14 dezembro 2005

Reis e Rainha



Nota: 8,5

Um dos estereótipos ligados ao cinema francês é do filme setentista faladíssimo, enfadonho, que discute a relação, homem e mulher na cama, de preferência com as partes despudoradas, fumando um cigarro enquanto tratam de existencialismos conjugais. Há um fundo de verdade nesse clichê. Afinal, discutir existencialismos é um esporte nacional. Reis e Rainha (Rois et Reine, 2004) é uma espécie de modernização desse gênero.

O casal da história é formado pela editora de arte Nora (Emmanuelle Devos) e pelo violinista Ismaël (Mathieu Amalric), mas o começo do filme dirigido por Arnaud Desplechin não mostra os dois juntos. As suas vidas são contadas paralelamente. Nora está a caminho do seu terceiro casamento. Aprendeu com o tempo que manter uma relação de verdade é não ter que pedir nada ao outro. Seu noivo, milionário, entende e atende todas as suas vontades. Se o horizonte para ela clareia, Ismaël vive no breu. Dois médicos batem à porta de seu apartamento. Vieram buscá-lo. A corda laceada, pendurada no meio da sala, é uma evidência. Alguém solicitou que Ismaël fosse internado às pressas para tratamento psiquiátrico.

É assim, de um jeito um tanto conturbado, que Reis e rainhas principia. São duas horas e meia de duração, e Desplechin não tem pressa de explicar o que se passa na vida dos dois. À primeira vista, os personagens parecem opostos, ela a caminho de uma redenção de que certamente necessita, ele colhendo as pragas que semeou (e que a médica do hospício, vivida com gosto por Catherine Deneuve, faz questão de jogar na cara de Ismaël). A certa altura, porém, tudo se inverte. Ficamos sabendo que Nora e Ismaël foram um dia casados, e a descoberta ocorre quando ela, aflita, pede que ele, revigorado, adote o filho dela.

Pode parecer confuso, mas é basicamente esse fiapo de trama que é importante conhecer de antemão - para que os pequenos detalhes sejam revelados a seu momento, na sala de cinema, e também para dar uma idéia, especialmente, da montanha-russa de vitórias e fracassos sentimentais que o cineasta propõe. A citada modernização do "filme francês de discutir relação", se é que pode-se chamá-lo assim, acontece em meio a esse sobe-e-desce da história.

Misturar gêneros é uma das ferramentas de Desplechin. Não se assuste se aquelas aspas que acompanham a campanha de marketing parecerem desencontradas. "Um épico extraordinário", diz o San Francisco Weekly. "Uma intensa tragicomédia", elogia o Village Voice. Decidam-se, afinal, é épico ou tragicomédia? Na hora do filme, é fácil entender porque cada um define a seu modo: Reis e rainha - título que alude aos homens da vida de Nora - transita com facilidade entre tons demais variados. Vai do humor físico imediatamente à catástrofe mais dramática (com direito a trilha sonora exageradíssima) sem que isso pareça aberrante, coisa que na mão de um diretor menos talentoso seria um pastiche completo.

Pastiche, no caso de Desplechin, não é o termo correto. Colagens seria mais adequado. Estudiosos costumam chamar esse tipo de cineasta de contrabandista - um autor que surrupia referências, como um Tarantino, e junta todas elas em um conjunto que soa homogêneo e, pricipalmente, original. No caso do francês, o caldeirão une, segundo suas palavras, desde as mulheres hitchcokianas, com destino traçado, como Rebecca e Marnie, até o Big Lebowski dos irmãos Coen, um dos modelos para a criação de Ismaël.

A mistura não fica indigesta porque Desplechin e o co-roteirista Roger Bohbot escrevem diálogos excelentes e criam tipos com vivacidade e substância. Adicione aí o dom evidente do diretor de fotografia Eric Gautier. A câmera que ele opera realiza um exercício de campo-contracampo (vemos o personagem e em seguida vemos o que ele vê) formidável. É como se ocupássemos o lugar de Nora e de Ismaël a todo momento, olhando cada objeto, cada cruzada de perna, cada ruído na rua que chama a atenção dos dois protagonistas. Essa incorporação, quase uma encarnação, é um dos fatores que contribuem para a íntima identificação que o público cria com o filme.