O Homem Urso
Nota: 8,5
No documentário O Homem Urso, do alemão Werner Herzog, é difícil não cair na armadilha de julgar o filme pelo seu personagem.
Nas mãos de cineastas menos reflexivos, a história de Treadwell poderia ser transformada na saga de um ecochato com fim trágico ou de um mártir da ecologia. Herzog, no entanto, vê na traje tória de Tim uma reencenação de um dos conflitos centrais de sua obra: o embate entre civilização e natureza.
O cineasta deixa claro que tem um enfoque distinto ao do ambientalista nessa questão. Treadwell via sempre o animal como vítima e o homem como vilão. Herzog prefere mostrar esse confronto como uma luta de iguais.
Ele enxergou em Treadwell um símbolo de resistência ao poder -o mesmo que o alemão representaria na indústria cinematográfica atual. Com O Homem Urso, o cineasta realizou uma obra tão rara quanto o personagem que retrata.
Não foi o amor pelos animais que levou o ambientalista Timothy Treadwell (1957-2003) a conviver durante treze anos com ursos selvagens no Alasca. Foi a sua aversão à sociedade.
É a conclusão a que chega, ao fim de argumentos contundentes, o cineasta alemão Werner Herzog no documentário O Homem Urso (Grizzly Man, 2005). O cineasta de Fitzcarraldo (1982) dispõe de todo o material que Treadwell rodou no Alasca com duas filmadoras digitais durante esse tempo - e compõe com ele um painel sobre a solidão, o desespero e a busca da redenção pela via mais dramática, a da autodestruição.
Nascido Timothy Dexter numa família normal, Treadwell tinha tudo para ser o loiro atlético exemplar quando mudou-se para a Califórnia nos anos 80. Tentou ser ator, não deu certo. Envolveu-se com bebidas, drogas, alimentou cada vez mais uma personalidade anti-social - a ponto de inventar para si uma outra nacionalidade, australiano. No filme, conhecemos uma de suas melhores amigas e ex-namorada, Jewel Palovak. O momento em que Jewel explica como conheceu Treadwell é emblemático. Ambos trabalhavam num restaurante. Irada com uma família barulhenta que comemorava um aniversário, Jewel praticamente ateou fogo na refeição. Aproximou-se de Treadwell na sala da gerência, pois ele, também garçom, estava lá para receber uma advertência por conduta indevida.
Juntos, tempos depois, eles formaram a fundação Grizzly People para proteção dos ursos-pardos alasquianos. A mãe de Treadwell mostra o ursinho de pelúcia do filho, para provar como seu apego aos animais vinha desde a infância. Mas fica evidente que o neo-ativista estava mudando de ares justamente para não se matar na Califórnia. A cada verão, desde 1990, ele pegava carona em uma avião que o deixava numa reserva de proteção ambiental do Alasca. Nessa época do ano, os campos crescem altos, o degelo colabora com a desova dos salmões e os ursos se refestelam. Uma mísera barraca, alguma comida e as citadas duas câmeras eram tudo que distinguiam Treadwell dos animais. O documentário não se chama O homem urso por acaso.
Treadwell ganhou fama mundial por invadir o espaço dos ursos e forçar contato, desprotegido, de uma maneira que mesmo os esquimós evitam há milênios. Com a indefectível indumentária preta, óculos escuros e o cabelo loiro caindo na testa, ele se aproximava de bichos que, de pé, mediam o dobro de seu tamanho. "É preciso mostrar força, não correr nem deixar que o urso o desrespeite", repetia sempre para si mesmo e para a filmadora fixa no tripé. Treadwell acompanhou o nascimento e a maturidade de famílias inteiras de pardos, que ele batizava um a um. De alguns mantinha pouco mais de um metro de distância, às vezes arriscava um cafuné. Com outros travava um embate velado por domínio do território. E milagrosamente não foi morto nesses treze verões.
A história da morte de Treadwell ganha, na narrativa envolvente de Herzog, contornos de épico. Por conta de um mal-entendido no aeroporto - nas suas próprias palavras, Treadwell se indispusera com um "funcionário obeso" - ele resolveu permanecer no Alasca com a namorada, Amie Huguenard, durante o outono. O urso que os atacou dentro da barraca nunca foi identificado. Mas é quase certo que tratava-se de um pardo "estrangeiro", desconhecido de Treadwell, que procurava desesperadamente pelas carcaças de comida da reserva. Difícil dizer se a decisão de permanecer no Alasca foi um "descuido". A todos Treadwell repetia que, se morresse por lá, morreria feliz.
A partir dos próprios registros do ambientalista, Herzog tenta entrar na sua cabeça, para descobrir as razões que conduziram a esse comportamento. Ecologia? Os ursos alasquianos já estavam numa área de proteção ambiental, e um biólogo entrevistado pelo cineasta diz que a população dos animais não corre riscos. As atitudes do Treadwell indicam que ele vivia numa espécie de conto-de-fadas. Repetia incessantemente aos animais que os amava e ficava transtornado em excesso quando ursos machos matavam os próprios filhotes - maneira de interromper a lactação das fêmeas, o que as coloca novamente em disposição para copular.
O mundo que aquele homem criou em sua mente - harmonioso e pacífico - não tinha muito a ver com a natureza de verdade. Contrariado, seja porque uma raposa roubava seu boné ou porque a polícia do Alasca tentava protegê-lo dos ursos, Treadwell vertia diante da câmera todos os tipos de lamentos e indignações. O mais triste e o mais impactante de O homem urso é mostrar como alguém se impõe um regime de primitivismo utópico unicamente para negar sua condição de indivíduo, de ser social. Tim Treadwell queria se transformar em um urso por não suportar a si mesmo, nem a sociedade em que vivia.
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