26 julho 2006

Consumido Pelo Ódio



Nota: 8,5

A saga de emigrantes tentando construir uma vida nova em outra nação já rendeu ótimos filmes. Consumido pelo Ódio (Chi to Hone, 2004) mexe mais uma vez no assunto. A diferença é que desta vez a trama não se foca em europeus arriscando a sorte nos Estados Unidos, mas em coreanos indo para o Japão.

O filme abre com a já clássica cena de um barco superlotado de gente chegando em um porto. Nele está Kim Sun-pei, que chega ao Japão em 1923. Tudo isso é narrado por Masao, seu filho, que nasceu de um estupro. Com uma introdução dessas já ficamos vacinados contra o caráter de Sun-pei. Ele é um homem extremamente violento, que não aceita opiniões contrárias às suas, toma porres homéricos e mantém suas amantes em uma casa do lado da sua.

Sun-pei trata sua esposa, filhos e companheiros coreanos em Osaka com um enorme desprezo. Ele põe toda a sua família para trabalhar. Ao adquirir uma certa quantia de dinheiro, resolve abrir uma fábrica de tortas de atum. Nesse empreendimento explora os outros coreanos da comunidade pagando salários miseráveis. Ao fechar a fábrica vira agiota. A mudança de profissão só faz Sun-pei ficar cada vez mais violento e agressivo. Seu dinheiro cresce na mesma proporção que aumenta o temor de seus vizinhos. Toda vez que é contrariado desce o sarrafo, não importa em quem seja.

A história de Sun-pei é intercalada com histórias de outros personagens do filme, mas sempre tem algum membro de sua família participando da trama. Cada nova amante representa mais filhos bastardos em sua vida. Não que ele se importe, pois sua única preocupação é com ele mesmo.

Takeshi Kitano está magnífico no papel principal e carrega o filme sozinho nas costas. Talvez essa seja a melhor performance de sua brilhante carreira. Suas atitudes são carregadas de violência explícita, num realismo fora do comum. O diretor Yoichi Sai recusou que qualquer outro ator fizesse o papel e esperou por seis anos até que Kitano aceitasse o desafio. A cada nova cena é fácil entender os motivos da perseverança.

A história foi adaptada do livro semi-autobiográfico de Yang Sok. O diretor escreveu o roteiro junto com Sok, procurando enfatizar como foi a experiência dos coreanos no Japão. Ele mostra como os coreanos foram obrigados a lutar junto com os japoneses durante a 2ª Guerra Mundial e as esperanças dadas pelo governo comunista da Coréia do Norte para quem quisesse voltar ao país. Apesar de ter apresentado esses dois momentos históricos, Yoichi preferiu se concentrar na história da família, deixando de expor o preconceito racial que os coreanos sofreram nas mãos dos japoneses.

Durante 144 minutos de projeção não há como deixar de pensar em O Poderoso Chefão (1972), a obra-prima do diretor Francis Ford Coppola. A saga da família Corleone, quando comparada à de Sun-pei, provoca uma profunda reflexão. Enquanto a comunidade italiana se integrou à sociedade americana, os coreanos foram deixados de lado. Percebe-se um isolamento quase que desumano. As décadas vão passando, mas a comunidade coreana continua a mesma.

Sun-pei só conseguiu exercer sua opressão ditatorial durante tanto tempo porque os japoneses não fizeram nada para que os coreanos se integrassem à sociedade. Eles foram tratados como párias e deixados sozinhos, em uma espécie de gueto. Democracia e os direitos civis nunca chegaram àquelas ruas, em que as casas de madeira do começo do século, eram as mesmas nos anos 80, comprovando que a violência é a primeira conseqüência do preconceito.

Factotum



Nota: 7

Ler um livro de Charles Bukowski (1920-1994) não é para qualquer um. Ele foi um poeta, contista e novelista que sempre permeou sua obra com personagens perdedores e que tinham um apetite voraz por bebida e sexo. Ele mesmo era assim. A única diferença é que Bukowski temperava ainda mais na ficção esse lado destrutivo e sem esperanças. Apesar de não concordar com essa definição, o escritor era considerado um dos maiores idealistas da geração beat. Seu personagem mais famoso foi Henry Chinaski, que em muitos aspectos é uma espécie de alter-ego. Chinaski é o protagonista em cinco livros e outros pequenos contos e poemas.

A trilogia Factotum, Post Office e Women representa três momentos da vida de Chinaski. O primeiro livro é considerado pela crítica o melhor dos três. O diretor norueguês Bent Hamer o escolheu para servir de base para seu novo longa-metragem.

Factotum (2005) nos apresenta Chinaski na primeira fase de sua vida. Após alguns anos na faculdade de jornalismo ele resolve ser um escritor. Passa, então, a enviar semanalmente contos e histórias para a Black Sparrow Press (editores na vida real de Bukowski). Ele nunca recebe uma resposta da editora, ocasionalmente fica desesperançoso, mas como ele mesmo explica, "basta ler outros autores, para se sentir encorajado em continuar tentando".

Chinaski é um anti-herói que muda de emprego e mulher na mesma velocidade que entorna uma garrafa de uísque. Toda vez é despedido porque abandona o serviço para encher a cara no bar da esquina. Ele já foi entregador de gelo, motorista de táxi, funcionário de uma fábrica de pepino, mecânico de uma loja de bicicletas e até limpador de estátuas.

Durante a trama ele se relaciona mais seriamente com duas mulheres. Jan é a mulher dos sonhos de Chinaski, a companheira perfeita. Ela adora um porre, fumar cigarros e sexo. As cenas envolvendo os dois são hilárias. Ao ganhar várias apostas em corridas de cavalos, Chinaski acaba melhorando de vida. Começa a se vestir melhor e a beber um uísque decente. Mas como nem tudo pode ser perfeito, a sua preocupação com o pequeno sucesso o negligencia de sua vida sexual com Jan. Ela acaba brigando com ele e diz preferir que ele volte a ser o mesmo vagabundo de sempre. A sua segunda companheira é Laura, uma espécie de “vamp” em decadência. O relacionamento também não dura muito, pois ambos estão mais interessados em bebida do que qualquer outra coisa.

O elenco está soberbo. Matt Dillon dá um show interpretando Chinaski. Todas as nuances do personagem são apresentadas com extrema competência. Seu olhar, o modo de andar e falar retratam com perfeição o Chinaski dos livros. Suas companheiras de porre e cama no filme, Jan e Laura, são interpretadas por Lili Taylor e Marisa Tomei, respectivamente. Ambas estão brilhantes. Tomei está completamente desfigurada no papel de uma mulher completamente destruída por sua escolha de vida. Taylor consegue estar ainda melhor.

O diretor Bent Hamer soube fazer o dever de casa direitinho. Sabiamente ele não tentou construir uma narrativa tradicional. Seu filme é uma coleção de anedotas e incidentes. O roteiro tem uma estrutura ambivalente que produz um divertido eco nos personagens. Hamer transpôs esse argumento de maneira espirituosa e artística. Sua câmera é econômica e deliberadamente reproduz o mesmo ritmo vagaroso de autodestruição dos personagens. As cores pálidas e amareladas pontuam a obra, criando um certo clima de depressão. A edição é seca e irônica como as falas de Chinaski. Toda essa sintonia cria um tom informal que causa certo apego emocional a esses personagens tão arruinados. Um trabalho não só técnico, mas instintivo.

Para muitos, o modo de vida de Chinaski, com sexo e bebida ao extremo, irá parecer patético e sem propósito. Para um jovem poeta no ápice de sua formação, esse estilo, baseado na experimentação, foi necessário para sua formação e criatividade. Se fosse ao contrário, a obra de Bukowski não teria a importância que alcançou.

O Homem Urso



Nota: 8,5

No documentário O Homem Urso, do alemão Werner Herzog, é difícil não cair na armadilha de julgar o filme pelo seu personagem.

Nas mãos de cineastas menos reflexivos, a história de Treadwell poderia ser transformada na saga de um ecochato com fim trágico ou de um mártir da ecologia. Herzog, no entanto, vê na traje tória de Tim uma reencenação de um dos conflitos centrais de sua obra: o embate entre civilização e natureza.

O cineasta deixa claro que tem um enfoque distinto ao do ambientalista nessa questão. Treadwell via sempre o animal como vítima e o homem como vilão. Herzog prefere mostrar esse confronto como uma luta de iguais.

Ele enxergou em Treadwell um símbolo de resistência ao poder -o mesmo que o alemão representaria na indústria cinematográfica atual. Com O Homem Urso, o cineasta realizou uma obra tão rara quanto o personagem que retrata.

Não foi o amor pelos animais que levou o ambientalista Timothy Treadwell (1957-2003) a conviver durante treze anos com ursos selvagens no Alasca. Foi a sua aversão à sociedade.

É a conclusão a que chega, ao fim de argumentos contundentes, o cineasta alemão Werner Herzog no documentário O Homem Urso (Grizzly Man, 2005). O cineasta de Fitzcarraldo (1982) dispõe de todo o material que Treadwell rodou no Alasca com duas filmadoras digitais durante esse tempo - e compõe com ele um painel sobre a solidão, o desespero e a busca da redenção pela via mais dramática, a da autodestruição.

Nascido Timothy Dexter numa família normal, Treadwell tinha tudo para ser o loiro atlético exemplar quando mudou-se para a Califórnia nos anos 80. Tentou ser ator, não deu certo. Envolveu-se com bebidas, drogas, alimentou cada vez mais uma personalidade anti-social - a ponto de inventar para si uma outra nacionalidade, australiano. No filme, conhecemos uma de suas melhores amigas e ex-namorada, Jewel Palovak. O momento em que Jewel explica como conheceu Treadwell é emblemático. Ambos trabalhavam num restaurante. Irada com uma família barulhenta que comemorava um aniversário, Jewel praticamente ateou fogo na refeição. Aproximou-se de Treadwell na sala da gerência, pois ele, também garçom, estava lá para receber uma advertência por conduta indevida.

Juntos, tempos depois, eles formaram a fundação Grizzly People para proteção dos ursos-pardos alasquianos. A mãe de Treadwell mostra o ursinho de pelúcia do filho, para provar como seu apego aos animais vinha desde a infância. Mas fica evidente que o neo-ativista estava mudando de ares justamente para não se matar na Califórnia. A cada verão, desde 1990, ele pegava carona em uma avião que o deixava numa reserva de proteção ambiental do Alasca. Nessa época do ano, os campos crescem altos, o degelo colabora com a desova dos salmões e os ursos se refestelam. Uma mísera barraca, alguma comida e as citadas duas câmeras eram tudo que distinguiam Treadwell dos animais. O documentário não se chama O homem urso por acaso.

Treadwell ganhou fama mundial por invadir o espaço dos ursos e forçar contato, desprotegido, de uma maneira que mesmo os esquimós evitam há milênios. Com a indefectível indumentária preta, óculos escuros e o cabelo loiro caindo na testa, ele se aproximava de bichos que, de pé, mediam o dobro de seu tamanho. "É preciso mostrar força, não correr nem deixar que o urso o desrespeite", repetia sempre para si mesmo e para a filmadora fixa no tripé. Treadwell acompanhou o nascimento e a maturidade de famílias inteiras de pardos, que ele batizava um a um. De alguns mantinha pouco mais de um metro de distância, às vezes arriscava um cafuné. Com outros travava um embate velado por domínio do território. E milagrosamente não foi morto nesses treze verões.

A história da morte de Treadwell ganha, na narrativa envolvente de Herzog, contornos de épico. Por conta de um mal-entendido no aeroporto - nas suas próprias palavras, Treadwell se indispusera com um "funcionário obeso" - ele resolveu permanecer no Alasca com a namorada, Amie Huguenard, durante o outono. O urso que os atacou dentro da barraca nunca foi identificado. Mas é quase certo que tratava-se de um pardo "estrangeiro", desconhecido de Treadwell, que procurava desesperadamente pelas carcaças de comida da reserva. Difícil dizer se a decisão de permanecer no Alasca foi um "descuido". A todos Treadwell repetia que, se morresse por lá, morreria feliz.

A partir dos próprios registros do ambientalista, Herzog tenta entrar na sua cabeça, para descobrir as razões que conduziram a esse comportamento. Ecologia? Os ursos alasquianos já estavam numa área de proteção ambiental, e um biólogo entrevistado pelo cineasta diz que a população dos animais não corre riscos. As atitudes do Treadwell indicam que ele vivia numa espécie de conto-de-fadas. Repetia incessantemente aos animais que os amava e ficava transtornado em excesso quando ursos machos matavam os próprios filhotes - maneira de interromper a lactação das fêmeas, o que as coloca novamente em disposição para copular.

O mundo que aquele homem criou em sua mente - harmonioso e pacífico - não tinha muito a ver com a natureza de verdade. Contrariado, seja porque uma raposa roubava seu boné ou porque a polícia do Alasca tentava protegê-lo dos ursos, Treadwell vertia diante da câmera todos os tipos de lamentos e indignações. O mais triste e o mais impactante de O homem urso é mostrar como alguém se impõe um regime de primitivismo utópico unicamente para negar sua condição de indivíduo, de ser social. Tim Treadwell queria se transformar em um urso por não suportar a si mesmo, nem a sociedade em que vivia.

A Criança



Nota: 8

Há bandidos existenciais (Acossado), há bandidos políticos, como o da Luz Vermelha, há os tocados por forças superiores (M, o Vampiro de Dusseldorf), os psicopatas (Fúria Sanguinária) ou os que procuram o mal (Pickpocket). Todos marcaram o cinema porque souberam captar sua época. É o que parece estar destinado a acontecer com Bruno, o bandido de A Criança, de Luc e Jean-Pierre Dardenne. O mais provável é que aconteça de forma lenta, como o reconhecimento dos próprios Dardenne, que até hoje talvez seguissem semi-anônimos não fosse a audácia de David Cronenberg e seu júri de premiá-los com a Palma de Ouro de Cannes por Rosetta (1999).
Naquele momento, houve espanto: quem desbancava os favoritos? Hoje, não existe espanto quando topamos com Bruno, um jovem incapaz de ver outra qualidade nas coisas que não a de mercadoria.

Na história, Sonia (Débora François), 18 anos, acaba de ter um filho. Seu namorado, Bruno (Jérémie Renier), 20 anos, é mais um produto típico dessa sociedade desigual denunciada sistematicamente pelos irmãos cineastas: desempregado, sem perspectivas e que acaba se sustentando por pequenos trambiques, furtos e golpes aplicados. Sem condições razoáveis de sustentar a si mesmo, Bruno percebe que para continuar desfrutando do amor e da companhia de Sonia, terá que adotar a postura de pai, fato que implicaria, entre outras coisas, a necessidade urgente e constante de grana no bolso para poder dar sustento ao novo rebento. Eles são imaturos – repare nas idades. A princípio, Bruno se interessa muito mais por Sonia do que pelo filho e toma atitudes aparentemente anormais no decorrer da história.

O filme, como todos os anteriores, se desenvolve no meio da pobreza do Primeiro Mundo - Bélgica - e isso acaba por causar um impacto grande no público que consome esses filmes (elite burguesa intelectual). Estão muito mais acostumados a ver os terceiro-mundistas como os miseráveis, mas não jovens loiros de países europeus. Esses dois diretores da branca e rica Bélgica têm consciência disso e fazem com que isso se reflita em seu trabalho.

O estilo de filmagem e montagem dos irmãos - que usados por outros cineastas passa a impressão de modismo - mostra razão funcional em seu trabalho. A câmera respira, transpira, passa as emoções urgentes dos personagens, sempre muito próxima e utilizada com destreza e perícia - sim pode se filmar bem com câmera "nervosa" na mão. Eles chacoalham com suas câmeras mas não incomodam, pois usam-na com razão de ser – aliás, nesse filme, até que estão comportados; afastaram-se um pouco mais, fisicamente, de seus personagens. Mas, são exímios construtores técnicos de seqüências também.

Existe uma cena, por exemplo, na qual Bruno e um moleque - mais uma das crianças do filme - montados numa moto e prestes a cometer um pequeno roubo, são acompanhados e filmados com tal rigor e precisão, mostrados de tal maneira, com uma câmera tão atenta e generosa nas respirações e reações dos dois, que é possível sentir toda a tensão que eles passam durante a ação. Perto do final, o foco - o eixo - se transfere, de maneira surpreendente, e ratifica o filme como mais uma de obra de arte, fazendo com que ele crie um vínculo, uma cumplicidade emotiva, com O Buraco, de Tsai Min Liang – é um momento que "fala" de arrependimento, mas acena com a possibilidade de um novo porvir.

Na abertura, vemos uma moça, com criança no colo, chegar à sua casa. É Sonia, que acaba de ter um filho. A câmera segue seus passos à maneira dos Dardenne, como que inquieta por saber mais sobre ela. Sonia tenta entrar no apartamento, mas ele está ocupado. Bruno o alugara por alguns dias, saberá a seguir. Bruno é o pai da criança. Ele não perderá a ocasião para vendê-la. A câmera cerca-o como a Sonia, como se quisesse entrar nele. Mas é como se não tivesse resposta. É como se os personagens nem tivessem "interior".

Diante do espanto de Sonia por ter vendido o filho, ele responde, candidamente, que podem perfeitamente fazer outro (para uso próprio desta vez?). Daria para falar de banalidade do mal, se não soasse tão banal a esta altura. A reação dela é enfática o bastante para que Bruno tope desfazer o negócio. É como se, nesse mundo sem luz, o desaparecimento da criança abrisse, para ela, uma brecha. Não para Bruno. É verdade, o mundo lhe dará algumas penas daí por diante. Não será castigado por um Deus ausente, mas por gângsteres mesmo. Deus não está em questão neste filme. A questão é a dificuldade de um homem se manter homem num mundo cheio de adversidades. Com Bruno, os Dardenne chegaram a uma originalíssima saga de fora-da-lei. Bruno é um bandido da mercadoria. A obra tem sólidas bases de linguagem (a câmera colada aos personagens, a ausência de trilha sonora) e conteúdo (a preferência por histórias sobre os excluídos da sociedade de consumo).

Sobre seu personagem, o antipático papel de Bruno, um jovem delinqüente que vê em tudo e todos apenas meios de satisfação de sua ganância, Renier guarda uma impressão ambígua. "Eu acho que Bruno é tanto vitima como irresponsável. Ele é imaturo para ser responsável e, ao mesmo tempo, é vítima de um capitalismo que transforma não apenas as coisas em mercadorias, mas tudo mais, as pessoas, os afetos etc. Ele só entende a palavra valor como sinônimo de dinheiro e isso não é um defeito pessoal do personagem, é algo em que ele é transformado. Por isso, acho que o título A Criança refere-se não só ao bebê, mas em particular à criança que Bruno também é. Isso faz dele, num certo ponto, um inocente", reflete.

25 julho 2006

Transamérica



Nota: 7

No cinema, 2005 foi um ano pródigo em homens de meia-idade que descobrem ter um filho que nunca conheceram. Seja em Flores Partidas, seja em Estrela Solitária, esses machões desiludidos são obrigados a rever, a contragosto, um misterioso passado e ex-namoradas para imaginar, afinal, o que a vida poderia ter sido e não foi, quais os estranhos rumos que são dados a cada pessoa tomar.

O homem, ou melhor, o transexual de Transamérica - filme do ano passado que estréia agora no Brasil, no entanto, mira o futuro. Em vez de olhar para suas relações do passado e sua antiga vida, ele/ela imagina um amanhã mais promissor e vive dessa ilusão.

Bree (Felicity Huffman) está prestes a fazer a operação que a transformará de vez em mulher quando descobre que tem um filho adolescente em apuros. Seu passado não será colocado em xeque. Isso está bem resolvido em sua cabeça, já que Toby (Kevin Zegers), o inesperado filho, é fruto de uma única "transa quase lésbica". Em princípio, o rapaz é apenas um mero empecilho à realização de seu sonho, tanto que só pensará em despachar o garoto o mais rápido possível para seu padrasto.

Transamérica se configura então como um "road movie" tradicional, em que a estrada torna-se o palco das transformações pelas quais os protagonistas terão que passar. Estrada tortuosa, e não mera paródia, diga-se, mesmo que em vários momentos o filme decaia e se preocupe mais em destacar o exotismo kitsch dos personagens - como se a única intenção desta comédia dramática fosse mostrar que o transexual merece o mesmo tratamento das pessoas ditas "normais".

O único homem que vai demonstrar interesse sexual por Bree, por exemplo, é um descendente de índio, e a insinuação de que apenas um outro integrante de uma minoria, desta vez étnica, pudesse ver os encantos da personagem não é mera coincidência. Há uma divisão bem clara, entre os "estranhos" da tela (Bree e o núcleo disfuncional que circula em torno dela) e o status quo.

Na América de Transamérica, a felicidade nunca está ao alcance, ela vem sempre como um sonho inacessível escondido em algum ponto além. Nesse mundo consumista, sorrisos de mentira em fotografias escondem famílias desestruturadas, e, se a vida não deu certo - ou se a vida já começou errada, a única saída possível é mudar tudo e começar de novo. Bree terá que aprender a ser pai e mãe ao mesmo tempo, e por fim se transformar de fato naquilo que sempre fingiu ser.
O que impede que tudo se resuma a uma metáfora um tanto óbvia do transexual como sinônimo de um país como os EUA, que por fora aparenta uma coisa e por dentro é outra, é a própria condição de Felicity Huffman. Ela é intensa em sua discrição a ponto de definir o equilíbrio do filme, já que se trata de uma mulher interpretando um homem aprendendo a ser mulher. Mas Transamérica não é uma viagem em círculos. Mesmo que seja fábula moral do tipo "cuidado com o que você deseja", cutuca fundo na percepção do espectador, já que mexe com a própria idéia das representações sociais que todos exercem. E isso são coisas que não acontecem apenas nos Estados Unidos.

Com um assunto delicado em mãos como o transexualismo, o diretor chega a um admirável equilíbrio entre drama e comédia, entre o peso da história e a leveza narrativa. Tucker consegue evitar tanto o proselitismo quanto a caricatura (de filmes como Priscilla, a Rainha do Deserto). Para tanto, ele conta com a inegável ajuda da interpretação segura e precisa de Huffman. Mas existe um preço para tamanha sensatez: apesar da produção independente e dos temas polêmicos, o resultado de Transamérica fica muito próximo ao de um filme hollywoodiano convencional. Ao decidir não ofender ninguém, o diretor consegue entreter, mas não provocar.

O Samurai do Entardecer



Nota: 8

O Samurai do Entardecer, de Yoji Yamada, chega como que predestinado a uma carreira efêmera, infelizmente: é um filme fora de moda e, sobretudo, fora de hora, cruelmente arremessado no circuito cinematográfico em plena Copa do Mundo. Ou seja, dificilmente sobreviverá no circuito se o público não aparecer no primeiro fim de semana. O nome do filme, tem um significado duplo. É o apelido depreciativo do herói do filme, mas também faz alusão ao crepúsculo da era dos samurais, no Japão do século 19.

Mas esse filme não perde, por estar completamente deslocado na máquina do cinema como comércio. Por suas características intrínsecas, ele também parece um estranho no ninho do cinema que é feito hoje.

Como um típico trabalho de artesão que é, o filme se opõe, por um lado, ao grande produto hollywoodiano e, por outro, ao "puro" cinema de autor, aquele que tende a se afastar dos caminhos narrativos tradicionais. O Samurai do Entardecer não está lá nem cá, sem que isso lhe roube a personalidade.

Yoji Yamada é um veterano do cinema japonês -quando fez O Samurai do Entardecer, em 2002, tinha 71 anos-, dono de uma vasta obra praticamente ignorada fora de seu país. Entre o fim dos anos 60 e o começo dos anos 90, dirigiu comédias românticas altamente populares para os estúdios Shochiku, que ficaram conhecidas como a série Tora San (a mais longa da história do cinema, com quase 50 longas-metragens). Mas seus filmes se restringiram a sucessos locais.

Neste seu 72º longa-metragem, indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 2003, Yamada trata o cinema como um objeto de alta depuração (não confundir com firulas estetizantes). Cada plano de O Samurai tem uma função específica; o tratamento da luz é simples e realista sem buscar os falsos efeitos de realismo que estão tão em voga (câmera na mão, imagem tremida etc.); o personagem principal, que não é um herói típico, cumpre seu arco dramático sem se desviar do caminho.

Esse personagem é Seibei Iguchi (Hiroyuki Sanada, de O Último Samurai), homem comum cuja vida é devastada, pessoal e financeiramente, pela morte da mulher, vítima de tuberculose. Iguchi sustenta a mãe senil e as filhas pequenas (uma delas, a narradora do filme) com o salário miserável que recebe de um trabalho burocrático. Para pagar o enterro de sua esposa, ele é obrigado a vender a espada que é seu bem precioso. Ele ainda se descuida da higiene pessoal e vira motivo de chacota.

Circunstâncias inesperadas, porém, vão despertar o hábil guerreiro adormecido, quando Seibei precisa defender uma antiga paixão de infância do ataque de um bêbado.
A tradição do "filme de samurai" é evocada numa nova chave de leitura, quase neo-realista, longe do épico e da ação. O caráter marginal -e a partir de determinado momento- o caráter heróico do samurai se fazem valer justamente por suas características mais comuns (a necessidade de amar, o esforço brutal para sustentar a família etc.), e não por habilidades extra-humanas.

O mais importante, porém, é que Yamada não impõe esse tratamento com um peso
excessivamente moral ou como um papel exemplar, dignificador. Ele deixa que o tempo do filme, com sua cadência própria, dê vida àquele personagem específico -e é essa vida que transborda no filme.

O olhar contemporâneo de Yamada priva o mundo dos samurais de todo o seu glamour - mas é exatamente essa a intenção do diretor.

Os filmes épicos sobre samurais nunca refletiram a realidade dessa época. E, quando a era dos samurais entrou em declínio, o trabalho deles realmente passou a assemelhar-se mais à vida cansativa de funcionários públicos de cidades pequenas do que a uma vida de aventura e emoção.

Apesar disso, os conceitos de dever, honra e felicidade doméstica são muito reais. Assim, a nostalgia que Yamada mostra em relação aos samurais não é saudade das lutas de espada, mas da busca de Seibei por honrar esses valores, enquanto se esforça para tirar sua família da pobreza. Para Yamada, Seibei é um herói verdadeiro, algo que não tem nada a ver com efeitos especiais ou cenas espetaculares de luta.

O longa lembra muito Os Imperdoáveis. Como o faroeste de Clint Eastwood, o filme de Yamada retrata o crepúsculo de um universo e tem como protagonista um guerreiro relutante - que prefere empunhar uma enxada a uma espada, mais feliz ao lado das filhas e da amada do que entre seus pares.

O filme pode ser visto como um épico intimista e sociológico, pois o cineasta prefere registrar ritos do cotidiano a promover o espetáculo fácil das lutas e dá mais atenção às divisões de classes entre samurais do que aos códigos de honra. Ao contar a história de um guerreiro que escolhe a contemplação em detrimento da ação, Yamada não fez apenas um grande filme, como também um manifesto a favor de um cinema reflexivo.

O Libertino



Nota: 5

Depois de criar uma galeria inesquecível de personagens esdrúxulos e inconformistas, Johnny Depp mergulha no campo do monstruoso no filme O Libertino.

O ator representa o poeta provocador e libertino do século 17 John Wilmot, conde de Rochester, que alcançou a fama literária apenas após sua morte, aos 33 anos, de sífilis e do abuso de álcool.

Uma das poucas coisas notáveis que o diretor Laurence Dunsmore consegue neste seu primeiro filme é fazer com que o protagonista, um homem repulsivo, dotado de apetites sensuais compulsivos, vá ficando mais reconhecível à medida que se torna mais fisicamente grotesco. Um Marques de Sade menor.

O papel representado por Depp possui um poder de sedução espantoso por baixo de sua repulsiva expressão de desdém - trabalho que encontra eco em seus personagens anteriores, como Raoul Duke, Jack Sparrow e Willy Wonka.

Como seu personagem principal, O Libertino faz certas concessões às expectativas dos espectadores. O longa, filmado como se através de camadas de sujeira, adota abordagem totalmente diferente da de outros trabalhos de época, como por exemplo Shakespeare Apaixonado.

O filme começa com um monólogo de Wilmot, que foi um escritor hedonista que escandalizou a corte inglesa no século 17 com seu comportamento libidinoso. Ele se apresenta ao público falando diretamente à câmera. Ao final, vaticina: "Vocês não irão gostar de mim".

Para um filme de época, gênero recheado de histórias açucaradas e heroínas adoráveis, é um início promissor. Mas, ao longo da maior parte da projeção, o personagem se revela mais palatável do que sua apresentação faria supor, um libertino em crise existencial e de bom coração.

Baseado em uma peça teatral, O Libertino caminha com elegância em seus dois primeiros atos. No terceiro, porém, há uma virada brusca no caráter de Wilmot, e a narrativa desanda. É como se o filme se sentisse na obrigação de justificar o monólogo inicial, de se apresentar como um antídoto ao filme de época tradicional.

Favorito na corte do rei Charles 2o. (John Malkovich, que representou o papel-título na estréia da peça nos EUA), Rochester aceita a encomenda de escrever uma obra literária importante para o rei.

No lugar de pôr mãos à obra, porém, ele continua a dedicar seu tempo à bebida e ao sexo. Entre uma escapada e outra, troca farpas pornográficas com os escritores George Etherege (Tom Hollander) e Charles Sackville (Johnny Vegas).

Ele sai um pouco dessa rotina de libertinagem quando vê a atriz principiante Lizzie Barry (Samantha Morton) ser vaiada fora do palco. Ela faz parte da primeira geração de mulheres a atuar no teatro, e Rochester decide convertê-la numa das grandes estrelas dos palcos londrinos.

Conhecido por sua honestidade brutal, ele exige verdade das atuações de Lizzie, e a atriz obstinadamente independente, superando seus receios, cresce e aparece sob sua tutela. Ao mesmo tempo, torna-se a amante de Rochester, despertando nele uma paixão que ele só irá admitir quando for tarde demais.

Embora seja capaz de ouvir com respeito os conselhos de sua prostituta favorita (Kelly Reilly), o conde trata sua mãe devota (Francesca Annis) com desprezo.

As relações são mais complexas com sua esposa, Elizabeth (Rosamund Pike), que tem plena consciência de suas traições. Pike tem uma boa atuação, mas pouco aproveitada, no papel de mulher cuja relação com Rochester começou na adolescência, quando ela foi raptada pelo conde, e que acaba cuidando dele com devoção.

Apesar de estar quase irreconhecível, com nariz falso e peruca gigantesca, Malkovich representa com intensidade contida o soberano que adere às maravilhas do progresso científico e intelectual. Sob uma aparência de reprovação oficial, ele parece divertir-se com a irreverência da produção literária de Rochester.

Apesar de toda a libertinagem, há algo de convencional na profusão literária dos diálogos deste filme de época sombrio, em que Johnny Depp representa um anti-herói que tenta ser dócil.