma cor e de um brilho que até então não parecia ter. Se Lynch filma também coisas obscuras, é porque faz um cinema musical cujo fraseado dificilmente entrega a nota seguinte; uma complexa equalização que seus filmes acham entre a melodia e a dissonância, entre a beleza e a bizarrice. A resposta está no final de Veludo Azul: "É um mundo estranho", Sandy diz calmamente, ao contemplar o passarinho que fisga um inseto com o bico: o estranho alimenta o belo.

Longe de uma defesa do refinamento estético e da leitura difícil, o cinema de David Lynch é um arranjo experimental bastante atento a potencialidades – e indiferente a mensagens. Ele acrescenta fermento aos signos, mas não os desmonta (como muitos pensam); simplesmente lança-lhes luz. Lynch constrói ambiência, dá ritmo ao espaço dos acontecimentos, faz menos uma pesquisa formal do que uma provocação. Em Twin Peaks – Os Últimos Dias de Laura Palmer, vale lembrar que nenhuma das drogas que a personagem principal consome consegue aluciná-la com a mesma eficácia da fotografia singelamente assustadora que ela pendurou na parede do quarto (a imagem de uma porta que a conduz ao pesadelo noturno). Não percamos tempo com joguinhos de adivinhação, esqueçamos as engenhocas narrativas: produto da farmácia de Lynch, A Estrada Perdida é alucinógeno dos melhores.

25 setembro 2006

Meu Irmão Quer Se Matar



Nota: 6

A diretora dinamarquesa Lone Scherfig entrou para a história do cinema quando seu filme Italiano para iniciantes (2000) foi um dos primeiros a levar o selo Dogma 95, movimento dinamarquês de regras rígidas que extirpa da nona arte recursos técnicos que potencializam a ilusão do cinema e, de acordo com o manifesto, massificam a produção da arte, enganando a audiência.

Dois anos depois de colher os louros da missão cumprida dentro do voto de castidade dogmático, Scherfig dirigiu Meu Irmão Quer Se Matar (Wilbur Wants To Kill Himself, 2002). O novo filme engaveta a rigidez da produção anterior, mas mantém algumas das lições aprendidas. Ganha, principalmente, a estética.

A história segue a simplicidade associada ao Dogma 95: um homem comum, dono de livraria em dificuldades financeiras, tem que lidar com as tendências suicidas de Wilbur, seu irmão. Em meio às idas e vindas ao grupo de apoio a suicidas no hospital local, ele se apaixona por uma frequentadora de sua loja.

Os acontecimentos são naturais e, apesar de dramáticos - estamos lidando com a morte -, não desprovidos de humor. Bastante sutil, é verdade, mas ele existe em pequenos detalhes. Como as desventuras amorosas do charmoso Wilbur, que em certo momento tenta encontrar nas mulheres uma razão para viver.

Toda a carga dramática repousa sobre os ombros dos carismáticos protagonistas: Adrian Rawlins (Harbour, o irmão mais velho), Jamie Sives (Wilbur) e Shirley Henderson (a "Murta-Que-Geme" de Harry Potter, que vive Alice, a freguesa). Os três fazem um trabalho contido e carregado de interesse pelos personagens.

Mas talvez o ponto mais interessante de Meu Irmão Quer Se Matar seja a maneira como Scherfig explora o relacionamento dos três e da filha de Alice, Mary (Lisa McKinlay), que formam uma curiosa jovem família. Ela é absolutamente imparcial e deixa nas mãos do público a interpretação dos fatos e o entendimento dos personagens, algo louvável numa época em que os bombásticos eventos do cinema atual pedem uma reação quase imediata dos espectadores, geralmente guiada pela mão do diretor. Eis a imparcialidade aprendida com o Dogma 95, mas sem a rigidez técnica do movimento.

O resultado é sereno, sem grandes lágrimas ou alegrias, apesar do tema. Um filme que não despertará paixões, tampouco detratores ferozes.

23 setembro 2006

Cafuné




Nota: 5

Cafuné é o longa-metragem de estréia do carioca Bruno Vianna, muito premiado anteriormente pelos seus bem-sucedidos curtas. Captado em digital, nos chega agora com uma interessante proposta de distribuição: além de estrear nos cinemas em duas versões diferentes, o filme está, ao mesmo tempo, disponível para download na internet; seu site também disponibiliza um programa de edição para que o espectador re-edite o longa como melhor lhe convir. Talvez seja bom informar, então, que a versão a que se refere esta crítica é a menor, de aproximadamente 70 minutos de duração.

Os primeiros minutos de Cafuné esboçam uma situação de grande interesse e potencial cômico, dramático e reflexivo: assim como a zona sul, a mais nobre do Rio, está atravessada por algumas das maiores favelas da cidade, as vidas do casal protagonista, ela do Leblon, ele do Vidigal, atravessam-se, arrastando ambos numa aventura amorosa em que as posições geográficas e financeiras serão relativizadas e problematizadas.

O que primeiramente os conecta? Na praia, ele pede para fumar do baseado dela. A maconha: droga que, como fator social, não cessa de fazer o asfalto encontrar o morro, o playboy encontrar o traficante, e em níveis particulares fazer balançar as hierarquias, e não somente através da violência e da degradação. No filme, tal esboço inicial parece querer testemunhar os instantes em que as esferas sociais confluem e seus elementos se misturam, a zona sul deixando de ser uma área intocada de riqueza e educação, a favela de miséria e marginalidade; é a relação entre o casal protagonista o que promete gerar uma troca de afetos que faria o cenário social aparecer de modo mais complexo aos nossos olhos. Cafuné pretende mostrar como as coisas, nesse aspecto e ambiente, saem mesmo do controle ― para além da ‘simplicidade’ das graves primeiras páginas cariocas que noticiam a violência cotidiana e tendem a apontar o morro como essência única da criminalidade ― e como a aproximação (e não somente a distância que há) entre as vidas destes diferentes grupos e locais questiona a própria relevância do controle... ou melhor: de um certo controle ideal; de uma visão fixa e controlada do problema.

Outro problema, logo em seguida, é que o filme ― enquanto expressão cinematográfica ― não abdica do seu próprio controle em relação ao conteúdo. A câmera envolve os personagens numa redoma narrativa, bem fechada, que acaba remetendo quase sempre ao relativo domínio daqueles que a comandam, sem permitir que um lado-de-fora invada ou se anuncie. Algo parece reduzir o vasto espaço carioca que circundaria e ameaçaria as situações para o interior de pequenos ambientes controlados, um apartamento, um quarto, um carro, uma rua fechada. De modo que mesmo as locações, às vezes, pareçam estúdios. Até mesmo na seqüência do pedalinho da Lagoa, ambiente tão amplo, que fecha o filme, não conseguimos sentir que no envoltório algo esteja se passando, saindo do controle diegético; que pessoas estejam transitando, enfim, que a cidade ali questionada esteja viva. A banda sonora, que tanto poderia contribuir nessa invasão providencial criando um envoltório que ultrapassasse o plano íntimo da diegese, não ajuda muito. Tudo acaba parecendo uma fantasia mais ou menos estática que não nos faz esticar o material que nos é dado, de modo que não conseguimos embarcar totalmente no drama nem na reflexão a que o filme nos convida. Porque no fim, o que inicialmente parecia uma observação perspicaz ― com o encontro daquele casal e o caminho que eles passam a seguir ― entra na ordem convencional do convencimento: quando os resultados a que chegam todos os personagens confluem numa só moral. Então, em vez de operar um grande desvio que havia em potencial na sua relação, o interessante casal desemboca numa conclusão que harmoniza tudo. Tudo termina parecendo uma fantasia que quer ressoar, mas não consegue. Que pretende vibrar para além de si mesma, através dos questionamentos que sugere, mas que em si mesma, enquanto fantasia, não vibra.

Outro sinal disso é que os figurantes, também, quase sempre pareçam figurantes... Que não ganhem outro estatuto: eles apenas figuram, nunca desestabilizam. E com isso, aqui, de maneira alguma reclamamos por mais verossimilhança ou realismo. Não que os figurantes precisassem parecer mais naturais ou mais reais ao espectador para esconderem a fantasia. Mas que em Cafuné, o que está atrás, à frente ou aos lados dos personagens e de suas ações não consegue ter uma pulsação própria que dê mais vida ou ressonância ao que se dá em primeiro plano. Não é uma questão de aprofundamento, mas de perspectiva ou amplitude. Um filme pode ter aparência totalmente falsa, criada e superficial e ainda assim ser muito abstrato, cheio de vida, talvez precisamente através destas características. Também não é exatamente uma questão de tencionar o extracampo ou fazer com que coisas objetivamente invadam o campo; mas, diferente disso, como em muitos filmes o próprio campo tem algo de extra... Mesmo que numa narrativa tudo possa estar confinado num ambiente fechado, sem qualquer contato direto com o exterior, os elementos confinados podem sempre trazer consigo o descontrole que há necessariamente do lado de fora. E é esse descontrole que falta aos personagens e aos outros elementos de Cafuné, o que instaura também uma contradição ético-estética improdutiva que faz as coisas travarem, num filme que quer falar sobre o social enquanto ambiente vivo e complexo, porém através de personagens e situações que cada vez mais se deixam fixar em representações bem definidas ou mesmo unilaterais. É algo assim: no início, ele parece que vai mostrar; mas depois ele acaba falando sobre, ou seja: discursando; e assim, tudo o que ele antes mostrou, perde sua incerteza. Além disso, um fator técnico crucial faz com que este filme perca a vivacidade que poderia ter e nos apareça de tal maneira: muitas vezes, os atores e a câmera parecem incomodar-se mutuamente; algo parece não estar à vontade.

Nem seria necessário que a cidade ao redor aparecesse viva, de fato, ou que se fizessem externas improvisadas de maneira documental, por exemplo. Novamente, não é uma exigência de realismo. A cidade, ou melhor, o envoltório social que o filme questiona, poderia fazer sua entrada viva através dos próprios personagens, suas falas e ações, mesmo nos ambientes fechados que acima citamos. Mas para isso os enunciados precisariam ser mais flexíveis e incertos de si. Não é questão de plano fechado ou plano aberto; mas de como um plano fechado pode de alguma forma se abrir e se expandir ao infinito, ou ao contrário se enclausurar ainda mais. Plano centrípeto ou centrífugo, mas não somente em relação à composição fotográfica. Em meio a estas percepções, alguns momentos de Cafuné são para mim memoráveis, singulares, talvez precisamente por representarem o oposto dos problemas que aqui cito e ficarem um pouco perdidos em relação ao resto do filme. O primeiro deles é uma seqüência em que a personagem Joana, namorada do irmão de Débora, sai de carro na madrugada; a câmera a enquadra de frente, de fora do carro, sem deixar que apareça o que há na rua, aos lados ou atrás; mas o reflexo das luzes no pára-brisa, o som ambiente (o vento no microfone, o silêncio da noite, os carros, enfim, o perigo que sempre há do lado de fora) e a boa atuação de Ana Kutner, tensa no volante ao parar num sinal e ver uma movimentação na rua (que nós apenas ouvimos, sem conseguir identificar do que se trata) bastam para envolver e seduzir o espectador. É provavelmente, em vários aspectos, o momento mais forte do filme; muito mais forte do que a cena em que um personagem mata um outro com violentas pancadas na cabeça. E não porque uma cena sugere e a outra revela, não porque a sugestão supostamente seria mais interessante daquilo o que está explícito. Mas porque a cena do assassinato, enquanto passa, é definida por algo que não está ali e que mesmo assim a define, uma abstração moral que a impregna, cada pancada que o assassino dá na vítima sendo uma pancada do discurso do filme no espectador, valores...; como se o filme dissesse: “Vejam...”, e aí a moral entrasse. Na cena do carro, ao contrário, tudo está ali... o carro, a personagem, o vento, até mesmo os ruídos estranhos cujas causas não vemos estão ali, no plano tão fechado... e no entanto esse plano se abre, mais abstrato, sem qualquer fixidez e com uma contundência (tanto estética quanto reflexiva) muito mais efetiva. Muito mais irresistível.

Os personagens de Cafuné não são clichês; há mesmo algo de singular neles. Mas conforme o filme se desenvolve, entra em jogo uma moral que inevitavelmente toma tudo o que está sendo mostrado como representativo de um todo social; mesmo que através de uma situação particular. A moral da história? Que no asfalto existem pessoas violentas (o irmão de Débora) e que no morro existem pessoas pacíficas (Marquinhos, que em vários momentos é posto em suspeita ao espectador pelo próprio filme, para que reflitamos sobre nossa própria tendência preconceituosa. Mas como podemos refletir verdadeiramente sobre nossa suposta tendência preconceituosa se é o próprio filme, através de sua vontade de desfazer os clichês sociais e os preconceitos, que trabalha com esquemas narrativos que põem seu protagonista em suspeita? O próprio filme estimula uma visão preconceituosa, mesmo que para em seguida confrontá-la a si mesma; e se o espectador pensou que Marquinhos fosse roubar um carro, foi apenas através da montagem do próprio filme, que o sugeriu). Que existe felicidade na favela; e que existe tristeza no asfalto. De fato, tudo isso existe e está certo. Só não gostamos que, principalmente no fim, o filme tenha querido reduzir-se a um dizer. A este dizer.

Débora descobre que Marquinhos, que dizia morar em São Conrado, é na verdade morador da favela. Imaginamos que haverá conflito; que ela brigará com ele por ter mentido. Mas, ao contrário, ela aceita de primeira, e inclusive vai contra aqueles que o condenam por isso. É ótimo que seja assim; de outra forma o conflito do casal nos lembraria algo que já vimos milhões de vezes em outras histórias. Cafuné tem disso: ele escapa habilmente de alguns clichês, mas freqüentemente desemboca em outros. E o fato de Débora aceitar a favela em sua vida, e principalmente o fato dela se mudar para a favela mais tarde, quando tem um filho com Marquinhos, poderia ter sido explorado muito mais extensamente; mesmo que ela ainda aceitasse isso com naturalidade, o movimento dessa aceitação é grave o suficiente para abalar e desestruturar toda a sua vida interior e também o que está ao seu redor. O devir-favela de uma jovem do Leblon é algo que daria material talvez para um filme inteiro, e aqui, por mais que a vida de Débora mude, tudo o que se altera é apenas através da trama, dos novos caminhos que a personagem toma, mas não da própria personagem; altera-se apenas a visão geral, mas não a particular. Vê-se muito de longe que um corpo saiu do Leblon e foi para o Vidigal; mas não se faz uma aproximação maior para ver o que mudou nesse corpo e nem como a mudança desse corpo alterou outros corpos, outras relações. O devir-favela de Débora poderia ser, em vez (ou além) de um sinal de dignidade, de mera caracterização de uma personagem que busca sua felicidade independente da comunidade ou sociedade em que se encontra, uma onda, uma passagem irresistível que fizesse um grande furo na fronteira entre o morro e o asfalto e através desse furo fizesse passar aqueles mesmos questionamentos sociais que não foram tão bem-sucedidos de outro modo.

Recordo também e vejo brilho nos seguintes momentos de Cafuné: a longa cena em que uma personagem fotografa a si mesma diante de um computador, tirando fotos auto-eróticas de seus seios, e que me parece ter um efeito muito próximo ao da cena do carro acima citada; a seqüência em que Débora e Marquinhos combinam de ir ao motel, mas ao notarem a falta de um carro para tal, usam comicamente uma bicicleta; e por fim a cena em que Débora está deitada na cama com Marquinhos e seu filho e um tiroteio começa a acontecer lá fora; ela se encolhe na cama, corta-se para um plano mais aberto do ambiente, e o aspecto de segurança e aconchego que é próprio a este lar ― em vez de ser desfeito num sentimento de insegurança ― é intensificado pelos próprios tiros, como se quanto mais perigoso estivesse lá fora mais seguro ficasse ali dentro. Mesmo que não estejam brilhantes, os atores protagonistas também merecem de algum modo estar entre estes últimos comentários positivos. Principalmente Lúcio Andrey, que interpreta Marquinhos. Priscila Assum, satisfatória, talvez estivesse melhor se não fosse inevitável que sua atuação acompanhasse os problemas que têm sua personagem.

Cafuné tem o interessante impulso inicial de mostrar um certo caos produtivo que se instalaria através da confluência cotidiana entre zona sul e favela; mas acaba representando apenas um cosmo cinematográfico de pouca vibração. Os planos de passagem que aparecem com alguma freqüência entre uma seqüência e outra, paisagem de montanhas e neblina, também contribuem para retirar do filme aquele aspecto mais vívido de que falávamos, intensificando o controle e o fechamento em si mesmo do espaço de pensamento.

21 setembro 2006

Vôo United 93



Nota: 5

É difícil fazer arte a quente. Pelo menos, boa arte. OK, Picasso pintou Guernica no mesmo ano do bombardeio da cidade basca, durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), mas quantos picassos existirão no cinema atual? Certamente, Paul Greengrass não é um deles, ainda que tenha mostrado saudáveis traços autorais em Domingo Sangrento, docudrama que o colocou no mapa de Hollywood em 2002.

O problema desse Vôo United 93 é o excesso de concessões que faz e as liberdades históricas que toma com um tema que ainda está, por assim dizer, "na boca do povo". Alguns dos problemas:
- Não, não está provado que a revolta dos passageiros tenha sido motivada por heroísmo, e não por instinto de sobrevivência -o que é, aliás, totalmente compreensível, mas pouco "hollywoodiano";
- Não, não está provado que o avião tenha caído como conseqüência da ação dos passageiros, que teriam desconfiado de que ele se dirigia à Casa Branca ou ao Congresso;
- Ainda está para ser esclarecida a hipótese cada vez mais verossímil de que o vice-presidente norte-americano, Dick Cheney, naquele momento dando as cartas do jogo enquanto George W. Bush lia uma história infantil numa escola pública na Flórida, tenha usado as regras de engajamento em vigor e mandado caças abater o avião cheio de civis. Mas o filme é de ficção, e Greengrass poderia ter feito o que quisesse com ele, argumenta você. Poderia, mas não fez: o britânico ouviu as famílias das vítimas e respeitou demais todas as objeções feitas -é gente demais dando palpite na obra alheia. Não que os 111 minutos sejam totalmente perdidos. Greengrass consegue passar sua visão do que deve ter sido o sentimento de claustrofobia e inevitabilidade de alguns passageiros, assim como o caos e o desencontro de informações que dominavam os bastidores do sistema de controle aéreo e as forças de segurança daquele dia. Mas é pouco. Vôo 93 é um filme sobre um momento histórico, mas está longe de ser um filme histórico.

A Dama na Água



Nota: 8

A mais recente investida do roteirista e diretor M. Night Shyamalan (de O Sexto Sentido e Sinais) na seara da paranormalidade pode ser conferida em A Dama na Água.

A trama interpõe fatos extraordinários e corriqueiros num condomínio erguido em volta de uma piscina num subúrbio da Filadélfia. No local, aparecem seres de uma história infantil.

Trabalhando com um elenco talentoso e um design visual forte criado pelo diretor de fotografia Christopher Doyle, Shyamalan consegue criar um clima de suspense e ameaça constante, misturados com magia e algumas pitadas de comédia. Mas faltam algumas coisas que não sei dizer, o filme fica meio no ar, os detalhes do conto de fadas são escassos e complexos demais para inspirar confiança.

O ator Paul Giamatti é Cleveland Heep, um sujeito que se esconde da vida trabalhando como zelador do condomínio Cove Apartments. Ele começa a desconfiar que alguém nada na piscina à noite, o que é contra os regulamentos. Quando persegue o invasor, Cleveland cai na piscina e é resgatado por uma mulher que lembra uma ninfa (Bryce Dallas Howard). Ela diz se chamar Story e afirma ser do mundo das águas e estar sendo perseguida por seres ferozes.

Uma das inquilinas, uma coreana (June Kyoko Lu), relata a Cleveland uma "história do Oriente" que se enquadra com os particulares da situação. Story seria um ser das águas conhecido como "narf", e seu adversário feroz é um "scrunt", espécie de cruzamento entre uma hiena e um javali. Embora não saibam disso, vários humanos que vivem na região onde a narf aparece teriam poderes que lhes possibilitariam protegê-la e ajudá-la a chegar a seu destino.

Cleveland, que acredita piamente na história, procura entre os moradores do complexo quais são os que se encaixariam nos papéis necessários. Seu mentor relutante é o inquilino mais novo, Mr. Farber (Bob Balaban), um cínico crítico de cinema e livros que, pelo fato de conhecer todas as tramas e os personagens possíveis, imagina que será capaz de identificar os candidatos óbvios.

Será que o sr. Dury (Jeffrey Wright), um pai amoroso que gosta de fazer palavras cruzadas, é o Intérprete dos Sinais? E a sra. Bell (Mary Beth Hurt), que gosta de animais, pode ser a Curandeira? Uma coisa curiosa em todos eles é que, quando Cleveland os aborda como sua história sobre narfs e scrunts, nenhum deles o olha com espanto e pensa que ele precisaria ser internado num hospital psiquiátrico.

O filme em nenhum momento dá aquele passo para dentro do guarda-roupa, como fez mais recentemente As Crônicas de Narnia. Esta história infantil não chega a convencer o espectador, e os objetivos das forças opostas são muito vagos. Se a narf é um ser aquático, então por que ela deve ser resgatada por uma águia? Se o simples aparecimento de Farber consegue impedir um ataque iminente do scrunt, então por que o scrunt ataca Farber na próxima vez em que o vê pela frente?

Paul Giamatti está ótimo como o ser atormentado cuja vida tristonha pode ganhar novo ânimo com esse contato estreito com a narf. Bryce Dallas Howard faz um ser sedutor e belo, mas o papel é mais efêmero do que aquele que ela representou em A Vila, também de M. Night Shyamalan.

Os outros atores estão maravilhosos, mas Cindy Cheung se destaca como alguém que também vive em dois mundos paralelos, embora ambos sejam humanos: a casa tradicional de sua mãe, e a vida americana à qual ela tão prontamente adere. Resumindo: um mundo de conto de fadas existe dentro do cotidiano, mas a maior parte de sua magia continua trancada na cabeça de M. Night Shyamalan.

O filme não foi muito compreendido, ou não quiseram compreende-lo desde sua criação. Num jantar, no ano passado, no restaurante que M. Night Shyamalan, homem de hábitos rígidos, sempre freqüenta, na Filadélfia, Estado da Pensilvânia, onde mora com a mulher e duas filhas e sempre filma, o diretor indo-americano de 36 anos não podia acreditar no que ouvia. E o que ouvia eram críticas, pela primeira vez em sua carreira, duras críticas. Seus autores eram os executivos do estúdio com quem trabalhava desde seu primeiro filme importante, O Sexto Sentido (1999), que colocou a frase "I see dead people" no dicionário da cultura pop e levou US$ 672 milhões à Disney, só em bilheteria mundial, sem contar vídeo, DVDs e exibições de TV.
Chamado numa reportagem de capa da revista norte-americana "Newsweek" de "O próximo Spielberg", Manoj Nelliyattu Shyamalan (tanto a abreviação do primeiro nome quanto o "Night" são da época da faculdade) tinha poder de fogo. Seus filmes foram relativamente baratos para os padrões de Hollywood, entre US$ 60 milhões e US$ 70 milhões para fazer. E deram resultado: além de Sexto Sentido, Sinais (2002) faturou US$ 408 milhões; Corpo Fechado (2000) e A Vila (2004) levaram US$ 250 milhões cada um.

Mas o roteiro de A Dama na Água, seu sétimo longa, tinha problemas. Pelo menos é o que achavam os executivos da Disney naquele jantar, liderados por Nina Jacobson. Eles haviam recebido cada um em sua casa cópias do roteiro com seus nomes marcados em cada página, para evitar que algo caísse na internet. Um personagem chamado Story (História)? Que era uma ninfa marinha que vinha do fundo da piscina para salvar o mundo? Um crítico de cinema que era desprezível? E os nomes dos personagens e os termos inventados? "Cleveland" (Paul Giamatti, o zelador do prédio)? "Narf" (a ninfa)? "Tartutic"? Nada fazia sentido. O roteiro precisava de mudanças fundamentais. Era a primeira vez que Shyamalan ouvia isso do estúdio para o qual levou mais de US$ 1,5 bilhão em meia década, dinheiro trazido de roteiros originais, não adaptados, o que é algo cada vez mais raro em Hollywood hoje.

"Com a exceção da Pixar, fiz os quatro filmes seguidos mais lucrativos de todos os tempos", diz o diretor, que se considera uma espécie de Alfred Hitchcock moderno, de quem procura imitar a excentricidade.

O Tempo Que Resta



Nota: 7

Às vezes a vida pode ser mais solitária do que o momento da morte. É disso que fala o sensível e acessível filme francês Tempo que resta (Le temps qui reste, 2005).

O diretor François Ozon parece ter se livrado dos exageros cênicos de 8 Mulheres e dos dramatúrgicos de Swimming Pool. Aqui ele investe numa melancolia similar à de Amor em 5 Tempos - melancolia essa que fica expressa logo no belo primeiro plano. Um garoto está sentado na praia, de frente para o mar. Surgem os créditos, com os nomes do elenco e da equipe. O menino segue sentado, a fotografia colorida dá uma sensação de sonho de infância. Na hora em que ele se levanta para nadar, surge o título... o tempo que resta.

Não é fatalismo, mas sensatez. A hora de todos um dia chega - só que Romain (Melvil Poupaud) não esperava a sua. Fotógrafo de sucesso, gay assumido, mal chegado aos 30 anos, ele recebe de um médico a notícia de que está com um câncer generalizado. Tem uns três meses de vida. Na sua família há casos de tratamentos que debilitaram ainda mais os doentes. Romain não quer fazer quimioterapia. Rapidamente decide também que não contará nada aos seus pais ou ao namorado.

O que fazer, então, com o tempo? Esse tipo de proposta, a dos filmes que falam da morte como um acerto de contas e uma revisão da existência, não é original. Morrer, oras, não é original. Não vivem dizendo que a vida passa diante dos olhos nos momentos finais? É o assunto mais manjado, e mesmo assim Ozon trata-o com frescor. Ser sensível, no caso, é não abusar de músicas melosas nem de armadilhas sentimentais. Se há uma boa característica dos franceses que o diretor conserva é o de ser anti-melodramático.

Romain se esforça para se distanciar das pessoas mais próximas dele. Ele insulta propositalmente sua irmã (Louise-Anne Hippeau) e rompe de maneira cruel com seu namorado (Christian Sengewald). Ele não se preocupa com o choque que sua morte vai causar à família - apenas acha mais fácil agir dessa maneira.

Mas algo estranho acontece quanto ele viaja para encontrar sua avó. Uma garçonete jovem e casada (Valeria Bruni-Tedeschi, que Ozon dirigiu no ano passado em O Amor em 5 Tempos) mostra que o acha atraente. Na próxima vez em que vê Romain, ela lhe conta que seu marido é estéril e, em nome do casal, pede a Romain que a engravide. Romain recusa o convite, mas muda de idéia mais tarde. E os três vão para a cama juntos, numa das raras cenas de amor a três vistas no cinema que consegue ser comovente e emotiva, em lugar de apenas lasciva.

Além disso, Romain começa a fazer fotos diferentes das que fazia profissionalmente. Sua perspectiva mudou. É quase como se essas fossem as imagens que ele gostaria de levar consigo para sua próxima vida. A imagem final do filme é a de um homem que encontrou dentro de si mesmo a paz interior na qual poderá passar os derradeiros dias de sua vida.

E há todo um conceito implícito na história. O fato de Romain ser um fotógrafo não é gratuito. No começo do filme ele está fazendo um ensaio de moda - ligeiro, dezenas de cliques por minuto, superficial. Quando fica sabendo da doença terminal, começa a olhar o mundo de jeito diferente. E a narrativa passa a acompanhar esse olhar: mais pausado, paciente, contemplativo. Com a sua câmera Romain capta momentos banais e extrai deles a essencialidade. O personagem não diz, mas quer viver para sempre através dessas imagens. Assim como Ozon quer durar por meio das suas.

O Sabor da Melancia



Nota: 7,5

Uma atriz pornô vestida de enfermeira atravessa um corredor com uma melancia nos braços. A fruta - descobrimos logo em seguida, nas cenas que abrem O Sabor da Melancia (Tian Bian Yi Duo Yun, 2005) - é objeto de cena. Deitada sobre lençol branco, ela coloca meia melancia no meio das pernas abertas. O "doutor" se aproxima. Lambe a fruta. Apalpa a polpa. Cavuca a melancia. A mulher geme. É o clímax. Ele enfia pedaços bem vermelhos na boca dela. O sumo lhe escorre pela cara saciada.

É importante começar assim, pela metáfora pornográfica, a falar do novo filme do malaio Tsai Ming-Liang. Não é sessão para qualquer um. E se eu partisse classificando-o como um musical pornô kitsch, também não ajudaria muito. Se a descrição da cena acima lhe incomodou, desculpe - era preciso dividir um pouco da experiência visual para tentar explicar, com palavras que serão sempre insuficientes, o que é essa obra-prima de som e imagem que se chama O Sabor da Melancia.

Hsiao-Kang, o ator, praticamente secou a fruta - mas não cansou. No alto de um prédio em Taiwan, num quarto onde funciona a produtora pornô, ele continua a encenar. Entre uma gravação e outra, cruza no corredor com Shiang-chyi, moradora de um apartamento abaixo, que assiste televisão espremendo entre as pernas um pufe em forma de flor. Ela carrega garrafões cheios quando pode. Uma onda de calor assola Taiwan e, como em muitas regiões da China que crescem desmedidamente, está faltando água. Está sobrando melancia.

Shiang-chyi e Hsiao-Kang não dividem apenas o calor e a sede. Eles têm algo em comum, aqueles anseios que as pessoas não externam mas que sufocam por dentro. Aos poucos os dois se conhecem melhor. Ela cozinha os caranguejos que ele luta para colocar dentro da panela. Ele tenta destrancar a mala dela. Ela serve o molho no lamen que ele prepara. Eu disse que O Sabor da Melancia é um musical pornô kitsch? Corrija aí, por favor: além de tudo isso ainda é uma comédia romântica gastronômica existencial.

Mas continua sendo uma experiência menos dramatúrgica e mais sensorial, essencialmente audiovisual. Som e imagem se fundem em cenas de banalidade (malas com rodinha atravessando uma passarela), em cenas de poesia (a água que brota do asfalto) e em cenas de exagero (números musicais cafonas com direito a multidão de guarda-chuvas, como nos clássicos da Metro). Tudo funciona na base da simbologia, e a leitura depende muito da reação do espectador. O Sabor da Melancia está escancarado a interpretações, e a partir daí dá pra dilatar o gênero ainda mais. Modernidade e globalização estão em pauta. Especificamente em Ming-Liang, a questão é: como sobreviver à "seca" de humanidade da China em transformação.

Como sobreviver? Lambendo a fruta. Apalpando a polpa. Cavucando a melancia. Deflorando o pufe. Pondo o caranguejo pra dentro da panela. Molhando o lamen. Destrancando a mala. Provavelmente O Sabor da Melancia é o filme com mais metáforas sexuais da história do cinema. Se, na hora em que a carnalidade chega de verdade, apaixonada, redentora, jorrante, o espectador se indignar, é porque deixou o rico e colorido léxico cinematográfico de Tsai Ming-Liang lhe passar despercebido.

Enquanto o máximo de conversa entre os protagonistas é um tímido "psiu", o romance é dolorosamente construído por meio de imagens metafóricas, sempre com a frieza do movimento de câmera quase nulo. A incomunicabilidade entre os seres humanos é um dos temas principais do filme e provocou intenso debate com sua mistura de pornografia, solidão urbana e musical kitsch.

Se por um lado, o relacionamento não-verbal, entremeado com cenas pornôs e performances musicais que beiram o ridículo, incomoda tanto quanto a urgência de amor vivida pelos personagens; por outro lado, a fotografia meticulosamente calculada faz o espectador deleitar-se num mundo de possibilidades: bolas de sabão saem da torneira seca, melancias correm pelo rio, pessoas dormem em redes colocadas no vão livre das escadas de um prédio.