30 agosto 2006

Buena Vida Delivery



Nota: 8

Como muitos portenhos na ressaca da crise de 2001, o irmão e os pais de Hernán (Ignacio Toselli) trocam Buenos Aires pela Espanha. Hernán não diz, mas percebe-se que decide ficar na Argentina por questão de orgulho. Ou seria comodismo? O fato é que agora tem uma casa só para ele.

Hernán é motoboy da firma que dá nome a Buena Vida Delivery (2004). Não é o único sem a menor perspectiva de melhorar de vida. Quer dizer, tem um cara esquisito na Buena Vida que quer enriquecer criando lesmas para exportação... Mas esse é mais folclore do que qualquer coisa. As lesmas só vêm ao caso como metáfora - todos ali agem com a lentidão e o automatismo de um limacídeo. A diferença é que Hernán não paga aluguel.

Sempre que pára no posto de gasolina da vizinhança, Hernán puxa papo com a frentista Pato (Mariana Anghileri). Um dia, convida-a para almoçar. Não tem nada a perder, e no seguinte já sugere que eles dividam a casa. São dois quartos mesmo, e o preço que Hernán cobraria da nova inquilina é amigável... Ela aceita. Claro que não passará uma semana até que Hernán e Pato comecem a dividir o mesmo lençol.

Até aqui o roteirista e diretor principiante Leonardo Di Cesare monta a história de jeito gostoso - Hernán e Pato combinam, são como refúgios de afeto em uma cidade desumanizada. Ela tem cara de quem ajudará Hernán a ser mais decidido, talvez. Ele pode dar a Pato o lar do qual ela parece sentir falta. Precisam um do outro, enfim, e se completam, como todo grande casal.

Di Cesare sugere o amor, e é só o tempo de cativar o espectador para que a história vire 180 graus.

Os pais dela aparecem na casa de Hernán sem avisar. Trazem uma menina, que o rapaz logo descobre ser filha de Pato. Venancio (o ótimo Oscar Nuñez, de Nove Rainhas), o "sogro", agradece a hospitalidade, discursa, diz que não se fazem mais portenhos acolhedores como Hernán - e promete ir embora na manhã seguinte. Passam-se dias, semanas. Quando pisca, Hernán viu que sua casa se transformou em uma mini-fábrica de churros, com bolivianos dormindo no chão da sala. Na cozinha a "sogra" distribui os doces aos entregadores. No quintal Venancio exalta seus novos sócios (os tipos que venderão os churros na rua) a acreditar no negócio.

E Pato, como fica? Bom, daí você precisa assistir para saber.

O importante é a reflexão que o filme estimula a respeito da situação de Hernán. Seu sufoco kafkiano desperta indignação ou é uma lição que ele merece aprender? Afinal, como diz Venancio, os churros uma hora vão dar dinheiro... Vale mais seu "direito à propriedade" ou o dever de dividir sua "terra improdutiva" com os hermanos? Os termos em aspas não são por acaso - o filme é uma síntese da discussão entre teoria capitalista e socialista. O comunismo deu errado porque, na hora de repartir entre os seus, o sistema não soube considerar a ambição de muitos, ambição essa que é inerente ao indivíduo. Onde entram em Buena Vida Delivery as ambições de Hernán, se é que ele as tem?

Saber que este é apenas o primeiro filme de Di Cesare só reforça a certeza de que os argentinos no cinema fazem escola. Histórias enxutas e dinâmicas, complexas na sua simplicidade, maleáveis no humor e no drama, formam o que há de melhor na cinematografia latino-americana hoje. Na mão de outro, Buena Vida Delivery se impregnaria de julgamentos, dramaticidades e facilitações. Se, vá lá, um brasileiro dirigisse o mesmo filme, não seria difícil imaginar o final: Hernán casando com Pato, festança paga pelos churros milionários da comuna, desculpas aceitas e votos de felicidade.

Mas a realidade é mais complicada, e mostrar a vida real é especialidade do cinema portenho. Di Cesare pega essa estrutura de parábola, de alegoria (a reação de Pato, até certo ponto previsível, se ajusta perfeitamente porque Di Cesare não nega o formato de parábola) e enche a cabeça do espectador de questionamentos.