13 dezembro 2005

Bens Confiscados



Nota: 8,5

Um dos filmes preferidos do cineasta Carlos Reichenbach, a ponto de tê-lo homenageado em Dois Córregos (1999), é Dois Destinos (1962), de Valerio Zurlini (1926-1982). Trata-se do filme mais famoso do italiano, melodrama em que os reveses políticos e a cisão da Bota no Pós-Guerra se refletem nas vidas opostas de dois irmãos. Zurlini acreditava que o miolo afetivo de uma história só se engrandecia de verdade quando situado num momento sociopolítico bem definido. É o que Reichenbach almeja com Bens Confiscados(2004).

A trama abre com um plano muito bem pensado. Uma mulher sobe na sacada de seu apartamento e se atira à rua. A tomada, sem cortes, entra então no apartamento, a câmera passa sobre a manchete de um jornal e desvenda o motivo do suicídio: a mulher, a estilista Isabela Siqueira, era amante do senador Américo Baldani, cuja mulher foi à TV denunciar as infidelidades e as trucagens do marido. Luís Roberto (Renan Augusto, de Meu Tio Matou um Cara), o filho da suicida, entra no apartamento neste instante. Descobre a tragédia. Mas não fica muito tempo - logo os assessores do político rumam para lá. Precisam dar um sumiço no rapaz. A imprensa não vai demorar a descobrir que ele é filho bastardo de Baldani.

O senador fazia o tipo galanteador, que dá atenção às mulheres. Não espanta o fato de ter ex-amores espalhadas pelo país. O assessor Paulo Hermes (Antônio Grassi) vai atrás de uma delas: a enfermeira Serena (Betty Faria), que um dia medicou Baldani quando ele estava combalido. Paulo Hermes quer que Serena ajude a cuidar de Luís Roberto até que a situação esfrie. Isso significa que a enfermeira e o rapaz terão que se refugiar no Sul mais ermo do Brasil, na casa de um jagunço gaúcho (Werner Schünemann) nada amistoso. Significa também que ficarão lá por bastante tempo - pelo menos até que a cassação de Baldani seja votada, que suas posses sejam tomadas pela justiça e que a mídia o deixe em paz, prazo dilatadíssimo.

Bens Confiscados é, portanto, um filme de aguardo. À espera do desfecho da crise política, Serena e Luís Roberto se conhecem melhor. Ele, sem saber que ela era amante de seu pai. Ela, tentando mostrar que o pai não é tão ruim quanto o órfão raivoso pensa. Como em Zurlini, o pano-de-fundo está o tempo todo em cena, apenas invisível. O que se desenrola aos nossos olhos é o aguardo.

Uma premissa assim, maleável, dá espaço para dois tipos de abordagem. Uma é um tanto esquemática, mais segura, acadêmica talvez, focada exclusivamente no amadurecimento, na aproximação dos dois personagens. Uma segunda pegada - a que Reichenbach escolhe -é mais frouxa, mais versátil, e por isso mais perigosa. A narrativa é tomada de um tom naturalista, antilinear, abre-se para situações impensadas, coadjuvantes que pipocam e somem sem justificativa. Uma história, na verdade, totalmente sem rumo. E Bens Confiscados é um filme sem rumo, no sentido em que escolher um único caminho seria negligenciar os demais.

Essa aparente falta de objetividade pode desagradar ao público, ainda mais se associada às participações breves de um elenco díspar - André Abujamra, Eduardo Dussek, Beth Goulart, o jornalista Bira Valdez, falecido em junho deste ano, e a VJ Marina Person, estreando como atriz com direito a beijo lésbico e tudo. Há quem diga que as pontas são dispensáveis, que desviam a atenção do cerne do filme. Ok, faz sentido. Mas quem disse que o filme se pretende coerente? O discurso evasivo, fragmentado, pode ser uma opção estilística - e aqui certamente é.

Mesmo picotada em painel, a mensagem se faz perceber. Liberdade versus cárcere, paixão devotada versus desamor. Não é à toa que o diretor filma Betty Faria - atuação destacada, aliás - pelo lado de fora do quarto de hotel, à distância: o enquadramento fordiano quer passar a idéia de clausura, de falta de perspectiva. E estar apaixonado, no caso, como o sentimento ingrato que a enfermeira nutre pelo político, não deixa de ser uma prisão. E a prisão real, que aguarda uma importante coadjuvante do filme do mesmo jeito que a cassação aguarda Baldani, simboliza a alforria.