28 setembro 2006

A Estrada Perdida - David Lynch (1997)



Nota: 10

Existe um fator cultural muito forte e que, de uma maneira ou de outra, acaba sempre por vir à tona quando da exibição de alguns filmes de David Lynch. Esse fator é desdobramento do que Serge Daney, um dos grandes nomes da história da crítica cinematográfica, já apontava nos anos 70: a consolidação de sociedades cada vez mais eficazes na atitude de ler (e decifrar, dissecar estruturas de linguagem), mas cada vez menos capazes de ver. Quando se fala em "civilização da imagem", por exemplo, não se leva em conta a distinção entre o visual e a imagem, o primeiro correspondendo à "verificação óptica" de um procedimento de significação (leitura), enquanto a imagem seria o que ainda resguarda uma experiência para além do visual, uma forma de percepção que dribla a equação mais comum. O próprio cinema, nos seus termos particulares, assim que abraçou a narratividade ergueu todo um edifício de códigos que ultrapassa a simples analogia icônica. Em se tratando de A Estrada Perdida, entretanto, tudo cujo modelo operacional é aferido nesse confuso acordo entre visão e cognição deve ser deixado de lado. São justamente os dois binômios-base da cultura visual (causa-efeito e visão-cognição) o que pode impedir a fruição plena desse filme.

O grande tema de Lynch é a luz. Mesmo o som, perfeitamente trabalhado tanto em A Estrada Perdida quanto em Veludo Azul ou História Real, é uma espécie de cara-metade dos objetos reluzentes, um murmúrio da luz (se há uma imagem recorrente em Lynch, é a de uma lâmpada com defeito, ou com insetos dentro dela, acendendo e apagando ao som de um ruído incômodo). Até as extraordinárias trilhas sonoras de Angelo Badalamenti acompanham as curvas de luminosidade dos filmes de Lynch para que são compostas. Em A Estrada Perdida, assim como em Cidade dos Sonhos, o diretor segue uma lógica de cinema-instalação; o que vale é atravessar o filme, passar pelo seu campo magnético. Nenhuma parede é mero anteparo, qualquer superfície tem cor, tem estampa, reflete ou texturiza uma imagem ou uma luz. Além de duração e força, a luz em Lynch tem motivo e forma – daí ele sempre frisar sua fonte e sua incidência. Mas essa luz, esse clarão que cega possui também outro nome, complementar à sua natureza física: o amor. O universo lynchiano é movido a paixão, é o lugar da efervescência, do irracional, da sensualidade, do sonho. E, sabemos, o que essa moeda traz no verso é o pesadelo da perda, o afundamento, a loucura, o destino trágico.

A Estrada Perdida apanha Fred (Bill Pullman) e Renne (Patricia Arquette) numa fase difícil do casamento. Ele a está sentindo distante, como no sonho que resolve contar: "você estava lá, mas não era você". O filme é exatamente sobre isso: estar lá e não estar, ou ainda, estar com alguém e não saber quem é, não importando se acabou de conhecê-la ou se estão casados há anos. A angústia irredutível do amor é igual àquela provocada pela imagem: mesmo a esposa, mesmo a pessoa com quem se passa a maior parte da vida é sempre um "outro", guarda sempre um mistério, o que remete a um dos princípios fundadores da imagem, qualquer imagem: a alteridade radical, o fato de que, por mais próxima que ela possa estar, sempre haverá uma opacidade, uma intransponibilidade. "Você nunca irá me ter", diz Alice (Patricia Arquette de novo, agora loira) a Pete, após transarem na areia do deserto, faróis do carro sobre eles, numa das cenas mais sensuais da história do cinema. Esses personagens que se confundem (e nos confundem), esses rostos que se misturam são projeções de qualquer relação amorosa.

Lynch é um dos poucos cineastas a ainda trazer para a tela o nunca visto – além de ressignificar o muito visto – e lidar com as ressonâncias do inexplorado, do ausente. Não há outra maneira de filmar a ausência senão através de suas vibrações na superfície dos objetos mostrados. É justamente isso que vemos em A Estrada Perdida, um filme em que tudo que interessa está na tela, mas sempre fazendo ecoar algo distante. Essa invasão do fora-da-tela, do desconhecido, do acaso, é uma verdadeira invasão de privacidade, como nas fitas de vídeo que Fred e Renne recebem, e que consistem em imagens feitas dentro da sua própria casa por alguém que eles nem desconfiam como pode ter entrado lá. A imagem, pornográfica por excelência, é sempre (e em si mesma) invasiva: "roubar" o semblante de alguém e expô-lo em praça pública: a imagem é já a ob-cena (Daney). A Estrada Perdida vai plantando armadilhas, vai seduzindo o espectador, mexendo com sua mente. Mas o destino dessas pistas recolhidas já foi dado na primeira imagem do filme: a estrada vazia, escura, e a câmera (e, por conseguinte, nós) assumindo o ponto de vista do motorista, vendo a interminável sucessão de listras amarelas, uma após a outra, parcelas cuja soma não fornece um resultado redondo. Cabe ao filme apenas iluminar essas listras através do alcance limitado imposto pelo farol do carro – o resto é escuridão.

E há os momentos mágicos, como na cena em que Alice aparece para Pete ao som de "This magic moment" (Lou Reed), e isso basta para que ele se apaixone. Entrada em cena que lembra a primeira aparição de Sandy (Laura Dern) em Veludo Azul: quando o amor surge no filme, este se enche de uma cor e de um brilho que até então não parecia ter. Se Lynch filma também coisas obscuras, é porque faz um cinema musical cujo fraseado dificilmente entrega a nota seguinte; uma complexa equalização que seus filmes acham entre a melodia e a dissonância, entre a beleza e a bizarrice. A resposta está no final de Veludo Azul: "É um mundo estranho", Sandy diz calmamente, ao contemplar o passarinho que fisga um inseto com o bico: o estranho alimenta o belo.

Longe de uma defesa do refinamento estético e da leitura difícil, o cinema de David Lynch é um arranjo experimental bastante atento a potencialidades – e indiferente a mensagens. Ele acrescenta fermento aos signos, mas não os desmonta (como muitos pensam); simplesmente lança-lhes luz. Lynch constrói ambiência, dá ritmo ao espaço dos acontecimentos, faz menos uma pesquisa formal do que uma provocação. Em Twin Peaks – Os Últimos Dias de Laura Palmer, vale lembrar que nenhuma das drogas que a personagem principal consome consegue aluciná-la com a mesma eficácia da fotografia singelamente assustadora que ela pendurou na parede do quarto (a imagem de uma porta que a conduz ao pesadelo noturno). Não percamos tempo com joguinhos de adivinhação, esqueçamos as engenhocas narrativas: produto da farmácia de Lynch, A Estrada Perdida é alucinógeno dos melhores.