21 dezembro 2005

King Kong



Nota: 5


Um filme pode ser apenas um passatempo, mero entretenimento para esquecer os problemas do trabalho, da casa, etc. Mas pode também mudar a vida de uma pessoa. Que o diga o neo-zelandês Peter Jackson, que aos 9 anos se apaixonou pelo King Kong (1933) da mesma forma que o gorila gigante tomba amoroso diante da bela Ann Darrow. Ao assistir ao filme pela primeira vez, aquele menino decidiu que seria diretor de cinema. E conseguiu!

A devoção de Jackson pelo Kong era tão grande que aos 12 anos ele começou a fazer o seu remake, utilizando cenários de cartolina e um casaco de pele da mãe para fazer as vezes do símio. Nunca terminou este projeto, mas seguiu em frente. Em 1996 ele bateu à porta da Universal com um novo roteiro para apresentar a famosa criatura da Ilha da Caveira a um novo público. Devido à proximidade de outros longas com gorila (Poderoso Joe) e monstro gigante (Godzilla) que entravam em cartaz, o estúdio engavetou temporariamente o macaco de 8 metros.

Com o sucesso da trilogia O Senhor dos Anéis, que gerou mais de 3 bilhões de dólares em vendas de ingressos, o sinal verde não era nem questão de tempo. E assim, apenas alguns dias depois da estréia mundial de O Retorno do Rei, Peter Jackson já estava trabalhando na sua versão de King Kong (2005). O roteiro foi escrito junto com suas habituais colaboradoras, Fran Walsh e Philipa Boyens. Ao contrário da produção de 1976, que tentou atualizar a história para o cotidiano da época (chegando até a trocar a cena do Empire State pelo World Trade Center), o remake de Jackson e sua equipe seria baseado nos anos que seguiam a Grande Depressão e teria como cenário inicial a Nova York dos anos 30 e como ponto climático o mais alto e conhecido edifício de Manhattan.

Apesar de ser o motivo principal da existência do filme, o Kong - ou Torê Kong, como o chamam os locais da Ilha da Caveira - não aparece até que já tenham se passado mais de 40 minutos de fita. Este tempo é usado para construir os personagens. Jack Black (de Escola de Rock) faz o cineasta Carl Denham, um sujeito de fala rápida e tão caricato quando os demais personagens feitos pelo ator e isso acaba irritando a certa hora. Denham sai por Manhattan desesperado para encontrar uma atriz magra para o seu próximo filme (em uma divertida homenagem ao clássico ele chega a cogitar Fay Wray, mas se lembra de que ela vai fazer um filme para a RKO) e vê em Ann Darrow (Naomi Watts, de 21 Gramas) toda a beleza necessária para o papel. Watts está realmente linda como nunca. Parece saída dos clássicos do início do cinema com sua pele clara e cabelos loiros e mais uma vez mostra que é uma das mais talentosas de sua geração. Darrow aceita participar do projeto apenas quando fica sabendo que o roteirista é o dramaturgo Jack Driscoll (Adrien Brody, de O Pianista).

Todos a bordo do S.S. Venture, eles partem rumo às ilhas do sul. Durante as filmagens no navio, o cupido acerta os corações da atriz e do roteirista. Mas é com a chegada à Ilha da Caveira que a aventura começa. A partir deste momento, seja na água, em terra firme, ou nas alturas, a adrenalina corre solta. As cenas mais emocionantes são a incrível luta do Kong contra os T-Rex (sim, é mais que um!), o ataque dos insetos gigantes contra a força tarefa criada para resgatar Ann Darrow das garras do gorila e todas as cenas da besta solta por Nova York, incluindo aí uma perseguição de macaco x carro e, claro, a seqüência do Empire State Building.

Nem todos os elementos de computação gráfica são perfeitos. O estouro de uma manada de brontossauros, por exemplo, mostra animais visivelmente construídos por computação gráfica, com tons de pele mais "lavadas" e movimentos menos realistas. Mas tudo isso é deixado de lado quando o enorme macaco entra em cena. Além de todos os pêlos, rugas e cicatrizes construídas digitalmente, este Kong do século 21 tem sentimentos. A forma como ele se diverte com Ann Darrow, a sua fúria contra os que tentam separá-los, a gana com que a defende... nada disso seria possível sem a ajuda do ator Andy Serkis. Assim como havia feito em O senhor dos anéis, quando emprestou seus movimentos e voz ao Gollum, Serkis se vestiu de chips e sensores para não apenas recriar os movimentos do símio, como acrescentar um lado humano que não se via nem no boneco utilizado em 1933, nem no homem fantasiado de 1976. Como bônus pelos seus dois trabalhos com Peter Jackson, Serkis ganhou do chefe uma ponta em "carne e osso", como Lumpy, o cozinheiro do navio S.S. Venture.

O resultado final pode desagradar uma ou outra pessoa. Do ponto de vista de roteiro, deve-se ressaltar que há alguns furos e cenas forçadas até demais. Em muitos momentos o filme cria cenas tão absurdas, que lembramos imediatamente de Missão Impossível e as forçadas de Tom Cruise. O que acontece, por exemplo, com o povo da Ilha da Caveira? Como eles conseguiram transportar o macacão até Nova York? Por que usar duas vezes a "cavalaria" para salvar os personagens principais? Como Driscoll consegue enfrentar a fúria da selva, sozinho, sem armas e ainda por cima encontrar Kong com a heroina no alto da montanha? Como eles conseguiram voltar são e salvos? Mas devemos nos lembrar de que apesar de tudo, King Kong é um filme de aventura com fundo romântico-dramático, e não devemos leva-lo muito a sério mesmo. Nem tudo é tão ruim, e é claro que existem belas cenas, como a "valsa" entre o Kong e Ann Darrown no gelo do Central Park.

Mas o principal alvo das críticas é a longa duração do filme. Porém, como se sabe, a Ilha da Caveira possui medidas diferentes de tempo, tanto é que conserva até hoje seres pré-históricos como dinossauros. Assim, eles acharam que deveríamos sair do cinema com a certeza de que não perdemos três horas e sete minutos de nossas vidas, mas sim de que as aproveitamos muito bem. Balela. O filme poderia ser encurtado em mais de uma hora, que não perderíamos muito.

Mistérios da Carne



Nota: 6

Assim como o revival musical dos anos 80 já começa a dar lugar à exumação dos 90, o cinema também deixa os sintetizadores e as ombreiras para visitar os excessos da década passada. É o Fim da História de Francis Fukuyama. É Nova York arrasada como colônia do HIV. E é a juventude de sempre, cada vez mais perdida.

São os meses de 1991 que servem de presságio do apocalipse para o diretor indie californiano Gregg Araki em Mistérios da Carne (Mysterious Skin, 2004). Não se trata, porém, de um apocalipse à Donnie Darko (2001) - ainda que a ficção científica de Richard Kelly seja imitada aqui a cada fotograma, especialmente em relação à estranheza do mundo - mas uma ruína menos metafísica e enrolada, mais ligada a culturas e comportamentos.

Dezoito anos recém-completos, Brian Lackey (Brady Corbet) decide que está na hora de interromper os pesadelos bizarros que o assolam. Há dez anos, ele passou por um trauma que apagou cinco horas de sua memória. O jovem suspeita que tenha sido abdução alienígena. A única saída é procurar quem presenciou o ocorrido ou se lembre do fato. E isso começa com a busca por um ex-amigo de primário.

Por sua vez, Neil McCormick (Joseph Gordon-Levitt, da sitcom 3rd Rock From the Sun) evita falar de problemas do passado. O que lhe interessa é o presente - no caso, sair logo da interiorana Hutchinson, Kansas, onde Neil já cansou de ganhar felações e sodomizar os adultos enrustidos locais. Sua próxima parada é Nova York, bacanal onde seu tipo magro e bonitinho, quase andrógino, deve ser bem recebido.

Brian e Neil são tipos opostos. Ou melhor: caricaturas opostas. Brian incorpora o nerd mentalmente frágil e fisicamente débil. Nunca beijou uma garota, nunca transou, não bebe, não sai. Vive à sombra dessa paranóia da abdução - suspeita típica de nerd, claro. Já Neil não acredita em nada e experimenta de tudo, atitude clássica do jovem moderno-niilista que não tem a perder. Seu coração, porém, sofre por desilusões profundas, ainda que ele não demonstre. Neil é a espécie de bad boy que alopra moleques como Brian - mas a vida dos dois é mais ligada do que parece.

O diretor Araki era crítico musical da revista L.A. Weekly antes de se arriscar no cinema. Isso diz bastante tanto do seu talento para reconstituir a atmosfera noventista, trilha sonora inclusa, quanto da sua dificuldade em tornar críveis os dois protagonistas. Sem a direção devida, as atuações de Corbet e Gordon-Levitt rodam em falso.

Na balança, os defeitos do filme pesam, mas seu registro desesperançoso do legado recebido pela juventude da década se faz perceber. Araki é estilisticamente pouco criativo, sua tendência à vitimização dos personagens acaba diminuindo-os. Mais que isso, as revelações do desfecho já caducam na metade do filme. De qualquer forma, Mistérios da Carne pode servir bem de metáfora sexual aos sintomas oitentistas de males que só são diagnosticados nos anos 90.

Brothers



Nota: 7


O Dogma 95 deixou muita gente mal acostumada. Quando Festa de Família chegou ao Brasil, na metade de 1999, atribuiu-se o tom franco, forte e direto da história à secura formal do manifesto (trilha sonora proibida, câmera na mão, luz só ambiente, etc). Hoje, novos nomes do cinema dinamarquês, como Susanne Bier, provam que não é preciso ser um fundamentalista para contar uma história sem firulas.

Corações Livres (2002), o primeiro filme da diretora a chegar por aqui, era franco, forte e direto - e não tinha medo de recorrer ao cinema de gênero, à música incidental, aos efeitos visuais, enfim, esses elementos normalmente associadas a manipulação e que eram proibidos nas diretrizes do Dogma. Susanne reitera seu gosto pelo melodrama sem meias palavras em Brothers (Brødre, 2004).

Ulrich Thomsen (de Festa) e Nikolaj Lie Kaas (de Corações) interpretam os irmãos do título, Michael e Jannik. O primeiro é o mais velho, major do exército dinamarquês, pai carinhoso de duas filhas. O outro, problemático como todo bom caçula, acaba de sair da prisão. Michael foi buscar Jannik no término da pena. Age como todo irmão mais velho, protetor, um tanto propenso a aplicar lições. Jannik escuta quieto, mas não sempre.

A reunião acontece nos dias em que Michael se prepara para embarcar ao Afeganistão. Integrante das forças ocidentais de coalização, ele promete à sua bela esposa, Sarah (Connie Nielsen, dinamarquesa que fez nome em produções hollywoodianas como Retratos de uma Obsessão), voltar são e salvo. Não é difícil prever o que virá. Quando oficiais batem à porta de Sarah com a má notícia, Jannik desponta como ombro amigo.

"Que historinha mais manjada!", você pode legitimamente reclamar. "Só falta o cara voltar vivo da guerra e encontrar a mulher na cama com o irmão!", pode legitimamente especular. De fato, Brothers não é um primor de originalidade. Mas aí vem aquela coisa do tom franco, forte e direto. Susanne Bier mergulha na tristeza - quase um melodrama de telefilme - com tanta convicção e sem apelações que não é difícil comprar a idéia dela.

O segredo está no uso do som e na montagem. O violino entra para pontuar o drama, mas entra sempre na nota mais alta, mais aguda, e breve. Não chega a ser uma melodia, é mais como um grito interrompido. É com esse tipo de inserção lacônica, cirúrgica como uma agulhada, que Susanne trabalha. Os planos são curtos, mas não chegam a ser frenéticos. Capta-se um sentimento e é só, sem exagero nem reiteração. O efeito dramático desse tipo de cinema austero é grande. É como se a diretora fixasse a câmera diante dos rostos dos personagens, mas a retirasse antes que pudéssemos vê-los chorando.

Fórmulas à parte, Brothers é um filme bem decente até mais ou menos a metade da projeção, escorado nessa segurança técnica e nas boas atuações dos dois atores protagonistas. O conflito dos irmãos mais tarde se inflama, se inverte, com Michael colocado na posição traumatizante que antes era ocupada por Jannik, agora modelo de prosperidade. E é interessante observar como o confronto escancara as fraquezas do mais velho. O mais novo se segura, se mostra forte, introspecto, enquanto que o mais velho desaba, muda radicalmente, começa a maltratar as filhas e a mulher e ainda é preso no final.

O problema - e que não é um defeitinho, mas um rombo, um problemão - é que da metade ao fim o filme se perde. O que era uma história vira duas, o tom direto e seco se dilui em dilemas paralelos. Enquanto a parte intimista do filme trata de relacionamentos, a outra busca um humanismo meio grosseiro... Não convém explicar aqui, para preservar as surpresas. Interprete esta resenha crítica como o elogio dos primeiros sessenta, setenta minutos de Brothers. E mantenha em mente que Susanne Bier pode fazer melhor.

14 dezembro 2005

Tapas



Nota: 6,5

Cinco personagens com histórias diferentes que cruzam entre si. Ok, o filme já passou uma centena de vezes. A estrutura simples do roteiro de Tapas, no entanto, ganha criatividade nos temas e subtemas trazidos pelos personagens.

Impor verossimilhança a uma velhinha que trafica drogas ou a um barrigão de chope que só goza com a escalação do time do La Coruña não é lá coisa muito fácil. Fazendo rir e sem tirar a dignidade, então... mas os diretores espanhóis Jose Corbacho e Juan Cruz conseguem. Ponto para a comédia de costumes, tão sacrificada em tempos de megs, julias, bridgets e suas narrativas previsíveis.

Os cinco personagens moram no mesmo bairro: Mariano e Conchi, um casal de aposentados, ele tentando morrer e ela impedindo. Raquel, na faixa dos 40 anos, se divide entre um relacionamento via internet e um real com um rapaz de 22. César, o rapaz de 22, e seu amigo Opo trabalham no estoque de um supermercado e só querem se divertir. Lolo, dono sovina de um bar, que começa a mudar depois de conviver com Mao, cozinheiro chinês.

Os detalhes que todos temos em comum, esquisitices e anseios, estão aqui dispostas de maneira bastante delicada. Mergulhadas em carmim, como bem gostaria Almodóvar. Às cinco esferas são dispostos o mesmo tempo e a mesma distância. Os planos do balcão do bar, da estante de mantimentos, do computador, em ângulos que não são os mais privilegiados - não é para ser fácil a penetração na vida alheia.

E, apesar de abusar closes-clichês - mãos dadas, isqueiro-cigarro-boca, o foco no vidrinho de morfina (calma, calma, não precisa explicar tanto, a gente entende...)

Em Tapas, várias histórias se cruzam pelas ruas de bairro de La Coruña. Micro-narrativas que refletem sobre relacionamentos e, mais especificamente, sobre a necessidade de se romperem relações afetivas para que, libertos, os personagens possam seguir adiante em suas vidas. José Corbacho e Juan Cruz adotam no filme a estrutura do filme-painel, a mesma de Nashville, de Magnólia e do recente Crash – No Limite, em que não há protagonista, e sim diversos personagens, cada qual com sua história independente (que pode interagir, ou não, com as dos demais).

Tratam-se de narrativas microscópicas que se mantêm unidas pelo espaço geográfico onde ocorrem, e que não nascem da livre-vontade dos seres que respiram na tela, mas antes são impostas a eles com o propósito de apresentar tese, desenvolvida pelo filme, sobre temas abstratos. Assim, há quatro tramas diferentes em Tapas, a fim de demonstrar como a dor da perda faz parte, intrinsecamente, de qualquer relacionamento: o envolvimento de Raquel, solitária dona de mercearia deixada pelo marido, com o jovem César, que rompem com a entrada em cena de Edgardo, parceiro que ela conhecia apenas via internet; a amizade que Lolo, proprietário do botequim, trava com seu cozinheiro chinês, depois que sua esposa o abandona; as indas e vindas dos amigos Opo e César que, trabalhando no supermercado, interessam-se apenas por sexo e por Bruce Lee; e a doença terminal de Mariano, que pede à esposa, Conchi (a qual trafica remédios, para os adolescentes do bairro, a fim de o sustentar), para matá-lo e acabar com seu sofrimento.

Apesar do bairro em comum, o fio condutor das narrativas, por incrível que pareça, é o cachorro que Conchi liberta no início do filme (tanto que o atropelamento do cãozinho precipita a série de rompimentos e de reencontros que garantem o sentido final de Tapas). Da mesma forma com que os personagens, a liberdade do cachorro se mostra relativa, pois, se idealmente surge como benéfica, na prática traz os problemas de se encontrar solitário no mundo, de lidar com a perda inevitável da pessoa querida, de se reconectar e se readaptar a novo círculo de relações, tarefa a princípio dificultada pelos hábitos adquiridos com o tempo, pelo carinho quanto ao ser amado que ficou para trás e pelo conjunto social hostil que não está disposto a receber ninguém de braços abertos.

Embora os cineastas tentem pautar o filme a partir de momentos de intimidade cotidiana, eles fracassam na empreitada, na medida em que Tapas está mergulhado em uma estrutura visual que possui sua origem na imagética televisiva. Como nas novelas, os personagens ocupam, via de regra, o centro do quadro, que jamais é vazado por elementos que se situam fora da tela. Corbacho e Cruz, também de acordo com a estética da TV, intercalam planos de conjunto (a fim de introduzir os espaços onde transcorre a ação: o bar de Lolo, a mercearia de Raquel, o apartamento de Conchi e o supermercado de Opo e César) com planos próximos, em geral de closes-up em campo/contracampo, da mesma maneira que diálogos puramente descritivos substituem a representação, em imagens, dos acontecimentos. O resultado, ao contrário da pretendida naturalidade das situações (e, por conseguinte, da busca em tornar o espectador cúmplice do filme), é o artificialismo que não permite a identificação necessária do público com os personagens.

Portanto, a despeito das boas intenções de José Corbacho e de Juan Cruz (e de boas intenções o inferno está cheio, conforme o ditado popular), Tapas não passa de novela com mania de grandeza, devido à forma de painel que assume no trato dos relacionamentos entre os diversos personagens. Prova de que, pelo menos neste filme, dois diretores não pensam melhor do que apenas um.

Reis e Rainha



Nota: 8,5

Um dos estereótipos ligados ao cinema francês é do filme setentista faladíssimo, enfadonho, que discute a relação, homem e mulher na cama, de preferência com as partes despudoradas, fumando um cigarro enquanto tratam de existencialismos conjugais. Há um fundo de verdade nesse clichê. Afinal, discutir existencialismos é um esporte nacional. Reis e Rainha (Rois et Reine, 2004) é uma espécie de modernização desse gênero.

O casal da história é formado pela editora de arte Nora (Emmanuelle Devos) e pelo violinista Ismaël (Mathieu Amalric), mas o começo do filme dirigido por Arnaud Desplechin não mostra os dois juntos. As suas vidas são contadas paralelamente. Nora está a caminho do seu terceiro casamento. Aprendeu com o tempo que manter uma relação de verdade é não ter que pedir nada ao outro. Seu noivo, milionário, entende e atende todas as suas vontades. Se o horizonte para ela clareia, Ismaël vive no breu. Dois médicos batem à porta de seu apartamento. Vieram buscá-lo. A corda laceada, pendurada no meio da sala, é uma evidência. Alguém solicitou que Ismaël fosse internado às pressas para tratamento psiquiátrico.

É assim, de um jeito um tanto conturbado, que Reis e rainhas principia. São duas horas e meia de duração, e Desplechin não tem pressa de explicar o que se passa na vida dos dois. À primeira vista, os personagens parecem opostos, ela a caminho de uma redenção de que certamente necessita, ele colhendo as pragas que semeou (e que a médica do hospício, vivida com gosto por Catherine Deneuve, faz questão de jogar na cara de Ismaël). A certa altura, porém, tudo se inverte. Ficamos sabendo que Nora e Ismaël foram um dia casados, e a descoberta ocorre quando ela, aflita, pede que ele, revigorado, adote o filho dela.

Pode parecer confuso, mas é basicamente esse fiapo de trama que é importante conhecer de antemão - para que os pequenos detalhes sejam revelados a seu momento, na sala de cinema, e também para dar uma idéia, especialmente, da montanha-russa de vitórias e fracassos sentimentais que o cineasta propõe. A citada modernização do "filme francês de discutir relação", se é que pode-se chamá-lo assim, acontece em meio a esse sobe-e-desce da história.

Misturar gêneros é uma das ferramentas de Desplechin. Não se assuste se aquelas aspas que acompanham a campanha de marketing parecerem desencontradas. "Um épico extraordinário", diz o San Francisco Weekly. "Uma intensa tragicomédia", elogia o Village Voice. Decidam-se, afinal, é épico ou tragicomédia? Na hora do filme, é fácil entender porque cada um define a seu modo: Reis e rainha - título que alude aos homens da vida de Nora - transita com facilidade entre tons demais variados. Vai do humor físico imediatamente à catástrofe mais dramática (com direito a trilha sonora exageradíssima) sem que isso pareça aberrante, coisa que na mão de um diretor menos talentoso seria um pastiche completo.

Pastiche, no caso de Desplechin, não é o termo correto. Colagens seria mais adequado. Estudiosos costumam chamar esse tipo de cineasta de contrabandista - um autor que surrupia referências, como um Tarantino, e junta todas elas em um conjunto que soa homogêneo e, pricipalmente, original. No caso do francês, o caldeirão une, segundo suas palavras, desde as mulheres hitchcokianas, com destino traçado, como Rebecca e Marnie, até o Big Lebowski dos irmãos Coen, um dos modelos para a criação de Ismaël.

A mistura não fica indigesta porque Desplechin e o co-roteirista Roger Bohbot escrevem diálogos excelentes e criam tipos com vivacidade e substância. Adicione aí o dom evidente do diretor de fotografia Eric Gautier. A câmera que ele opera realiza um exercício de campo-contracampo (vemos o personagem e em seguida vemos o que ele vê) formidável. É como se ocupássemos o lugar de Nora e de Ismaël a todo momento, olhando cada objeto, cada cruzada de perna, cada ruído na rua que chama a atenção dos dois protagonistas. Essa incorporação, quase uma encarnação, é um dos fatores que contribuem para a íntima identificação que o público cria com o filme.

13 dezembro 2005

Bens Confiscados



Nota: 8,5

Um dos filmes preferidos do cineasta Carlos Reichenbach, a ponto de tê-lo homenageado em Dois Córregos (1999), é Dois Destinos (1962), de Valerio Zurlini (1926-1982). Trata-se do filme mais famoso do italiano, melodrama em que os reveses políticos e a cisão da Bota no Pós-Guerra se refletem nas vidas opostas de dois irmãos. Zurlini acreditava que o miolo afetivo de uma história só se engrandecia de verdade quando situado num momento sociopolítico bem definido. É o que Reichenbach almeja com Bens Confiscados(2004).

A trama abre com um plano muito bem pensado. Uma mulher sobe na sacada de seu apartamento e se atira à rua. A tomada, sem cortes, entra então no apartamento, a câmera passa sobre a manchete de um jornal e desvenda o motivo do suicídio: a mulher, a estilista Isabela Siqueira, era amante do senador Américo Baldani, cuja mulher foi à TV denunciar as infidelidades e as trucagens do marido. Luís Roberto (Renan Augusto, de Meu Tio Matou um Cara), o filho da suicida, entra no apartamento neste instante. Descobre a tragédia. Mas não fica muito tempo - logo os assessores do político rumam para lá. Precisam dar um sumiço no rapaz. A imprensa não vai demorar a descobrir que ele é filho bastardo de Baldani.

O senador fazia o tipo galanteador, que dá atenção às mulheres. Não espanta o fato de ter ex-amores espalhadas pelo país. O assessor Paulo Hermes (Antônio Grassi) vai atrás de uma delas: a enfermeira Serena (Betty Faria), que um dia medicou Baldani quando ele estava combalido. Paulo Hermes quer que Serena ajude a cuidar de Luís Roberto até que a situação esfrie. Isso significa que a enfermeira e o rapaz terão que se refugiar no Sul mais ermo do Brasil, na casa de um jagunço gaúcho (Werner Schünemann) nada amistoso. Significa também que ficarão lá por bastante tempo - pelo menos até que a cassação de Baldani seja votada, que suas posses sejam tomadas pela justiça e que a mídia o deixe em paz, prazo dilatadíssimo.

Bens Confiscados é, portanto, um filme de aguardo. À espera do desfecho da crise política, Serena e Luís Roberto se conhecem melhor. Ele, sem saber que ela era amante de seu pai. Ela, tentando mostrar que o pai não é tão ruim quanto o órfão raivoso pensa. Como em Zurlini, o pano-de-fundo está o tempo todo em cena, apenas invisível. O que se desenrola aos nossos olhos é o aguardo.

Uma premissa assim, maleável, dá espaço para dois tipos de abordagem. Uma é um tanto esquemática, mais segura, acadêmica talvez, focada exclusivamente no amadurecimento, na aproximação dos dois personagens. Uma segunda pegada - a que Reichenbach escolhe -é mais frouxa, mais versátil, e por isso mais perigosa. A narrativa é tomada de um tom naturalista, antilinear, abre-se para situações impensadas, coadjuvantes que pipocam e somem sem justificativa. Uma história, na verdade, totalmente sem rumo. E Bens Confiscados é um filme sem rumo, no sentido em que escolher um único caminho seria negligenciar os demais.

Essa aparente falta de objetividade pode desagradar ao público, ainda mais se associada às participações breves de um elenco díspar - André Abujamra, Eduardo Dussek, Beth Goulart, o jornalista Bira Valdez, falecido em junho deste ano, e a VJ Marina Person, estreando como atriz com direito a beijo lésbico e tudo. Há quem diga que as pontas são dispensáveis, que desviam a atenção do cerne do filme. Ok, faz sentido. Mas quem disse que o filme se pretende coerente? O discurso evasivo, fragmentado, pode ser uma opção estilística - e aqui certamente é.

Mesmo picotada em painel, a mensagem se faz perceber. Liberdade versus cárcere, paixão devotada versus desamor. Não é à toa que o diretor filma Betty Faria - atuação destacada, aliás - pelo lado de fora do quarto de hotel, à distância: o enquadramento fordiano quer passar a idéia de clausura, de falta de perspectiva. E estar apaixonado, no caso, como o sentimento ingrato que a enfermeira nutre pelo político, não deixa de ser uma prisão. E a prisão real, que aguarda uma importante coadjuvante do filme do mesmo jeito que a cassação aguarda Baldani, simboliza a alforria.

Soldado de Deus



Nota: 8,5

Um documentário que faz um retrato do que foi o Integralismo e sua importância na vida política brasileira. O filme de Sergio Sanz traz importantes depoimentos de pessoas como Anita Prestes, Gerardo Melo Mourão, Antonio Carlos Vilaça, Leandro Konder, Muniz Sodré, entre outros grandes pensadores e pesquisadores.

Um olhar sobre nossos ombros. Umas vezes de soslaio, outras bem no olho da História. Um encontro com o Integralismo através do testemunho - palavras e gestos - de quem estabeleceu, viveu, ama, amou e deixou de amar seus princípios e práticas; de quem sempre o condenou, julgou, criticou; e de quem estuda os tempos em que o nacionalismo de direita mobilizou em torno de um milhão e filiou 500 mil pessoas em um país de cerca de 40 milhões e construiu o primeiro partido de massas do Brasil.

Gente como Miguel Reale (Doutor em Direito e ex-secretário de Justiça do estado de São Paulo), Nilza Perez de Rezende (advogada trabalhista e mulher mais importante na hierarquia do Integralismo), Gumercindo Rocha Dórea (editor dos livros de Plínio Salgado), Gerardo Melo Mourão (poeta), Arcy Lopes Estrella (criador do Centro Cultural Plínio Salgado), Padre Salgado Crispim (afilhado de Plínio salgado), Antonio Carlos Vilaça (escritor), Leandro Konder (filósofo), Luis Fernandes (cientista político), Muniz Sodré (Doutor em Comunicação e professor da UFRJ), Anita Prestes (historiadora e filha do líder comunista Luís Carlos Prestes), Alceste Pinheiro (jornalista e professor da UFF-RJ)

Orçado em R$ 245 mil, o documentário Soldado de Deus traz memórias emocionais e racionais que possibilitam a reflexão sobre a influência e a presença do Integralismo na história recente e no presente dos brasileiros.

O Integralismo reuniu alguns dos mais importantes intelectuais brasileiros da época, na condição de lideranças, militantes ou simpatizantes. Apesar disso, o cinema brasileiro e a própria mídia, o tem tratado marginalmente, de passagem, sem se debruçar verdadeiramente sobre seu significado, sua história e o entranhamento de seus valores na sociedade atual. O que sobra para nós hoje, via mídia, é a relação entre o Integralismo e o Facismo. Isso é tudo que temos conhecimento, e bem esparsos. Mas um movimento grande como esse, com suas razões, seus discursos, seus adeptos, merece um outro olhar, uma olhar mais crítico, mais aguçado, que nos possibilite ver as múltiplas facetas e possibilidades. O filme não é uma apologia ao Integralismo, nem um acusador ferroz da seita, e consegue se manter no fio tênue da imparcialidade.

O cinema, a televisão, a imprensa e os intelectuais não tocam no tema Integralismo e Plínio Salgado, já é o momento de trazermos a publico essa página da nossa história e os homens que a escreveram que acreditamos ser de grande importância para a compreensão de nossa realidade. Não tem como compreendermos o Brasil sem entender o que foi de fato o Integralismo na década de 30, Getúlio Vargas e a ditadura militar. Todos se completam, e todos são analisados no filme. Interessante e bem didático.

Alguns desses homens permaneceram fiéis aos seus princípios até o fim da vida e alguns outros mantêm, nos dias de hoje, vivas as idéias essenciais do movimento, independentemente de explicitarem ou não seus símbolos, e contribuem para fazê-las chegar aos jovens, como o jurista Miguel Reale, o escritor Gerardo Mello Mourão, o editor Gumercindo Rocha Dórea.

Mas houve aqueles que, como D. Hélder Câmara e Santiago Dantas, tomaram outros rumos, embora mantivessem princípios que os haviam aproximado da Associação Integralista Brasileira. É assim que, no pensamento de D. Hélder, nos anos 70, estão contidos objetivos e propostas de seus escritos dos anos 30 e que a política externa propugnada por Dantas, nos anos 60 repousa em convicções nacionalistas.

Mesmo tendo posto na ilegalidade a AIB e perseguido e levado à prisão ou ao exílio seus principais membros e devotados militantes, o Estado Novo incorporou muitos dos princípios e métodos centrais da Doutrina Integralista. Busca institucionalizar o corporativismo, investe contra o poder dos governadores e das oligarquias regionais, molda a educação cívica nos modelos da AIB, entre outros aspectos.

O filme tem como objetivo, além de apenas reconstituir cinematograficamente a história do Integralismo, localizar a essência do pensamento que aproximou artistas e intelectuais do movimento e identificar os valores da civilização brasileira intrínsecos à doutrina integralista e as propostas da AIB que se consolidaram em nossa sociedade.

O diretor disse que o que interessa ao filme é o permanente, o duradouro nas idéias do Integralismo, é identificar sua originalidade, sua essencialidade. Que sua atitude é a de oferecer, limpa, leqal e objetivamente, as idéias e argumentos de seus criadores, simpatizantes e continuadores. Não cabe a eles fazer um filme integralista nem muito menos um filme antiintegralista. Pois eles não acreditam que qualquer dessas atitudes seja benéfica. Eles se proporam permitir ao espectador julgar fatos e idéias e tomar suas próprias decisões.

12 dezembro 2005

As Crônicas de Nárnia



Nota: 5

Embaladas pelo sucesso das cinesséries O Senhor dos Anéis e Harry Potter, a Walden Media e o Walt Disney Studios tiraram a poeira do clássico As Crônicas de Nárnia para transformá-lo em filme. Começaram pelo segundo livro - O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa - e investiram 150 milhões de dólares na superprodução. Parece um tiro certo, já que o gênero tem grande apelo, busca um público que até aqui não foi explorado e existem mais seis livros prontos para as continuações.

De fato, para quem leu As Crônicas de Nárnia: O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa, de C. S. Lewis, quando criança, o resultado de tal esforço, a adaptação cinematográfica do romance deve ser uma experiência maravilhosa.

Para tanto, o diretor Andrew Adamson (Shrek 2), que foi uma dessas crianças que cresceu mergulhada na fantasia de Lewis, não fez concessões: tratou o material original com reverência. Praticamente não há adaptações da história no longa-metragem. Diferente de O Senhor dos Anéis, de J.R.R. Tolkien - amigo de Lewis -, no qual personagens foram cortados enquanto outros tiveram seu tempo de história ampliado, em Nárnia cada frame tem seu parágrafo equivalente em papel.

Outro ponto que deve agradar os entusiastas da série é o modo como as alegorias cristãs do livro (sacrifício, o perigo dos pecados, a força maior capaz de mudar o rumo das coisas, o ideal do arrependimento...) casam-se perfeitamente com o jeitão Disney de fazer cinema. De olho na larga parcela da população que considera Harry Potter uma má-influência para os jovens, a Casa do Mickey tratou de abraçar o teor épico-religioso de Nárnia. Para as canções de um CD especial do filme, por exemplo, foram chamados grandes nomes do gospel.

O primeiro filme de Nárnia conta as aventuras dos irmãos Lúcia (Georgie Henley), Edmundo (Skandar Keynes), Susana (Anna Popplewell) e Pedro (William Moseley), que são enviados pela mãe à segurança do interior da Inglaterra quando os bombardeios nazistas ameaçam Londres na Segunda Guerra Mundial. Ao chegarem em seu destino, os quatro descobrem, durante uma brincadeira de esconde-esconde, um portal mágico. Escondida dentro de um guarda-roupa, atrás dos casacos de pele, a passagem os leva direto ao mundo mágico de Nárnia. Mas o local esconde uma profecia: a de que duas "Filhas de Eva" e dois "Filhos de Adão" virão para enfrentar, ao lado do majestoso Leão Aslam (voz de Liam Neeson na versão original, Paulo Goulart na nacional) a Feiticeira Branca (Tilda Swinton) e retomar a beleza e a liberdade de Nárnia.

Para os fãs, como já foi mencionado acima, essa perfeição na adaptação é algo a ser celebrado, sem dúvida. Agora, para quem acha As crônicas de Nárnia literatura das mais carolas, o filme é um verdadeiro fardo, um Senhor dos Anéis para crianças (durante a projeção lembro de ter pensado que ele seria perfeito para a família de Ned Flanders, de Os Simpsons).

Mas não é a pregação o que menos incomoda. Contra o filme pesa o fato de que Adamson, egresso das excepcionais animações computadorizadas Shrek e Shrek 2, descuida das interpretações. O quarteto de protagonistas é vergonhosamente ruim. Nas cenas de batalha então, nem se fala. É mais fácil acreditar em minotauros, ogros e ciclopes que nos garotos atuando e combatendo. Pesa a mão do diretor, que dá vida aos seres digitais com habilidade (principalmente o "Leão Neeson" e o casal de castores), mas deixa a carne e osso afundar a produção. Até Tilda Swinton - geralmente uma excelente atriz - parece uma contratação equivocada. Sua Feiticeira Branca não tem majestade, força ou fôlego.

Salva-se, porém, a batalha final (exceto quando aparecem as crianças). A miríade de raças em combate é de encher os olhos. Rinocerontes, centauros, grifos, orcs, hienas, leopardos, faunos, gigantes, vampiros e até um casal de castores, entre centenas de outras espécies, enfrentam-se selvagemente. Tudo sem uma gota de sangue sequer, claro. Afinal, é um filme para crianças. Mas a ação aí é suficientemente empolgante e corajosa. Tudo acontece à luz do dia, debaixo de um belo Sol, sem medo de escancarar a computação gráfica.

Mas fica a impressão de que tudo poderia ter uma identidade própria, algo que o texto pouco detalhista de Lewis (ele preferia deixar as construções para o leitor) certamente permitiria. Ao optar pela realização desse Senhor dos Anéizinhos - até a Nova Zelândia e a Weta de Peter Jackson são usados - os responsáveis perdem uma excelente oportunidade de evitar comparações e transmitir sua mensagem de maneira mais sutil, o que certamente evitaria reações negativas como esta própria.

Fica a certeza de que Adamson faz um verdadeiro deserviço ao cinema ao abandonar o inovador Shrek para abraçar justamente a mesma Disney, que sofre uma crise criativa, da qual ele inteligentemente caçoou nas aventuras do ogro verde. Lamentável.

08 dezembro 2005

Querida Wendy



Nota: 9

Filmes narrados por um personagem têm a tendência de ser maniqueístas, pois são formas de conduzir o espectador à reação imaginada pelo diretor, sem deixar espaços para discussão ou reflexão. Nas mãos de um exímio realizador, porém, este recurso tende a provocar o inverso. Imaginem, então, o que faria o polêmico diretor Lars von Trier. No caso de Querida Wendy ele não dirige, mas assina história e roteiro. O filme está sendo vendido como anti-belicista. Será?

O jovem Dick, habitante da pequena cidade norte-americana de Estherslope e pacifista convicto, se fascina por uma pequena arma de fogo descoberta por acaso num bazar. Ele compra a pistola, à qual dá o nome de Wendy, e convence outros garotos a fundar um clube secreto baseado nos princípios do pacifismo e da posse de armas. Apesar da firme crença na mais importante regra do recém-formado clube - "Nunca saque sua pistola" -, seus membros logo se deparam com uma situação em que as regras recém-criadas parecem existir somente para não serem cumpridas.

Definir a produção como um manifesto contra as armas é uma maneira muito simplista e errônea. Trata-se, na verdade, de um filme de difícil classificação. Sua originalidade reside na forma como von Trier provoca confusão na mente do público. O cineasta faz dos seus joguetes de novo e leva o público a pensar e agir da mesma forma que seus personagens. Ele deixa claro que é muito fácil criticar o comportamento dos jovens pacifistas do filme, mas ao mesmo tempo torcemos por eles e aceitamos suas convicções, por mais idiotas que sejam.

Como em Dogville, Dear Wendy acontece numa cidade pequena, os protagonistas não representam as idéias de von Trier e a única diferença é que eles não estão tentando fazer parte do sistema, preferem ser os parias, ou melhor, os bandidos românticos que tanto fascinam o público. Os adultos e policiais são retratados de forma estereotipada - mais um sinal da costumeira manipulação empreendida por von Trier. Ao final da projeção, já a caminho de casa, é impossível não se sentir assustado com alguns sentimentos que podem surgir não se sabe de onde.

O elenco é comandado pelo ótimo Jamie Bell (Billy Elliot), que faz o papel de Dick, o líder do grupo de jovens fracassados que encontram em suas armas as companheiras perfeitas. Uma relação de amor, marcada por desejo, inveja e ciúme. Ele chama seu grupo de Dandis, a única maneira de se sentirem especiais. A arma é a aliada cotidiana, sempre na cintura (qualquer paralelo com a polícia não é mera coincidência) que os faz sentir maiores, mais fortes, destemidos. É uma crítica ao poder que uma arma proporciona a qualquer pessoa. O filme tem uma mensagem muito parecida, apesar de não terem relação alguma, com o francês O Ódio. Uma crítica às armas, ao poder que ela confere, ao uso e a utilidade da mesma.

A produção é dirigida pelo também dinamarquês Thomas Vinterberg (Festa de Família), colega do manifesto conhecido como "Dogma 95". Se von Trier tivesse dirigido, com certeza o filme seria construído de forma diferente, mas isso não impediu Vinterberg de colocar a sua assinatura de forma arrebatadora. Roteiro e direção se completam, formando um trabalho que deve ser usado como questionamento para a época em que vivemos.

Flores Partidas



Nota: 7,5

Dois mestres do minimalismo, Jim Jarmusch (Ghost Dog) e Bill Murray trabalharam juntos pela primeira vez em Sobre Café e Cigarros (Coffee and Cigarettes, 2003), a divertida coleção de curtas do cineasta. Flores Partidas é seu primeiro longa-metragem juntos... e que venham muitos mais.

O drama cômico conta a história de Don Johnston (Murray), um solteirão mulherengo que acaba de ser deixado pela namorada. "Você me trata como sua amante, mas nem sequer é casado", reclama a moça. Melancólico e solitário, ele recebe quase que simultaneamente uma carta anônima. Dentro do envelope cor-de-rosa, sem remetente, a informação bombástica de que ele tem um filho de 19 anos. Johnston não demonstra interessa na missiva, mas seu vizinho xereta, o etíope Winston (Jeffrey Wright, excelente!), apaixonado por romances policiais, o convence a investigar o assunto e encontrar a mulher que escreveu a carta. Assim, o hesitante Don embarca numa viagem através dos Estados Unidos em busca de cinco antigas namoradas que podem ter pistas de seu filho.

Murray está mais uma vez perfeito como o protagonista, homem de emoções represadas, mas indisposto a romper o dique para deixá-las sair. Sua interpretação segue a linha contida/pensativa de Encontros e Desencontros e A Vida Marinha com Steve Zissou. Coincidência ou não, dois dos melhores filmes estadunidenses dos últimos anos.

Mas o ator está em excepcional companhia. Sharon Stone, Frances Conroy, Jessica Lange, Tilda Swinton, Julie Delpy e Chloe Sevigny. Cada uma delas fica não mais do que cinco minutos na tela, mas roubam as cenas. É palpável nos encontros de Johnston com as ex-namoradas a velocidade com que o passado vêm à tona. Aliás, esse é o grande trunfo do filme. Na maioria dos road movies, o protagonista sai em busca de experiências novas. Neste, parte para reencontrar o passado. Obviamente, em nenhum dos casos há como permanecer o mesmo.

Jarmusch é um mestre em sua arte. Deixa a câmera parada, sem excessos de estilo, com a iluminação e cores mais naturais possíveis. Conhece a força de seu roteiro e dá um passo atrás para deixar o filme nas mãos dos atores e seus personagens. O único recurso de que se vale é a música, companhia de Johnston na estrada. E a seleção é extremamente feliz. O cineasta nos apresenta Mulato Astatke, um jazzista etíope, e mistura a exótica sonoridade do músico com Marvin Gaye e uma pitada de rock alternativo.

Sabe aqueles filmes em que você pensa "se terminasse agora seria perfeito"? Flores Partidas é exatamente assim. Concluiu num momento tão perfeito que a edição parece ter sido feita em nível subatômico. Nem um átomo antes, nem depois. Deixa o espectador com vontade de ver mais, de conhecer mais aqueles personagens, de descobrir o passado, de acompanhá-los no futuro. Mas, como os casos passageiros do protagonista, encerra a relação logo, partindo-a como as flores do título.

Harry Potter e o Cálice de Fogo



Nota: 6

Conforme Joanne Rowling deu continuidade à série literária Harry Potter, percebeu que a maioria de seus leitores, assim como as personagens da fantasia, também cresciam. Para cada ano que o menino bruxo passava na Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, dois ou mais anos se passavam no mundo real, com os fãs aguardando o próximo capítulo da aventura. Assim, Potter passava dos 12 aos 13, enquanto seus jovens apreciadores o reencontram já não tão jovens assim, com 13, 15, 17...

Ciente disso, mudanças se fizeram necessárias e o tom da história ficou mais adulto, sombrio. Contribuiu para a maturação também o crescimento do poder de Lorde Voldemort, o grande vilão da série, matador de pais que agora busca o filho sobrevivente para consolidar seu reinado de terror interrompido. O ápice de tal crescimento é o quarto livro, Harry Potter e o Cálice de Fogo. Assim, não é coincidência que a terceira continuação de Harry Potter e a Pedra Filosofal, é a primeira imprópria para menores de 14 anos. E mais... provavelmente será o mais interessante de todos os filmes, já que tem ao seu lado um elemento dramático que até então não tinha dado as caras na aventura: a fatalidade. Não interessa quem morrerá daqui pra frente, foi O Cálice de Fogo que abriu a contagem de corpos.

Mike Newell (O Sorriso de Monalisa), o diretor contratado para o longa, entendeu perfeitamente a tendência descrita acima. Seu filme reflete esse crescimento quase como se fosse uma síntese de todos os capítulos até aqui. Começa como A Pedra Filosofal, com um evento que altera uma situação estabelecida - no caso, o ataque dos Comensais da Morte, seguidores de Voldemort. Na seqüência vem a aceitação do fato e os desafios decorrentes da mudança. Há até uma espécie de ritual de passagem, com Harry Potter (novamente Daniel Radcliffe) enfrentando os desafios perigosíssimos do Torneio Tribruxo. As opções, como nas tribos ancestrais, são morrer ou agüentar a dor e obter "glória eterna". O clímax espelha a urgência do próprio filme, com a explosão dos dramáticos acontecimentos e a certeza de que nada mais será como antes.

Tecnicamente, trata-se de uma adaptação muito bem estruturada. Havia enorme preocupação de que o livro, pelo tamanho, tivesse que ser transformado em dois filmes. Bobagem. O roteirista Steve Kloves, responsável pelos três filmes anteriores, fez seu melhor trabalho até aqui. Aparou arestas, encontrou ligações e motivações inexistentes no romance e, com isso, conseguiu reduzir o calhamaço a confortáveis 157 minutos nas telonas.

Na nova aventura, o menino bruxo mais uma vez deixa o cotidiano desagradável da casa dos tios para mergulhar no mundo fantástico de seus pais. Desta vez, dois eventos significativos o aguardam ao lado dos amigos Ron (Ruppert Grint) e Hermione (Emma Watson). O primeiro é a Copa Mundial de Quadribol, o maior evento esportivo do universo dos bruxos. Mas as forças das trevas estão em ação e a concentração de fãs do esporte é um prato cheio para seu retorno. Depois, de volta à Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, a tradicional competição entre as casas é substituída pelo Torneio Tribruxo, um evento que reúne as três maiores escolas mágicas. São quatro campeões (vividos por Stanislav Ianevski, Robert Pattinson e Clemence Poesy, além de Radcliffe) se enfrentando em provas dificílimas, que fornecem as melhores cenas de ação do filme - em especial o combate ao dragão. Mas a tragédia os aguarda, já que o retorno de Lorde Voldemort é iminente.

Além da interessante história, o elenco também ganhou enorme reforço. Brendan Gleeson como o desconfiado Olho-Tonto Moody, o novo professor de Defesas contra as artes da trevas, está ótimo. Ora enlouquecido, ora calmo, condição que transmite o passado de horrores por ele vivido enquanto caçava colaboradores de Voldemort. Miranda Richardson, que vive a jornalista anti-ética Rita Skeeter, tem poucos, mas divertidos momentos. O grande destaque, porém, é mesmo Ralph Fiennes. O ator inglês de O Jardineiro Fiel empresta a Cálice de Fogo toda a sua bem-vinda técnica. Seu Voldemort é dotado de uma fúria contida que lembra seu bom trabalho como o assassino serial de Dragão Vermelho.

Finalmente, Harry Potter e o Cálice de Fogo corrige também um detalhe falho dos primeiros filmes, a trilha sonora. O compositor John Williams (ele sim um verdadeiro mago) deixou muito a desejar com a música da série. Coube então a Patrick Doyle a tarefa de reescrever os temas do mundo mágico e o compositor de O Diário de Bridget Jones não decepcionou. As faixas têm personalidade sem serem intrusivas e a opção do diretor por uma banda de verdade durante o Baile de Inverno, formada por Jarvis Cocker (do Pulp, que canta as músicas que tocam na festa), Jonny Greenwood (Radiohead), Phil Selway (Radiohead) e Jason Buckle (Pulp), dá o toque final.

Com Harry Potter e o Cálice de Fogo, a franquia - na esteira do protagonista - supera seu ritual de iniciação e entra na vida adulta. A passagem foi muito boa. Resta saber se a nova fase conseguirá superá-la. É bom que consiga, porque até o capítulo final os fãs certamente estarão bem mais exigentes... e quase quarentões!