26 julho 2006

A Criança



Nota: 8

Há bandidos existenciais (Acossado), há bandidos políticos, como o da Luz Vermelha, há os tocados por forças superiores (M, o Vampiro de Dusseldorf), os psicopatas (Fúria Sanguinária) ou os que procuram o mal (Pickpocket). Todos marcaram o cinema porque souberam captar sua época. É o que parece estar destinado a acontecer com Bruno, o bandido de A Criança, de Luc e Jean-Pierre Dardenne. O mais provável é que aconteça de forma lenta, como o reconhecimento dos próprios Dardenne, que até hoje talvez seguissem semi-anônimos não fosse a audácia de David Cronenberg e seu júri de premiá-los com a Palma de Ouro de Cannes por Rosetta (1999).
Naquele momento, houve espanto: quem desbancava os favoritos? Hoje, não existe espanto quando topamos com Bruno, um jovem incapaz de ver outra qualidade nas coisas que não a de mercadoria.

Na história, Sonia (Débora François), 18 anos, acaba de ter um filho. Seu namorado, Bruno (Jérémie Renier), 20 anos, é mais um produto típico dessa sociedade desigual denunciada sistematicamente pelos irmãos cineastas: desempregado, sem perspectivas e que acaba se sustentando por pequenos trambiques, furtos e golpes aplicados. Sem condições razoáveis de sustentar a si mesmo, Bruno percebe que para continuar desfrutando do amor e da companhia de Sonia, terá que adotar a postura de pai, fato que implicaria, entre outras coisas, a necessidade urgente e constante de grana no bolso para poder dar sustento ao novo rebento. Eles são imaturos – repare nas idades. A princípio, Bruno se interessa muito mais por Sonia do que pelo filho e toma atitudes aparentemente anormais no decorrer da história.

O filme, como todos os anteriores, se desenvolve no meio da pobreza do Primeiro Mundo - Bélgica - e isso acaba por causar um impacto grande no público que consome esses filmes (elite burguesa intelectual). Estão muito mais acostumados a ver os terceiro-mundistas como os miseráveis, mas não jovens loiros de países europeus. Esses dois diretores da branca e rica Bélgica têm consciência disso e fazem com que isso se reflita em seu trabalho.

O estilo de filmagem e montagem dos irmãos - que usados por outros cineastas passa a impressão de modismo - mostra razão funcional em seu trabalho. A câmera respira, transpira, passa as emoções urgentes dos personagens, sempre muito próxima e utilizada com destreza e perícia - sim pode se filmar bem com câmera "nervosa" na mão. Eles chacoalham com suas câmeras mas não incomodam, pois usam-na com razão de ser – aliás, nesse filme, até que estão comportados; afastaram-se um pouco mais, fisicamente, de seus personagens. Mas, são exímios construtores técnicos de seqüências também.

Existe uma cena, por exemplo, na qual Bruno e um moleque - mais uma das crianças do filme - montados numa moto e prestes a cometer um pequeno roubo, são acompanhados e filmados com tal rigor e precisão, mostrados de tal maneira, com uma câmera tão atenta e generosa nas respirações e reações dos dois, que é possível sentir toda a tensão que eles passam durante a ação. Perto do final, o foco - o eixo - se transfere, de maneira surpreendente, e ratifica o filme como mais uma de obra de arte, fazendo com que ele crie um vínculo, uma cumplicidade emotiva, com O Buraco, de Tsai Min Liang – é um momento que "fala" de arrependimento, mas acena com a possibilidade de um novo porvir.

Na abertura, vemos uma moça, com criança no colo, chegar à sua casa. É Sonia, que acaba de ter um filho. A câmera segue seus passos à maneira dos Dardenne, como que inquieta por saber mais sobre ela. Sonia tenta entrar no apartamento, mas ele está ocupado. Bruno o alugara por alguns dias, saberá a seguir. Bruno é o pai da criança. Ele não perderá a ocasião para vendê-la. A câmera cerca-o como a Sonia, como se quisesse entrar nele. Mas é como se não tivesse resposta. É como se os personagens nem tivessem "interior".

Diante do espanto de Sonia por ter vendido o filho, ele responde, candidamente, que podem perfeitamente fazer outro (para uso próprio desta vez?). Daria para falar de banalidade do mal, se não soasse tão banal a esta altura. A reação dela é enfática o bastante para que Bruno tope desfazer o negócio. É como se, nesse mundo sem luz, o desaparecimento da criança abrisse, para ela, uma brecha. Não para Bruno. É verdade, o mundo lhe dará algumas penas daí por diante. Não será castigado por um Deus ausente, mas por gângsteres mesmo. Deus não está em questão neste filme. A questão é a dificuldade de um homem se manter homem num mundo cheio de adversidades. Com Bruno, os Dardenne chegaram a uma originalíssima saga de fora-da-lei. Bruno é um bandido da mercadoria. A obra tem sólidas bases de linguagem (a câmera colada aos personagens, a ausência de trilha sonora) e conteúdo (a preferência por histórias sobre os excluídos da sociedade de consumo).

Sobre seu personagem, o antipático papel de Bruno, um jovem delinqüente que vê em tudo e todos apenas meios de satisfação de sua ganância, Renier guarda uma impressão ambígua. "Eu acho que Bruno é tanto vitima como irresponsável. Ele é imaturo para ser responsável e, ao mesmo tempo, é vítima de um capitalismo que transforma não apenas as coisas em mercadorias, mas tudo mais, as pessoas, os afetos etc. Ele só entende a palavra valor como sinônimo de dinheiro e isso não é um defeito pessoal do personagem, é algo em que ele é transformado. Por isso, acho que o título A Criança refere-se não só ao bebê, mas em particular à criança que Bruno também é. Isso faz dele, num certo ponto, um inocente", reflete.