30 agosto 2006

Zuzu Angel



Nota: 8

O milico se aproxima do carro de Zuzu Angel, no rádio toca a fita que Chico Buarque gravou para ela. A música é "Apesar de você", clássico contra a ditadura. O sujeito aperta botão, bate, chuta, não consegue ejetar a fita. O carro está semidestruído, mas a música não pára.

É um simbolismo óbvio? Sem dúvida. Mas é um dos raros momentos em que Zuzu Angel (2006), longa baseado em história real, se torna cinema de fato - narrado por meio das imagens, e não só das palavras.

A obra do diretor Sérgio Rezende se encaixa no subgênero dos filmes políticos de denúncia. Patrícia Pillar interpreta Zuleika Angel Jones, a Zuzu (1921-1976), uma das primeiras estilistas brasileiras a se destacar internacionalmente, no início dos anos 70. Dentro de casa, o conflito. Seu filho Stuart (Daniel de Oliveira, o Cazuza), militante de esquerda, não se conforma que ela feche os olhos para a situação do país - pior que isso, que ela até costure para esposa de general. Quando o rapaz desaparece, depois de ser preso e torturado pelo exército, Zuzu toma um choque de realidade.

A luta da mãe para saber a verdade sobre o destino do filho levou-a inclusive a recorrer a personalidades internacionais, como o então secretário de Estado americano Henry Kissinger. O motivo era que Stuart, filho de um americano, tinha também essa nacionalidade.

Como resultado de sua pressão, que expunha a face mais dura do regime militar dentro e fora do país, a estilista acabou morrendo num acidente de carro, em 1976, no mesmo túnel no Rio de Janeiro que hoje leva seu nome.

É o próprio diretor, Sérgio Rezende, em entrevista à Reuters em um hotel de São Paulo, quem afirma que a morte de Zuzu foi criminosa: "Hoje é oficial e reconhecido pelo Ministério da Justiça que Zuzu sofreu um atentado", disse.

Embora deixe esse detalhe bem claro, bem como toda a perseguição que a estilista sofreu por parte de agentes da repressão política, Zuzu Angel aposta bem mais na emoção. Para isso, individualiza a discussão sobre as diferenças de postura frente à ditadura militar no Brasil dos anos 1970. De um lado, está a figura ponderada e a princípio apolítica de Zuzu, e de outro, a oposição engajada do filho socialista, Stuart.

Nascido em 1951, Rezende tinha um amigo chamado Beto, que foi preso de repente. "Ele era motorista da Aliança Libertadora Nacional, um movimento de guerrilha, nos assaltos a banco que eles faziam. E eu não sabia de nada", conta.

Com um elenco assim estelar, numa produção cuidada, com orçamento de 6,5 milhões de reais, é certo que o filme visa o grande público, procurando apresentar os fatos de maneira didática.

Na trilha sonora de Cristóvão Bastos, o destaque é a canção "Angélica", composta especialmente por Chico Buarque de Holanda para a estilista, um ano após sua morte. Foi com Chico, aliás, que Zuzu deixou uma carta, pouco antes de morrer, denunciando que, se algo lhe acontecesse, seria obra dos mesmos autores da morte de seu filho.

A reconstituição histórica é exemplar na medida em que repassa a carreira de Zuzu antes e depois do caso. Suas coleções são como síntese do espírito nacional - antes, estampas carmenmirandísticas, depois, figurinos frios com imagens de pássaros engaiolados e anjos feridos. Pesquisa bem feita, direção de arte cuidadosa... É o básico do produção nacional de hoje em dia; o público não permite desleixo.

Acontece que é hora de avançar além do básico. E Zuzu Angel esbarra em uma chaga que assola quase toda a nossa cinematografia: a dramaturgia. Roteiros ultratrabalhados, diálogos afinados a ponto de não permitir improviso, tudo passa por meticuloso tratamento antes da câmera começar a rodar. E o que falta é justamente a invenção do momento, saber se emancipar, visualmente falando, daquilo que está escrito no script. Falta, antes disso, saber traduzir texto em imagem. Zuzu Angel é - com exceções como a mencionada acima, ou a cena curiosa em que Elke Maravilha se encontra com sua intérprete no filme, Luana Piovani - um longa-metragem de diálogos filmados.

Felizmente, não chega a ser um melodrama invasivo como Olga - mas isso não significa que Zuzu Angel seja sóbrio. O trabalho de Rezende - que há doze anos tratou do tema em Lamarca e até conseguiu que Paulo Betti repetisse aqui o papel - não deixa de ser um filme de denúncia, com as armadilhas que o subgênero impõe. A principal é transformar pessoas em ideais. Stuart é mais uma personificação de uma ideologia do que um ser humano que sente e raciocina. Reduzido e planificado, Daniel de Oliveira perde força.

O mesmo aconteceria com Zuzu se Patrícia Pillar não tivesse tanta felicidade em se encontrar dentro da personagem (em certos momentos ela força a barra, claro). Pela variação de linguagens, por oscilar entre teatro e cinema, o filme acaba irritando em certos momentos, mas o problema ainda é o roteiro. O cineasta cearense Karim Aïnouz tem uma posição consolidada a respeito. Em suas palavras, "odeia trama". Pode reparar: os filmes que têm o seu toque, seja como diretor (Madame Satã), seja como co-roteirista (Cidade Baixa, Cinema, Aspirina e Urubus), são absolutamente abertos no que diz respeito ao script. E isso não significa só improvisar diálogos, mas eliminar redundâncias narrativas, livrar-se de fórmulas e não se antecipar a escolhas.

É uma lição que poderia ser disseminada. Nos três filmes citados, fica parecendo que os personagens escolhem rumos por si mesmos. No filme de Rezende, salta aos olhos o caminho que escolhem para Zuzu.

Ao desenhar a personagem, Rezende e o co-roteirista Marcos Bernstein acentuam esse traço, o do chamado ao qual mãe nenhuma diria não. Cabe a Patrícia Pillar desempenhar quase sozinha o papel que coube, na Argentina, a movimentos de mães e avós de desaparecidos: assinalar a brutalidade do regime, expor o rosto das vítimas e cobrar providências. A familiaridade com os procedimentos de adaptação de fatos verídicos não evita, contudo, que o filme reitere características habituais (e discutíveis) de cinebiografias. A solenidade histórica, por exemplo.

Os diálogos são muitas vezes substituídos por discursos. É possível argumentar que a militância política envolve sempre quem fale à mesa durante uma refeição como se estivesse num palanque, mas, a exemplo do que ocorria em Olga, a recorrência parece ligada a um conceito duvidoso de tratamento dramatúrgico de personagens notáveis, como se tudo o que fizessem e dissessem precisasse carregar grandeza.

Buena Vida Delivery



Nota: 8

Como muitos portenhos na ressaca da crise de 2001, o irmão e os pais de Hernán (Ignacio Toselli) trocam Buenos Aires pela Espanha. Hernán não diz, mas percebe-se que decide ficar na Argentina por questão de orgulho. Ou seria comodismo? O fato é que agora tem uma casa só para ele.

Hernán é motoboy da firma que dá nome a Buena Vida Delivery (2004). Não é o único sem a menor perspectiva de melhorar de vida. Quer dizer, tem um cara esquisito na Buena Vida que quer enriquecer criando lesmas para exportação... Mas esse é mais folclore do que qualquer coisa. As lesmas só vêm ao caso como metáfora - todos ali agem com a lentidão e o automatismo de um limacídeo. A diferença é que Hernán não paga aluguel.

Sempre que pára no posto de gasolina da vizinhança, Hernán puxa papo com a frentista Pato (Mariana Anghileri). Um dia, convida-a para almoçar. Não tem nada a perder, e no seguinte já sugere que eles dividam a casa. São dois quartos mesmo, e o preço que Hernán cobraria da nova inquilina é amigável... Ela aceita. Claro que não passará uma semana até que Hernán e Pato comecem a dividir o mesmo lençol.

Até aqui o roteirista e diretor principiante Leonardo Di Cesare monta a história de jeito gostoso - Hernán e Pato combinam, são como refúgios de afeto em uma cidade desumanizada. Ela tem cara de quem ajudará Hernán a ser mais decidido, talvez. Ele pode dar a Pato o lar do qual ela parece sentir falta. Precisam um do outro, enfim, e se completam, como todo grande casal.

Di Cesare sugere o amor, e é só o tempo de cativar o espectador para que a história vire 180 graus.

Os pais dela aparecem na casa de Hernán sem avisar. Trazem uma menina, que o rapaz logo descobre ser filha de Pato. Venancio (o ótimo Oscar Nuñez, de Nove Rainhas), o "sogro", agradece a hospitalidade, discursa, diz que não se fazem mais portenhos acolhedores como Hernán - e promete ir embora na manhã seguinte. Passam-se dias, semanas. Quando pisca, Hernán viu que sua casa se transformou em uma mini-fábrica de churros, com bolivianos dormindo no chão da sala. Na cozinha a "sogra" distribui os doces aos entregadores. No quintal Venancio exalta seus novos sócios (os tipos que venderão os churros na rua) a acreditar no negócio.

E Pato, como fica? Bom, daí você precisa assistir para saber.

O importante é a reflexão que o filme estimula a respeito da situação de Hernán. Seu sufoco kafkiano desperta indignação ou é uma lição que ele merece aprender? Afinal, como diz Venancio, os churros uma hora vão dar dinheiro... Vale mais seu "direito à propriedade" ou o dever de dividir sua "terra improdutiva" com os hermanos? Os termos em aspas não são por acaso - o filme é uma síntese da discussão entre teoria capitalista e socialista. O comunismo deu errado porque, na hora de repartir entre os seus, o sistema não soube considerar a ambição de muitos, ambição essa que é inerente ao indivíduo. Onde entram em Buena Vida Delivery as ambições de Hernán, se é que ele as tem?

Saber que este é apenas o primeiro filme de Di Cesare só reforça a certeza de que os argentinos no cinema fazem escola. Histórias enxutas e dinâmicas, complexas na sua simplicidade, maleáveis no humor e no drama, formam o que há de melhor na cinematografia latino-americana hoje. Na mão de outro, Buena Vida Delivery se impregnaria de julgamentos, dramaticidades e facilitações. Se, vá lá, um brasileiro dirigisse o mesmo filme, não seria difícil imaginar o final: Hernán casando com Pato, festança paga pelos churros milionários da comuna, desculpas aceitas e votos de felicidade.

Mas a realidade é mais complicada, e mostrar a vida real é especialidade do cinema portenho. Di Cesare pega essa estrutura de parábola, de alegoria (a reação de Pato, até certo ponto previsível, se ajusta perfeitamente porque Di Cesare não nega o formato de parábola) e enche a cabeça do espectador de questionamentos.

Café da Manhã em Plutão



Nota: 6

O diretor Neil Jordan, cujo filme de 1996 Nó na Garganta foi baseado em um romance do irlandês Patrick McCabe, volta a colaborar com o escritor em Café da Manhã em Plutão. Jordan se volta mais uma vez a um universo marginal e violento. Desta vez, porém, seu protagonista enxerga apenas o lado positivo da vida.

A história faz paralelos evidentes com Traídos pelo Desejo, premiado com o Oscar em 1992 e também de Jordan. O longa conta a vida excêntrica de um certo Patrick "Kitten" Braden, travesti desatento que se envolve com o Exército Republicano Irlandês (IRA) enquanto procura sua mãe, com quem perdera contato anos antes. Mas, diferente de Traídos pelo Desejo, Café da Manhã em Plutão não tem nenhuma grande surpresa no final, o que é uma pena. A produção em clima alegre e a trilha sonora descompromissada dos anos 1970 carregam o filme até certo ponto, mas a narrativa não se sustenta por todos seus 135 minutos de duração.

Depois de atuar em Vôo Noturno e Batman Begins (ele era o Espantalho), o ator Cillian Murphy passa batom para assumir o papel de Patrick "Kitten" (gatinho), um rapaz (ou moça) delicado com voz sussurrante que o faz soar como um Michael Jackson irlandês. Abandonado por sua mãe quando era bebê, Kitten passa sua adolescência experimentando os vestidos de sua meia-irmã e escandalizando seu pequeno povoado irlandês de várias outras maneiras.

Quando atinge a idade necessária para poder pedir carona, ele parte numa busca para encontrar sua mãe e, nesse percurso, topa com uma sequência de personagens bizarros e interessantes, começando por Billy Rock (Gavin Friday), vocalista de uma banda de rockabilly que incorpora maquiagem espalhafatosa e temas de faroeste. Kitten se envolve romanticamente com Billy.

Mais ou menos ao mesmo tempo, ele também se envolve em atividades do IRA, sem ter consciência disso, e é então que sua vida realmente se torna problemática. Embora possa ter funcionado bem em formato de livro, a justaposição das loucas escapadas de Kitten com um período sangrento e tumultuado da história irlandesa, sem se interessar por política ou coisas sérias, apenas por futilidades e luxo, não chega a convencer muito na tela. O resultado final parece um conceito muito mais forçado do que inspirado.

O que é igualmente problemático é que o personagem de Kitten, conforme é apresentado por Jordan e McCabe, não é suficientemente interessante para conquistar a adesão do espectador, apesar da performance engajada de Murphy, que remete à atuação mais provocante de Gael Garcia Bernal em A Má Educação, de Pedro Almodóvar.

Há atuações coadjuvantes divertidas de vários colaboradores passados de Neil Jordan, incluindo Liam Neeson como padre que tem uma ligação secreta com o passado de Kitten, Stephen Rea no papel de mágico solitário e apaixonado e Brendan Gleeson como personagem de parque temático infantil chamado Titio Bulgária.

E é difícil fazer qualquer crítica a uma trilha sonora que consegue incorporar Van Morrison, Bobby Goldsboro, Harry Nilsson e a banda britânica Middle of the Road, cuja canção ridiculamente contagiante "Chirpy Chirpy Cheep Cheep" cria o desejado tom amalucado que o filme tenta, mas não consegue manter até o final.

Sob o Efeito da Água



Nota: 6,5

Em Sob o Efeito da Água, seu segundo longa-metragem, o diretor Rowan Woods novamente comprova que é mestre em criar uma atmosfera forte, muitas vezes pesada, sombria. Apesar dos ecos da trama árida de seu trabalho de estréia, Os Garotos, sobre violência na classe baixa australiana, Sob o Efeito da Água alcança momentos de grande beleza, graças em grande medida à presença da atriz principal Cate Blanchett, em seu primeiro papel australiano desde Oscar e Lucinda, de 1997.

Depois de representar uma série de papéis internacionais de destaque, incluindo a atuação que lhe valeu um Oscar em O Aviador, Blanchett surge longe dos papéis de época que parecem ter sua preferência, fazendo algo raro: representando um personagem de sua idade, que fala com seu próprio sotaque.

Mesmo com temas sombrios como criminalidade e dependência de drogas, este filme australiano criado por uma ótima equipe independente, com um orçamento minúsculo, deve beneficiar-se da presença de Blanchett e apresentar bom desempenho no circuito internacional do cinema de arte. A história é ambientada na multicultural zona sudoeste de Sydney, um lugar marcado pelas drogas e o crime organizado. O talento de Rowan Woods consiste em acrescentar coração e alma a personagens que, à primeira vista, não despertariam a simpatia do espectador.

Tracy Heart (Blanchett) é uma mulher que conseguiu superar uma dependência séria de drogas, mas continua cercada pelo mundo sombrio do vício. As ruas do bairro estão repletas de junkies: seu próprio irmão, o problemático amputado Ray (Martin Henderson, de Orgulho e Preconceito), está envolvido com o tráfico; sua figura paterna fraca (Hugo Weaving, dos filmes Matrix e Senhor dos Anéis) está enredado numa teia de abuso de heroína, e seu ex-namorado Johnny (Dustin Nguyen) voltou a Sydney depois de passar quatro anos no Canadá. Tracy quer começar vida nova, mas descobre que seu passado está prestes a reencontrá-la.

Sob o Efeito da Água é um drama intransigente e autêntica que tem um pouco do ambiente dos filmes britânicos realistas de Ken Loach. Apesar dos homicídios, dos bandidos e do tráfico, o filme é um estudo de personagens. E a roteirista Jacquelin Perske conduz a narrativa com habilidade através das histórias interligadas que se desenrolam em torno de Tracy.

A família está no cerne da história. À medida que seu desespero aumenta, Tracy é puxada em direções opostas por duas forças diferentes, mas relacionadas entre si. A participação de seu irmão no tráfico a chama de volta a sua vida antiga, ao mesmo tempo em que sua mãe (a veterana Noni Hazlehurst em bela atuação) se esforça para manter Tracy no caminho da recuperação. O choque entre os dois forma a dinâmica central do filme, a partir da qual as falhas dos personagens são exploradas.

Sob o Efeito da Água possui uma autenticidade sombria. A impressão que se tem é que as casas mostradas realmente são habitadas, e os ambientes são destituídos do menor indício de glamour.

Felizmente, porém, isso não impede o diretor de dar asas a sua imaginação. A direção fotográfica de Danny Ruhlmann acrescenta um brilho quase surreal que ajuda a transmitir o conflito interno de Tracy. E a presença forte da trilha sonora emotiva de Nathan Larson (Meninos Não Choram, O Lenhador) vai gentilmente distanciando o filme de uma abordagem puramente realista.

Blanchett está solta, natural e totalmente convincente no papel de Tracy, que ela imbui de uma espécie de ternura ferida.

O junkie desesperançado representado por Weaving é uma mudança corajosa empreendida por um ator sempre ousado. Ele está fisicamente transformado e magérrimo, passando por uma sequência de emoções diferentes que o levam a ser sedutor em um momento e homem destruído e desesperado no momento seguinte.

E apenas por título de curiosidade, Little Fish (nome do filme em inglês), é o nome de um frasco de heroína líquida que aparece no filme.

O Que Você Faria?



Nota: 7

No dia de uma reunião do G-8 em Madri, marcado por manifestações antiglobalização, sete executivos disputam uma vaga em uma empresa espanhola. Eles participam de um inusitado teste de seleção conhecido como Método Gröholm. Trancado em uma sala, o grupo tenta descobrir qual é o agente da empresa infiltrado entre eles, desmoralizar os oponentes etc.

Defendidos por excelentes atores espanhóis e argentinos, os personagens funcionam como símbolos. Carlos (Eduardo Noriega) e Nieves (Najwa Nimri), amantes no passado, são representantes da juventude tecnocrática. Já Fernando (Eduard Fernández) e Ana (Adriana Ozores) são veteranos que não conseguem encontrar um lugar na nova ordem.

Visto de dentro, o trabalho pode até ser o que mais dignifica o homem. De fora, as disputas e a concorrência muitas vezes desleal tornam os habitantes desse mundo parentes próximos daqueles que vivem em jaulas.

No cinema recente, essa visão ganhou foco em filmes como A Agenda (Laurent Cantet), O Adversário (Nicole Garcia) e O Corte (Costa-Gavras), em que o mal-estar contemporâneo da precariedade dos laços e dos compromissos é visto a partir da perspectiva de que o abalo da base material, devido ao desemprego, faz vir abaixo todo o edifício dos outros valores.

O argentino Marcelo Piñeyro retoma a idéia em O Que Você Faria, em que sete candidatos a uma vaga de executivo em uma multinacional exercitam suas habilidades em um esforço assumido de eliminar-se mutuamente. Piñeyro trata o mundo da competição brutal apropriando-se, de maneira sutil, do dispositivo de eliminação popularizado pelos "reality shows" da televisão.

Em vez da onipresença das câmeras, como em "Big Brother" e outras anomalias do entretenimento, o diretor argentino retém o princípio de base de todos esses programas. A saber: desde que movidos exclusivamente pela ambição da vitória, os indivíduos passam a enxergar o outro apenas como ameaça, perde o sentido qualquer exercício racional de negociação e entra em vigor um simplista e primário desejo de eliminação.

Em vez de emular os cansativos dispositivos do "reality show", Piñeyro testa a hipótese subjacente a esses programas sob a forma de um drama claustrofóbico. Ao não optar pela imitação, ele usa o cinema como instrumento para devolver à suposta realidade do "reality" aquilo que ela perdeu: o sentido de valor.

A força da situação inicial cede espaço a truques fáceis de roteiro. O que Você Faria? é muito mais satisfatório na apresentação dos personagens do que na resolução de seus conflitos.

Lemming



Nota: 7,5

Lemming - Instinto Animal foi exibido na noite de abertura do Festival de Cannes em 2005, sendo depois cotado como um dos favoritos para a Palma de Ouro. Em alguns momentos evocativo e cheio de suspense, em outros o filme é apenas tolo, mas em todo caso demonstra humor mordaz ao mostrar seus personagens perdendo o controle.

Ao todo, porém, Lemming, não se mostra à altura da expectativa gerada por seu clima ricamente desenvolvido de ameaça e anormalidade escondidas sob a superfície da vida normal. O diretor Dominique Moll fez sua estréia na competição oficial de Cannes em 2000 com o thriller bizarro Harry Veio para Ajudar, mais tarde adquirido pela Miramax.

Ele conta com duas estrelas, as atrizes Charlotte Gainsbourg e Charlotte Rampling. Mas, longe do circuito dos festivais, é provável que Lemming seja visto como um Hitchcock de segunda categoria, ou, melhor, um David Lynch de terceira.

Laurent Lucas, que atuou em Harry, é Alain, engenheiro de automação doméstica que cria engenhocas como uma webcam voadora. Com isso, as pessoas podem acompanhar o que acontece em suas casas, pelo computador, enquanto estão longe. Mas os problemas de Alain começam justamente quando ele está em sua casa.

Ele e sua mulher, Benedicte (Gainsbourg), oferecem um jantar para o novo chefe de Alain, Richard Pollock (Andre Dussollier), e a mulher dele, Alice (Rampling). Primeiro a pia da cozinha fica entupida por um roedor preso no encanamento. O roedor é um lemingue, um animal que vive na Escandinávia e não deveria estar presente num encanamento francês.

O casal Pollock chega muito atrasado. Em meio a um silêncio estarrecido, Alice informa que o atraso se deve ao fato de que seu marido demorou mais do que o normal com uma de suas prostitutas. Momentos depois, ela joga seu cálice de vinho no rosto de Richard. A noite é um desastre. No dia seguinte, Alice passa pelo escritório e tenta seduzir Alain. Ela quase consegue. Na manhã seguinte ela vai até a casa de Alain, consegue que Benedicte a convide para entrar, tira uma soneca e então comete suicídio.

É tudo muito chocante. Mas há choques ainda maiores pela frente, quando o espírito da morta parece tomar conta do corpo de Benedicte, e Alain pensa que viu centenas de lemingues na casa, quando, na realidade, o que aconteceu é que ele adormeceu ao volante e se envolveu num acidente. O fato de o público assistir ao filme até o fim, ou, pelo menos, continuar interessado em saber o que vai acontecer, é um tributo a Moll e ao senso de humor do co-roteirista Gilles Marchand.

Infelizmente, o filme é demasiado dependente dos choques e sustos, além do fato de não conseguir tornar o elemento sobrenatural convincente. Os atores fazem um trabalho sólido nos quatro papéis principais. Laurent Lucas carrega a maior parte do filme nas costas, como o personagem que vive um colapso total de personalidade. Homem controlado, que trabalha com tecnologia moderna, seu Alain acaba perdendo a certeza de quem ele mesmo é e de quem é sua mulher.

Moll reproduz, como em Harry, seu interessante tripé estilístico: o filme segue como um thriller de humor negro que abre espaço ao fantástico. Uma insuspeita força da obra é a presença aterradora de Rampling, que tem as falas-chave do roteiro. Há algo de hitchcockiano em Moll, mas sua visão de mundo é de poucas cores.

A Casa do Lago



Nota: 5,5

A Casa do Lago, é uma história sobre amantes que se desencontram no tempo, em uma trama na qual a arquitetura de Chicago é tão ou mais importante quanto o amor entre os personagens principais. Keanu Reeves e Sandra Bullock fazem o par central deste filme, que certamente vai atrair interesse do público feminino, embora a história de amor frustrado seja uma fantasia que não satisfaz, bela de se olhar, mas fundamentalmente confusa.

A idéia central do filme é uma metáfora atraente do destino romântico: duas almas solitárias que vivem numa mesma casa em tempos diferentes começam a se comunicar, através de cartas e uma distância de dois anos. A paixão no filme é contida ou mesmo ausente. O final é tão decepcionante que o espectador que não se confundir com o pingue-pongue entre os dois períodos de tempo vai sair do cinema cheio de dúvidas na cabeça.

O diretor argentino Alejandro Agresti (Valentin) e o roteirista David Auburn (A Prova) adaptaram a história do romance-fantasia sul-coreano Il Mare, de 2000. Abrindo mão da tensão dramática, Auburn faz seus personagens trocarem diálogos demasiado óbvios e, para completar, carrega demais nas referências literárias e cinematográficas.

Mas é verdade que, com a ajuda da trilha sonora contida de Rachel Portman, do design de produção de Nathan Crowley e da precisão elegante e suntuosa da direção fotográfica de Alar Kivilo, A Casa do Lago consegue captar a maneira como determinados lugares ficam imbuídos de sentimentos. A casa titular é uma estrutura belíssima de vidro, construída especialmente para o filme.

A Dra. Kate Forster (Sandra Bullock) parte para Chicago para trabalhar num hospital, deixando sua casa no lago. Ela deixa uma carta para o próximo morador da casa, pedindo que sua correspondência seja remetida a seu novo endereço. A pessoa que recebe o bilhete é Alex Wyler (Keanu Reeves), que se muda para a casa projetada anos atrás por seu pai. Ele fica perplexo com o pedido da doutora.

Mas em pouco tempo os dois começam a trocar cartas diárias através da caixa postal da casa e descobrem que, enquanto ela vive em 2006, Alex está escrevendo em 2004. A solidão e a introspecção são temas cinematográficos férteis, mas em Casa do Lago Reeves e Bullock, que trabalharam juntos em Velocidade Máxima, representam personagens tão introspectivos e tímidos que inspiram apenas indiferença.

Bullock consegue transmitir bem a insatisfação de Kate, sem exagerá-la, embora o roteiro exagere ao repisar o velho refrão de que as mulheres solteiras que se dedicam a sua profissão são as pessoas mais tristes do planeta. Kate joga xadrez com seu cachorro, e seus únicos contatos no mundo real são as relações insatisfatórias com um ex-namorado (Dylan Walsh), sua mãe (Willeke van Ammelrooy) e uma colega de trabalho (Shohreh Aghdashloo).

Keanu Reeves - cujos trabalhos recentes mais interessantes têm sido em filmes independentes pequenos e cujo verdadeiro ponto forte é seu lado cômico - faz de Alex um homem misterioso e difícil de compreender. Ele é um arquiteto que, diferentemente de seu irmão (Ebon Moss-Bachrach), desviou-se do que realmente gosta para projetar prédios de apartamentos.

O diretor Agresti interrompe a ação, por assim dizer, para que Christopher Plummer, no papel do imperioso pai dos dois, possa fazer um discurso sobre a qualidade da luz, com um brilho nos olhos de artista louco. Mas não existe luz no fim desse túnel de tempos atravessados, cujos participantes sentem uma conexão que o espectador não consegue enxergar.

Embora o longa não deixe de ter momentos muitos belos - como, por exemplo, quando uma árvore que Alex planta para Kate em 2004 aparece de repente diante dela, já crescida, ou a preparação para o fantástico encontro no restaurante onde os protagonistas combinam um jantar (um deles, para amanhã; o outro, para dali a dois anos e um dia) - uma parte grande demais dessa história que quer ser de amor é relatada em leituras de cartas que tentam encobrir um vazio que o filme não consegue preencher no presente.

Obrigado por Fumar



Nota: 7

Baseado no livro homônimo de Christopher Buckley e dirigido por Jason Reitman (filho de Ivan Reitman, de Os Caça-Fantasmas), Obrigado por Fumar é uma sátira politicamente incorreta tanto à indústria do tabaco quanto ao lobby antitabagista.

O protagonista Nick Naylor (Aaron Eckhart) trabalha como porta-voz das companhias americanas de cigarro. Convocado a reverter a queda nas vendas e a imagem negativa da indústria, Naylor bola um plano ambicioso: colocar os cigarros de volta nos filmes. Como o personagem lembra, foi o cinema que emprestou glamour ao ato de fumar. "Mas hoje só europeus e psicopatas fumam nos filmes", diz Naylor.

Para concretizar seu plano, porém, ele terá de enfrentar um senador moralista (William H. Macy), que tem o projeto de colocar rótulos de veneno nas embalagens de cigarro; uma repórter oportunista e sedutora (Katie Holmes); e um grupo de terroris mo antitabagista, que o ameaça de morte.

Mais do que a indústria do cigarro e seus inimigos, o verdadeiro tema de Obrigado por Fumar é a chamada "culture of spin" ou cultura da manipulação de informações. Especialista no assunto, Naylor tem a missão de convencer os consumidores a comprar um produto que eles sabem ser prejudicial à saúde. Seu argumento preferido é o da "liberdade pessoal" -mesma desculpa usada pelo governo Bush para muitas de suas ações.

A pergunta fica no ar o tempo todo em Obrigado por Fumar. O personagem principal, o lobista Nick Naylor, acredita que sim. Na democracia do consumo, afinal, ninguém força ninguém a comprar nada. Acontece que os fatos - e os seus próprios atos - desmentem Nick Naylor. O lance é saber se ele está sendo sincero, ingênuo ou terrivelmente irônico.

Fazer lobby - representar os interesses de uma entidade e influenciar outras - é uma profissão legalizada nos Estados Unidos. Não que ela seja bem vista, pelo contrário. O caso de Nick é quase cômico. Ele personifica publicamente a indústria do tabaco, ou seja, tenta convencer pessoas e instituições de que cigarro não é ruim. Por que faz isso? "Pelo mesmo motivo dos condenados em Nuremberg... Para pagar minha hipoteca", zomba, comparando-se aos nazistas julgados no pós-Guerra.

Falando diretamente ao espectador, em narração em off, Nick é como a voz, o alter-ego, do diretor Jason Reitman. O texto é afiado, equilibra drama e comédia sem nunca ficar rasgado ou meloso demais. Eckhart tem o seu charme, e Nick é indiscutivelmente bom no que faz - tão bom que não é difícil ficar do seu lado.

Na trama, o lobista trava mais uma batalha contra os antitabagistas. O senador democrata Ortolan Finistirre (William H. Macy) quer instituir nos maços a imagem de uma caveira, para mostrar às pessoas que o cigarro faz mal à saúde. Na defesa dos interesses de seu patrão, Nick contesta o senador com base na teoria universal do ser liberal. Diz que só fuma quem quer, que todo mundo sabe que cigarro mata (inclusive todo fumante), e que os fumantes não querem a imagem de uma caveira lhes encarando a toda hora. É a liberdade de escolher.

Mas a briga é desleal: no meio tempo Nick exercita sua persuasão. Paga milhões para que o velho Homem de Marlboro, hoje canceroso, pare de reclamar na mídia. Procura um produtor de Hollywood para ver se consegue reemplacar o cigarro na telona, como nos filmes charmosos de antigamente. O produtor, interpretado por Rob Lowe, não apenas concorda como oferece, quem sabe, Brad Pitt e Catherine Zeta-Jones fumando um cigarro depois de transarem no espaço sideral... Não há, realmente, propaganda subliminar mais poderosa.

Aí é que está. Que liberdade de escolha é essa, quando vivemos soterrados num consumismo cada vez mais dissimulado? Há um diálogo primoroso na metade do filme que ilustra um pouco a situação.

Nick repete ao seu filho, Joey (Cameron Bright), nos fins de semana em que a mãe deixa o garoto ficar junto do pai, que o importante é argumentar. Nick diz: "Suponhamos que você defenda o sorvete de chocolate; eu, o de baunilha. Você dirá que o seu é a melhor coisa do mundo. Eu direi que a melhor coisa do mundo é poder escolher entre chocolate e baunilha". "Mas com isso você não me convenceu de que baunilha é melhor", reclama Joey. "Mas eu não quero te convencer, quero só provar que estou certo e você errado", retruca o pai.

É de se condenar essa moral maleável? Há momentos em que Jason Reitman vende a idéia de que liberdade de escolha existe, sim - e o seu lobista chega perto de se heroificar. E há essa evidência gritante de que o livre mercado é a mentira perfeita do capitalista-golpista, vendendo baunilha aos baldes para quem sequer gosta de sorvete. O que fica no ar em Obrigado por Fumar, é que fica difícil saber no que o personagem/diretor acredita de verdade.