Zuzu Angel
Nota: 8
O milico se aproxima do carro de Zuzu Angel, no rádio toca a fita que Chico Buarque gravou para ela. A música é "Apesar de você", clássico contra a ditadura. O sujeito aperta botão, bate, chuta, não consegue ejetar a fita. O carro está semidestruído, mas a música não pára.
É um simbolismo óbvio? Sem dúvida. Mas é um dos raros momentos em que Zuzu Angel (2006), longa baseado em história real, se torna cinema de fato - narrado por meio das imagens, e não só das palavras.
A obra do diretor Sérgio Rezende se encaixa no subgênero dos filmes políticos de denúncia. Patrícia Pillar interpreta Zuleika Angel Jones, a Zuzu (1921-1976), uma das primeiras estilistas brasileiras a se destacar internacionalmente, no início dos anos 70. Dentro de casa, o conflito. Seu filho Stuart (Daniel de Oliveira, o Cazuza), militante de esquerda, não se conforma que ela feche os olhos para a situação do país - pior que isso, que ela até costure para esposa de general. Quando o rapaz desaparece, depois de ser preso e torturado pelo exército, Zuzu toma um choque de realidade.
A luta da mãe para saber a verdade sobre o destino do filho levou-a inclusive a recorrer a personalidades internacionais, como o então secretário de Estado americano Henry Kissinger. O motivo era que Stuart, filho de um americano, tinha também essa nacionalidade.
Como resultado de sua pressão, que expunha a face mais dura do regime militar dentro e fora do país, a estilista acabou morrendo num acidente de carro, em 1976, no mesmo túnel no Rio de Janeiro que hoje leva seu nome.
É o próprio diretor, Sérgio Rezende, em entrevista à Reuters em um hotel de São Paulo, quem afirma que a morte de Zuzu foi criminosa: "Hoje é oficial e reconhecido pelo Ministério da Justiça que Zuzu sofreu um atentado", disse.
Embora deixe esse detalhe bem claro, bem como toda a perseguição que a estilista sofreu por parte de agentes da repressão política, Zuzu Angel aposta bem mais na emoção. Para isso, individualiza a discussão sobre as diferenças de postura frente à ditadura militar no Brasil dos anos 1970. De um lado, está a figura ponderada e a princípio apolítica de Zuzu, e de outro, a oposição engajada do filho socialista, Stuart.
Nascido em 1951, Rezende tinha um amigo chamado Beto, que foi preso de repente. "Ele era motorista da Aliança Libertadora Nacional, um movimento de guerrilha, nos assaltos a banco que eles faziam. E eu não sabia de nada", conta.
Com um elenco assim estelar, numa produção cuidada, com orçamento de 6,5 milhões de reais, é certo que o filme visa o grande público, procurando apresentar os fatos de maneira didática.
Na trilha sonora de Cristóvão Bastos, o destaque é a canção "Angélica", composta especialmente por Chico Buarque de Holanda para a estilista, um ano após sua morte. Foi com Chico, aliás, que Zuzu deixou uma carta, pouco antes de morrer, denunciando que, se algo lhe acontecesse, seria obra dos mesmos autores da morte de seu filho.
A reconstituição histórica é exemplar na medida em que repassa a carreira de Zuzu antes e depois do caso. Suas coleções são como síntese do espírito nacional - antes, estampas carmenmirandísticas, depois, figurinos frios com imagens de pássaros engaiolados e anjos feridos. Pesquisa bem feita, direção de arte cuidadosa... É o básico do produção nacional de hoje em dia; o público não permite desleixo.
Acontece que é hora de avançar além do básico. E Zuzu Angel esbarra em uma chaga que assola quase toda a nossa cinematografia: a dramaturgia. Roteiros ultratrabalhados, diálogos afinados a ponto de não permitir improviso, tudo passa por meticuloso tratamento antes da câmera começar a rodar. E o que falta é justamente a invenção do momento, saber se emancipar, visualmente falando, daquilo que está escrito no script. Falta, antes disso, saber traduzir texto em imagem. Zuzu Angel é - com exceções como a mencionada acima, ou a cena curiosa em que Elke Maravilha se encontra com sua intérprete no filme, Luana Piovani - um longa-metragem de diálogos filmados.
Felizmente, não chega a ser um melodrama invasivo como Olga - mas isso não significa que Zuzu Angel seja sóbrio. O trabalho de Rezende - que há doze anos tratou do tema em Lamarca e até conseguiu que Paulo Betti repetisse aqui o papel - não deixa de ser um filme de denúncia, com as armadilhas que o subgênero impõe. A principal é transformar pessoas em ideais. Stuart é mais uma personificação de uma ideologia do que um ser humano que sente e raciocina. Reduzido e planificado, Daniel de Oliveira perde força.
O mesmo aconteceria com Zuzu se Patrícia Pillar não tivesse tanta felicidade em se encontrar dentro da personagem (em certos momentos ela força a barra, claro). Pela variação de linguagens, por oscilar entre teatro e cinema, o filme acaba irritando em certos momentos, mas o problema ainda é o roteiro. O cineasta cearense Karim Aïnouz tem uma posição consolidada a respeito. Em suas palavras, "odeia trama". Pode reparar: os filmes que têm o seu toque, seja como diretor (Madame Satã), seja como co-roteirista (Cidade Baixa, Cinema, Aspirina e Urubus), são absolutamente abertos no que diz respeito ao script. E isso não significa só improvisar diálogos, mas eliminar redundâncias narrativas, livrar-se de fórmulas e não se antecipar a escolhas.
É uma lição que poderia ser disseminada. Nos três filmes citados, fica parecendo que os personagens escolhem rumos por si mesmos. No filme de Rezende, salta aos olhos o caminho que escolhem para Zuzu.
Ao desenhar a personagem, Rezende e o co-roteirista Marcos Bernstein acentuam esse traço, o do chamado ao qual mãe nenhuma diria não. Cabe a Patrícia Pillar desempenhar quase sozinha o papel que coube, na Argentina, a movimentos de mães e avós de desaparecidos: assinalar a brutalidade do regime, expor o rosto das vítimas e cobrar providências. A familiaridade com os procedimentos de adaptação de fatos verídicos não evita, contudo, que o filme reitere características habituais (e discutíveis) de cinebiografias. A solenidade histórica, por exemplo.
Os diálogos são muitas vezes substituídos por discursos. É possível argumentar que a militância política envolve sempre quem fale à mesa durante uma refeição como se estivesse num palanque, mas, a exemplo do que ocorria em Olga, a recorrência parece ligada a um conceito duvidoso de tratamento dramatúrgico de personagens notáveis, como se tudo o que fizessem e dissessem precisasse carregar grandeza.