28 setembro 2005

Doutores da Alegria



Nota: 9,5

Parece que a diretora Mara Mourão encontrou seu caminho das lentes. Seus longa-metragens anteriores, Alô? e Avassaladoras, somados à experiência dos filmes publicitários, imprimiram em seu currículo um tom em falsete na direção da representação. Nesses filmes citados, a maior fraqueza era a caricatura dos personagens, apresentados de modo estereotipado demais, como que dizendo à platéia aos berros que tudo não passava de encenação. Embora tivessem uma proposta de fazer um registro do cotidiano, com pitadas de humor urbano, a vontade de mostrar a teatralização do absurdo era maior do que o impacto cênico das situações trabalhadas. Pelos trejeitos ultrapassados e pelo ângulo distorcido de entrar em contato com o universo artístico, parecia que ali havia atores fazendo papel de palhaço.

Já este documentário Doutores da Alegria, prêmio de Melhor Filme do Festival de Nova York e Prêmio Especial do Júri e Júri Popular do 33º Festival de Gramado, caminha pelo processo inverso. Há muita sinceridade nos relatórios filmados sobre o ser humano na busca de sua essência. Atores que exercem a atividade de clown como profissão, mostrados tirando a maquiagem depois de um dia de trabalho, é uma prova disso.

Em 1998 o diretor Tom Shadyac dirigiu um lacrimoso filme de sucesso, baseado em fatos reais, no qual o ator Robin Williams fazia o papel do doutor Hunter ‘Patch’ Adams. Era a história de um estudante de Medicina meio vagal, autodidata, que acreditou que não bastava o doente de câncer em sua fase terminal, especificamente a criança, ser tratado somente com medicamentos pesados. De acordo com suas teorias revolucionárias pra época o riso produz, além do efeito psicológico positivo, uma série de reações no organismo que retardam e diminuem os sintomas da doença. Claro que o filme se usou de um tom maniqueísta, mas mostrou de maneira eficiente a resistência do ser humano em aceitar o novo, o desconhecido, ainda mais se tratando dos conservadores núcleos médicos. Patch Adams foi tratado como insolente, um incapacitado que queria trazer a medicina alternativa ao trabalho sério realizado em hospitais, e quase foi jogado à fogueira assim como os curandeiros da Idade Média.

Doutores da Alegria é um documentário que tira um pouco dessa romantização ficcional e mostra que, hoje, as sementes plantadas por Patch Adams faziam sentido. Fundada pelo ator e marido da diretora, Wellington Nogueira, a organização Doutores da Alegria atua em dez hospitais em São Paulo, Rio de Janeiro e Recife, e já visitou mais de 350 mil crianças e adolescentes hospitalizados, desde 1991. Conta com 35 atores profissionais, que recebem treinamento específico. É a única organização do gênero no mundo a ter um Centro de Pesquisa e Desenvolvimento próprio. Desde 2002, firmou parceria com o Ministério da Saúde na área de formação profissional.

O filme é uma compilação de depoimentos que fomentam o interesse pelo tema. Tinha tudo pra chegar à pieguice, mas não chega. Poderia ficar no hermetismo teórico, mas não fica. Não cansa o espectador com exercícios e vocalizes de treinamento, tampouco abusa da comicidade e da tristeza dos leitos. Atingiu o ponto de equilíbrio certo que não deixa os relatos nem tão acadêmicos, nem tão pueris. Mara Mourão encontrou uma maneira interessante de intercalar as cenas de atuação do grupo nos hospitais, um ambiente em princípio frio e tétrico, com locações mais aquecidas, como parques. Os atores são documentados numa perspectiva totalmente fora de seu âmbito profissional, como andando de bicicleta, amamentando, tomando sol na praia. Aqui eles aparecem desmascarados, despidos das couraças interpretativas. São pessoas iguais a todo mundo, que também precisam se alimentar da vida pra continuar seu exercício de alegrar quem está entubado à base de quimioterapia.

Tendo como foco principal a trupe, autodenominada "besteirologistas", há uma seqüência de divagações que procuram entender melhor o significado que cada um dá à sua profissão. Wellington começa falando que o clown é um arquétipo milenar da sociedade, personificado nas figuras do pajé, do bobo da corte (capaz de dizer as mais duras verdades ao rei sem ser degolado) e do próprio palhaço. Hoje, o fundador entende que a figura do palhaço não deve ficar restrita ao palco, ao circo, mas torna-se necessária em outras rodas, e o hospital foi a primeira iniciativa. Do ponto de vista dos atores o palhaço é um subversivo, que não tem medo de dizer as verdades. Ao invés de esconder a personalidade criança, a indumentária espalhafatosa traz à tona um universo repleto de descobertas e novas perspectivas. Graças a essa capacidade de olhar as situações por um outro prisma, estabelece-se uma nova dimensão a questões inerentes à vida.

Como se fosse uma história de ação, o filme também revela os percalços desse cômico labor. As piadas prontas, o riso fácil, são condenados pela maioria. Pra eles, a pior coisa é ser um mau comediante. Eles têm a plena consciência de que seu trabalho não serve de anestésico, mas ajuda o doente a entender e conviver melhor com seu problema. É um trabalho de fazer graça, não gracinha. E o fato de se travestir de palhaço não significa necessariamente uma aceitação imediata da criança. Alguns acamados sentem medo, outros começam a chorar. Na análise do grupo a porta do quarto de hospital é uma moldura, um meio de intercâmbio entre o mundo externo e o interno. Há muita coisa a se temer do desconhecido que vem de fora. Para o palhaço, a maior frustração é não causar o riso, é não se fazer perceber.

Para chegar ao rico campo que é a imaginação infantil, os Doutores da Alegria têm de passar por uma série de barreiras dentro do instituto farmacológico, como médicos de plantão, enfermeiras, atendentes. A câmera consegue captar a fácil interação entre uma ponta e outra. O grupo já entra "fantasiado" evitando resistências e trazendo desde o saguão a alegria do humor imprevisível. Cativam os funcionários, o que facilita o trabalho com os enfermos. Numa das falas, é dito que colocar o nariz vermelho é uma maneira de identificar que aquela pessoa está num outro campo interpretativo, que lhe permite fazer brincadeiras sem ofender o lado sisudo da verdade. É como se o nariz de palhaço fosse o crachá de identificação dos besteirólogos. Um dos chefes do Hospital das Clínicas admite que este ambiente deve ser asséptico somente do ponto de vista bacteriológico, o que comprova que hoje há uma aceitação maior em relação ao que era considerado antigamente uma macumba de hospital.

Doutores da Alegria é um filme que evita os histrionismos e os apelos fáceis. Há um cuidado em relação à descontração e ao improviso sem deixar a coisa mambembe. Tanto no espectro de quem atua quanto de quem filma. Ainda bem que Mara Mourão acertou a veia encontrando muita verdade nesse universo que parece de mentira.

O Virgem de 40 Anos



Nota: 3

Alguns atores camelam anos em papéis de aluguel antes de serem descobertos, de ganharem um filme só para si. Steve Carell, não. Bastaram duas coadjuvações em Todo Poderoso (2003) e O Âncora (2004) para sua carreira, até então apagada na televisão, eclodir. Com cara de paspalho que não entende o que se passa ao redor, mas sem muito carisma, Carell interpretará o Agente 86 em uma versão do seriado clássico para os cinemas.

Em O Virgem de 40 Anos (The 40 Year Old Virgin, 2005), de Judd Apatow, seu primeiro trabalho como protagonista nas telonas, Carell mostra que tem versatilidade para carregar um filme nas costas, mas falta muito para ser um bom comediante. Não tem nem como compará-lo com Jim Carrey e Woody Allen, ou até mesmo com atores novos mas engraçados como Jason Biggs (American Pie), mas ele até segura a bronca.

O comecinho do filme é bom por conta do ator. Aliás, o próprio pôster, de uma simplicidade hilariante, se escora na figura otimista-imbecil de Carell para fazer rir. Na trama, ele vive um tipo igualmente ingênuo, Andy Stitzer. A câmera acompanha Andy pela manhã, enquanto ele acorda, mas mesmo desfocada o que atrai a atenção do espectador é a decoração da casa. Bonecos lacrados na caixa, pôsteres de clássicos B, mais bonecos, de heróis, de séries setentistas, poltrona adaptada para videogame... Enfim, fica evidente que a associação consagrada do nerdismo adulto com a inadequação social será o enfoque principal aqui. Como ele não se iniciou sexualmente, ele é uma pária sexual, um homem que vive recluso, um espécie de Willie Wonka, ou Michael Jackson do século XXI. Isso é um ponto que para mim, destruiu completamente qualquer chance de identificação com o filme. Ao invés de usarem adolescentes inseguros e excluidos por não serem sexualmente ativos, usaram um cara de 40 anos. Ou seja, assim como os EUA tanto propagaram no mundo, principalmente apoiando as idéias freudianas: o sexo é tudo. Ou você é, faz, aparenta, ou você está fora dos núcleos, dos grupos. Tanto que no filme, os melhores amigos do tal virgem, são jovens inconsequentes e lesados.

Andy trabalha como estoquista de uma loja de eletrônicos. Não é explicitamente zoado, mas também não é levado a sério. Certo dia, porém, seus colegas de trabalho (vividos por Paul Rudd, Seth Rogen e Romany Malco), em busca de um parceiro para o pôquer, convidam Andy para jogar. Conversa de homem, falam de sexo (forçadamente claro, pois a cena é muito mal feita). Andy até tenta disfarçar, enfia uns palavrões no relato de suas experiências, mas é pego quando descreve a sensação de pegar nos peitos de uma mulher. Os três descobrem que ele é virgem e não descansarão até que esta situação se resolva.

Sinopses dizem que Andy opta pela abstinência quando encontra uma mulher que vale a pena, Trish (Catherine Keener). Não é bem isso. Andy quer transar, sim, e as gags que melhor funcionam são aquelas que abordam sua iniciação. Em uma delas Andy não sabe pôr a camisinha e, quando a desenrola no braço, brinca de luva de Aquaman.

A essas referências pop se soma a discussão do comportamento amoroso. Prós e contras do sexo, do casamento, do sexo fora do casamento, do amor e da desilusão pontuam toda a nova epopéia de Andy - com ilustrações dos desencontros de seus três amigos. Basicamente de baixo calão, essa faceta do filme também rende uma piada ótima, mais intelectual: o virgem entra numa livraria e consegue xavecar a atendente gostosa só repetindo com cara de enigma o que ela diz - "'O senhor procura alguma coisa?', 'Me diga você, procura alguma coisa?'". Andy não sabia que essa coisa de flerte era tão fácil.

O Virgem de 40 anos, assim, acaba rendendo um par de boas piadas. Carell se entrega ao personagem com a determinação de quem oferece o peito cabeludo à depilação com cera. O problema é preencher duas horas de película. Começa a repetir-se demais, com todo tipo de sotaque possível, o "humor de palavrões", essa vertente bem estadunidense de fazer rir. E, principalmente, começa-se a levar a sério demais o fundo dramático da história. Falta ao estreante Apatow mão mais firme. Falta descobrir que neste gênero o importante é colar uma gag na outra, como Zuckers ou os Farrellys em início de carreira faziam, para encobrir as obviedades da trama. O Virgem de 40 anos não apenas se abre aos clichês da comédia romântica como acredita neles, o que é pior.

Sal de Prata



Nota: 6


A metalinguagem, sim, aquela história de falar do suporte artístico dentro do próprio suporte, foi um recurso que durante todo o século 20 permeou quase todas as formas de artes. Da literatura até as artes plásticas, passando, é claro, pelo cinema, a metalinguagem é capaz de criar sensações espetaculares.

Porém, como qualquer maneira produtiva, a metalinguagem pode ser encarada de diversos pontos de vista, por exemplo, mais erudito e sutil, como Charlie Kaufmann fez em seu roteiro de Quero Ser John Malkovich, ou de maneira tosca, digna de uma sala de aula de terceira série, como Carlos Gerbase faz em seu Sal de Prata.

Chega a ser constrangedor em vários momentos a tacanhice da película. Quer ser intelectual, profundo, reflexivo, mas consegue mesmo é ser uma amostra do quanto o cinema brasileiro, ou melhor, o cineasta gaúcho quer ser pretensioso...

Rudi Veronese (Marcos "Me Ressucitaram" Breda) é um cineasta beira-de-esquina nacional típico, ou seja, fracassado. Quando pinga um dinheiro, realiza seus curtas-metragens. Ele também é namorado de Cátia (Maria Fernanda Cândido), uma economista bem sucedida. Este antagonismo permeia tudo o que vem a seguir. Durante uma reunião de seu círculo próximo de cineastas, Veronese sofre um enfarte e morre. Cátia, então, faz um mergulho na obra do namorado para entendê-lo melhor e entender melhor o que é cinema.

Entre reflexões sobre vida, morte, amor, Gerbase desfia seu rosário sobre a função da Sétima Arte através da personagem de Maria Fernanda Cândido. Seus ciúmes da atriz Cassandra (Camila Pitanga), o encontro com a filha de Veronese (que também trabalha com audiovisual, ou seja, isto está no sangue!), os amigos e, principalmente, os fragmentos de roteiros que encontrou.

Há espaço para a filosofia metalingüística de botequim de sobra para Gerbase. De uma patética discussão que questiona se o uso da câmera digital ainda seria cinema à polêmica da autoria do resultado final de um filme, tudo parece ser uma grande cartilha introdutória ao cinema e à metalinguagem, daquelas coleções bem vagabundas que custam menos de dez reais em qualquer banca da esquina.

Sal de Prata é um equívoco. Ainda que tente ser esforçado, parece mais um trabalho de calouros de faculdade de cinema. Iluminação mal-feita, direção de atores frouxa e largada, atuações abaixo da média dos atores e um roteiro pra lá de óbvio. O Brasil que vive as mínguas quando se trata de cultura, vive o dilema das produções Globo Filmes - geralmente muito rentáveis - e os alternativos, que se não são tão apurados esteticamente, geralmente entregam boas idéias. E Carlos Gerbase consegue unir a tosquice do alternativo com as bobagens dos grandões.

Ele, antes um dos mais promissores da leva gaúcha, mostra que não tem nada a acrescentar - exceto o fato de criar um volume maior de cinegrafia nacional. Depois do fraco Tolerância, conseguiu ir mais fundo no lodo com Sal de Prata. Não há metalinguagem que consiga evitar a simples falta de talento.

13 setembro 2005

De Tanto Bater Meu Coração Parou



Nota: 8

Registrando um mundo estilhaçado entre paixão e violência, calmaria e desespero, humanidade e barbárie, De Tanto Bater Meu Coração Parou, de Jacques Audiard, é não só um filme sobre a multiplicidade das coisas como sobre a sintonia de um homem com este cenário tão impossível de norteamento.

Uma grandíssima sintonia. Porque Thomas, 28, flutua pela violência dos acontecimentos com desenvoltura ímpar, assumindo papéis variados, como ser o pai do seu próprio pai ou, pior, mostrar-se cruel quando está a serviço de sua agência imobiliária. O preço é caro: temos aqui alguém em ritmo atômico, sem paz de espírito e, aos trancos, tentando dar conta dos acontecimentos.

Nesse fatiamento das coisas, surge um norte para este alucinado rapaz: a arte, o piano largado na infância. Mas o caminho será mais de casamento do que desquite. Porque, por mais que peleje, ele não consegue manter o branco das teclas intacto.
Talvez porque a arte agora não mais seja uma negação à barbárie, como apontava o original desta refilmagem, Fingers (78), de James Toback. Com Audiard, a expressão artística não está livre de contaminações, pois é parte do mundo. A tradução disso está na ótima câmera na mão que segue fiel a Thomas, respeitando das suas baixezas no ramo imobiliário a suas elevações no teclado, tudo mostrado aos solavancos, numa crença na captação de imagens. E é assim, meio aos estilhaços, que o filme reencontra o cinema naquilo que este tem de mais impuro, entre a arte e o capital.

Tom (Romain Duris, de Exílios, Albergue Espanhol), faz pequenos negócios no ramo de corretagem imobiliária ao seu estilo mafioso e violento: coloca ratos no imóvel pra desvalorizar o negócio, expulsa os sem-teto que invadem o local, trata pessoalmente de dívidas com os devedores de modo nada amigável. Muitas vezes, se vê obrigado a proteger seu pai acertando contas com trambiqueiros dessa maneira truculenta e pouco ortodoxa. Assim o filme constrói seu universo capitalista, preenchido por pobres e aproveitadores, fracassados, estrangeiros, desiludidos sem perspectiva em seus vazios existenciais.

Mas uma oportunidade inesperada leva Tom a acreditar que pode se tornar, como sua mãe, um grande pianista. Aí o filme muda de ritmo, dá uma acalmada, concentra-se em planos mais abertos e mais demorados. Com muita dedicação, ele começa a se preparar para uma audição com uma virtuose chinesa, que não fala nada de francês. (Repare como há diferentes maneiras de abordar o estrangeirismo na França: em Lila Diz, a personagem chinesa é uma prostituta; aqui, é uma graduada em música erudita). Ambos estabelecem como único elo de relacionamento a música.

Se não fosse a competência do diretor, esse dilema ficaria meio esquemático. A opção do protagonista entre ingressar no mundo belo, sério e artístico, ou se perpetuar nos feios e sujos bas fonds dos negócios lucrativos porém escusos. Aqui, há um dinamismo cênico de deixar qualquer marcapasso em parafuso. Sim, o filme funciona à base de calmantes e estimulantes o tempo todo. Mas essa alternância de estados reativos bipolares não indica qualquer tipo de obviedade. Pelo contrário, são maneiras experimentais de se tatear um caminho para o encontro de algo que não sabemos exatamente o que é.

Talvez esse seja o grande mérito do filme. Não na mudança rítmica, estética e cromática, pois seria simplista demais. Mas em manter as ambigüidades acima das aparências, sem cair em psicologismos fáceis. De Tanto Bater... não chega exatamente a condenar suas crias com formulações estereotípicas. Tampouco é um filme que prega a redenção salvacionista. O pai de Tom, da maneira fora de forma como está caracterizado, é sim um loser. Mas guarda dentro de si uma vontade rancorosa de mudar o estado das coisas e melhorar de vida, assim como o filho, mesmo que tem a plena consciência de que não irá conseguir. O próprio Tom não consegue se dar bem na audição e desiste (é o que parece), mesmo treinando o filme todo. Através dessas caracterizações, o filme não fica sendo nem determinista nem transformista de sua realidade nua, crua e podre. Consegue ser muito mais dialético do que bipartidário e mecanicista, explorando com cuidado as incertezas humanas e extraindo um belo conteúdo de seus impasses.

A Luta Pela Esperança



Nota: 8

A história de James J. Braddock era um convite aberto para ser transformado em filme. Durante a década de 1920, ele foi um lutador de certo renome na categoria meio-pesado e dono de uma poderosa direita. Mas em 18 de julho de 1929 perdeu para Tommy Loughram por pontos após 15 assaltos. O dinheiro que tinha conseguido juntar, Braddock investiu em ações e em uma companhia de táxis. Em setembro do mesmo ano, ele e quase todo o povo norte-americano foi a nocaute com a queda da bolsa. Vieram a grande depressão, o desemprego, a fome, a pobreza.

O grande trunfo do diretor Ron Howard e Russel Crowe - reeditando a dupla de Uma Mente Brilhante - é conseguir mostrar todo o desespero de Braddock (Crowe) e seus conterrâneos em A Luta Pela Esperança (Cinderella Man, 2005). Mais do que um filme sobre um boxeador que conseguiu ressurgir no esporte após uma série de reveses, o longa é um drama sobre uma das mais duras fases da poderosa economia dos Estados Unidos.

O apelido de "Homem Cinderella" foi criado pelo cronista esportivo Damon Runyon e resume bem o conto de fadas pelo qual Braddock e sua família passaram. Durante seus dias de desespero, Braddock e sua esposa, Mae, se mudaram com seus três filhos da confortável casa no subúrbio de New Jersey para um cortiço. Não havia comida suficiente para alimentar seus filhos, o pouco leite que restava era misturado com água para render e, em pleno inverno, não havia dinheiro sequer para o aquecimento. Braddock engoliu seu orgulho, utilizou a ajuda do governo e - em uma das mais emocionantes cenas do filme - foi mendigar. Tudo isso para manter sua família unida e seus filhos longe da delinqüência.

Sua sorte começou a mudar quando conseguiu a chance de disputar uma última luta no Madison Square Garden. A bolsa era pequena, mas suficiente para quitar algumas dívidas. Sem o peso da responsabilidade e com uma nova arma secreta, ele consegue uma improvável vitória e assim ganha a chance de novas lutas, até conseguir a chance de disputar o título mundial dos pesos-pesados contra Max Baer - dono de um cartel invejável e responsável pela morte de dois adversários, que tiveram seus cérebros descolados após receberem seus potentes golpes.

As lutas são sempre muito tensas, mas em não inovadores no gênero. A câmera do diretor de fotografia Salvatore Totino (Um Domingo Qualquer) coloca o público dentro do ringue, levando e acertando socos junto com os pugilistas. Tecnicamente, destacam-se também a trilha sonora de Thomas Newman, que faz muita referência às raízes irlandesas de Braddock, o desenho de produção de Wynn Thomas e os figurinos de Daniel Orlandi, que ajudam a situar o público no tempo e espaço.

As atuações de Russel Crowe como Braddock e Paul Giamatti como seu empresário Joe Gould mostram mais uma vez o alto nível dos dois. Para interpretar o lutador, Crowe perdeu 23 quilos treinando duro sob a supervisão de Angelo Dundee, que em outros tempos foi técnico do Muhamad Ali, Sugar Ray Leonard e até do nosso Maguila - na época em que se sonhava de uma luta do brasileiro contra Mike Tyson. Vale destacar também o grandalhão Craig Bierko, que interpreta Baer. Como em todo conto de fadas é necessário um vilão, os roteiristas erraram ao retratar Baer e cometeram injustiça histórica. É na passagem em que o campeão afirma que consolará a mulher de Braddock depois de matá-lo - alusão ao fato de um rival de Baer ter morrido após o castigo que recebeu no ringue. Baer ficou conhecido como playboy, mais interessado em festas. No entanto, seria incapaz de tais atos de crueldade. Tal liberdade não é novidade em filmes do gênero. Hurricane, por exemplo, dá a entender que Rubin Carter só não foi campeão porque foi roubado.


A luta de um homem comum, que passou pelo pior, conseguiu superar as barreiras e se reerguer é o resumo de tudo o que Hollywood sempre quer mostrar. Mas não imagine os dramas baratos, cheios de redundâncias que se vê por aí. Howard é mais cuidadoso. Ele conhece bem o público para quem fala e explica - apenas uma vez, mas de forma bastante didática - a real motivação que mantém Braddock de pé mesmo depois de tanta porrada: ele não lutava pelo amor ao esporte, mas sim contra a pobreza e foi isso que o tornou um exemplo para tanta gente.

Mas quem for ao cinema esperando outro Menina de Ouro sairá decepcionado. A Luta é edificante, mais leve e não tão denso dramaticamente, apesar das cenas de miséria (que diga-se de passagem, lembram e muito a miséria que temos no Brasil hoje em dia).

Aprendendo a Mentir



Nota: 7

Para quem ficou esperando a revolução que não veio, restou a alternativa de testemunhar, passivamente ao longo dos anos, a morte de Che Guevara, o fim da URSS, a queda do Muro de Berlim. Entender os novos tempos exige dose redobrada de cinismo.

Em Aprendendo a Mentir, Helmut (Fabian Busch) prefere ignorar tudo que acontece ao seu redor. Vive como se estivesse em transe permanente, em função de sua ilusão. Se não uma crença política (o amor ao comunismo), uma paixão inesquecível pela sua primeira namorada, Britta, que lhe impede de alçar vôos maiores quando esta some de sua vida, mas também lhe confere uma confortável isenção sobre as mulheres que povoam a sua cama.

Chega, assim, aos 30 anos com os maus hábitos da adolescência intactos. Imaturo e sem olhos para o presente e o futuro, terá que rever sua história (as transformações da Alemanha desde os anos 80 servem como pano de fundo) quando engravida sua namorada.

São mundos que não existem mais, e o filme lidará com fantasmas. Se Adeus, Lênin (do qual Hendrik Handloegten, diretor do filme em questão, é co-autor) via a construção de mentiras, Aprendendo... vê homens estagnados vivendo em função de mentiras.

Porque Britta será um padrão de excelência para ele. Mais tarde, já nos estertores do comunismo, ela irá reaparecer, mas aí a idealização do amor não vai esconder sua real face, a farsa (política) que paralisou o coração de Helmut.

No entanto, sobra para outro Helmut (Kohl, ex-primeiro-ministro alemão) a expectativa hercúlea de reunificar dois mundos, quando cai o Muro de Berlim. Nada mais ficará em pé. O Helmut da ficção apenas embarca na utopia do "virar gente grande" (o que garante semelhanças com Alta Fidelidade). Para isso, em vez de unir, seu movimento é pular um muro e viver o presente. Passo que é dado muito mais pelo sonho com o capitalismo, igualmente idealizado, que venceu. Helmut é um homem dos novos tempos que exibe seu pragmatismo de quinta categoria. Nessa Alemanha pop que celebra o fim das ideologias, não há verdades ou alívio para nenhum dos lados.

Na trama, Helmut (ator de expressões econômicas) relembra certa noite em Berlim dos amores de sua vida. Quer dizer, lembra das mulheres, porque amor mesmo só um, o primeiro, pela loira angelical Britta, nos tempos do colégio. Desde que a garota se mudou para os Estados Unidos, Helmut tem vivido relações de inércia, evitado compromissos e, como diz o título, aprendido a mentir para cada mulher com quem se envolveu. Mas agora Tina, namorada de quem realmente gosta, exige um filho. E Helmut surta. Aos trinta e tantos de idade não sabe o que fazer - nem como tirar Britta da cabeça.

O roteirista e diretor Hendrik Handloegten (de Paul is Dead, exibido na 24ª Mostra) colaborou com o roteiro do sucesso de 2003 de Wolfgang Becker. A produtora dos dois filmes, a alemã X-Filme Creative Pool, vem se especializando em criar obras de apelo popular capazes de rodar o mundo. E é na esteira de Adeus, Lênin que a distribuidora brasileira acredita que Aprendendo a Mentir pode deslizar.

Tomadas as devidas proporções, pois o filme de Becker é superior, a única coisa que os conecta é o pano de fundo político. Aquele tratava diretamente na memória sentimental da Alemanha comunista, e este emparelha as mudanças na vida de Helmut com os anos 80 na Alemanha Ocidental que culminarão na derrubada do Muro de Berlim em 1989.

Não por acaso, o alienado Helmut conhece a engajada Britta durante uma visita à capital em 1982, quando Helmut Kohl (os nomes também não parecem coincidir por acaso) se elege chanceler. Os votos de unificação nacional do SPD, Partido Social-Democrata, são idênticos às promessas de amor eterno que Helmut e Britta dividem na noite de Natal. Mas a garota parte mundo afora - o que não deixa de ter também um sentido político. Depois de um longo intervalo, Helmut volta a encontrá-la justamente nos dias posteriores à queda do Muro.

Aprendendo a Mentir oferece, portanto, elementos que legitimam uma interpretação política - e é preciso ter repertório para deduzi-la. A defasagem industrial da porção comunista provocou miséria, escombros e desemprego após a reunificação, como Adeus, Lênin! mostrou bem. E isso tem tudo a ver com a desilusão que Helmut sente ao rever a nova Britta, a de Berlim das raves nos anos 90, sem o mesmo brilho nos olhos de 1982.

Mas como o país, quem sabe Helmut supera o baque. Afinal de contas, Tina quer ter um filho dele. O protagonista apaixonado pode chegar a um ponto de autocrítica similar à democratização da Alemanha de hoje. De novo, não por acaso, um lambe-lambe de referendo público colado num muro, sobre a adoção do euro como moeda da União Européia em 1999, pontua o momento em que Helmut toma a grande decisão de sua vida.

Lila Diz



Nota: 4,5

"Olhe bem para a minha boca, como é minúscula"
Assim como a frase acima, tudo o que Lila diz tem o objetivo de chamar a atenção do interlocutor para o seu corpo e sua beleza. Na seqüência inicial, imagens apenas do corpo de uma menina num balanço ao som de sua voz adolescente, um tanto rouca, não deixam dúvida: estamos diante da Lolita da vez.

O filme Lila Diz, adaptação de um romance erótico de 1996 de Chimo, se esforça para explorar as fantasias sexuais de uma adolescente, sem vergonha ou restrições de qualquer espécie. Infelizmente, porém, o fato de o protagonista e narrador do filme ser homem, somado a algumas expressões pesadas e banais de sexualidade adolescente, resulta num filme que mais explora do que se solidariza com as adolescentes.

Comparado aos trabalhos das cineastas Catherine Briellat, Larry Clark ou Clare Denis, o retrato que o diretor Ziad Doueiri faz da sexualidade feminina em Lila Diz é superficial e sem vida. Doueiri chamou a atenção alguns anos atrás com Beirute Oeste, e a recordação desse filme deve atrair o público do cinema de arte para ver seu novo trabalho. A premissa central de Lila Diz -- uma adolescente falando sobre sexo, sem papas na língua -- também deve aumentar o interesse.

A adaptação de Doueiri gira em torno de Chimo (Mohammed Khouas), um jovem que vive no bairro muçulmano de Marselha. Rapaz sensível e com talento para ser escritor, ele se apaixona pela adolescente boca-suja Lila (Vahina Giocante). Ela o masturba sobre uma bicicleta e o convida para vê-la fazendo sexo grupal. Chimo, 19 anos, age como um menino de 14. É extremamente inocente e sua reticência, tanto em se impor diante dos amigos delinqüentes quanto em assumir o amor por Lila, chega a irritar. As atuações do filme, de uma maneira geral, deixam a desejar.

Quando a notícia da suposta ninfomania de Lila se espalha, a garota é estuprada pelos amigos de Chimo. É então que se descobre que as proezas sexuais da garota não passavam de fantasias adolescentes.

O filme quer se solidarizar com Lila, mas sua estrutura faz com que a tentativa já comece no pé errado. A perspectiva masculina desde a qual a história é narrada sugere que tudo não passa de uma fantasia masculina de estupro.

Giocante tenta acrescentar um pouco de mistério a seu papel, mas suas cenas sempre parecem ser esquemáticas demais. Na realidade, "Lila Diz" é mais interessante quando, em lugar do sexo, trata da política dos jovens muçulmanos franceses.

08 setembro 2005

A Batalha de Argel



Nota: 10

O cinema moderno nasceu político, com O Encouraçado Potemkim (1925), do russo Sergei Eisenstein. Não só porque Eisenstein inventou a edição como a conhecemos hoje, mas por fazer arte engajada, por tomar uma posição diante de acontecimentos históricos de maneira mais incisiva do que havia sido feito anteriormente. É fácil desmerecer filmes políticos como simples propaganda de um governo, como difusão em massa de uma ideologia. Difícil é acreditar que boa parte do cinema norte-americano de entretenimento, de Rambo à última travessura do ursinho Pooh, não faça rigorosamente o mesmo, e ainda saia no lucro sob a pecha de fazer filmes “inofensivos” e “pipoca”. O cinema moderno obriga o diretor, portanto, a tomar uma posição.

E é isto que faz o italiano Gillo Pontecorvo na sua obra-prima do cinema de esquerda, A Batalha de Argel (La Battaglia di Algeri - 1965). A posição, no caso, é a favor do terrorismo, mais especificamente o praticado pela Frente de Libertação Nacional durante a guerra de independência da Argélia. Financiada pela própria FLN, e tendo um de seus dirigentes, Saadi Yassef, como ator, a fita é um misto de documentário e reconstrução histórica da luta argelina contra o governo francês. A situação se parece, e é praticamente impossível fugir da comparação, com a vivida no Iraque dos dias de hoje. Há algumas diferenças, segundo o próprio Yacef, em entrevista concedida no Rio de Janeiro, durante o Festival de Cinema do ano passado, já que a luta argelina era contra um colonialismo que já durava 130 anos e que a resistência estava unida, e não diluída em dezenas de grupos guerrilheiros.

A prática comum que torna o colonialismo francês e o neocolonialismo norte-americano indissociáveis, no entanto, é a tortura. Centrado no episódio do conflito entre a FLN e a divisão de pára-quedistas do exército francês, o filme expõe os métodos usados nos interrogatórios e as justificativas do exército comandado no país pelo Coronel Mathieu, que representa uma figura histórica verdadeira, o general Jacques Massu. Depois de uma derrota avassaladora no Vietnã, os franceses se voltam para a Argélia, onde aflora um sentimento de independência por parte da população. Em resposta a um atentado do exército no bairro árabe da cidade, a FLN explode três bares freqüentados por franceses. A partir daí, começa a ser travada uma guerra contra os insurgentes, tanto nas ruas como nas salas de tortura.

O filme também expõe em detalhes o funcionamento de uma organização terrorista. Sua eficácia nesse sentido pode ser verificada pela informação de que, segundo um dos documentários que acompanham a edição em DVD, a fita já foi projetada para grupos como o IRA, na Irlanda, e os Panteras Negras, nos EUA. Talvez não signifique muito e, de qualquer maneira, é importante ressaltar que os métodos da FLN são mostrados como uma forma de resistência legítima ao imperialismo francês. Ainda assim, imagens de mulheres e crianças sendo usadas para plantar bombas em lugares públicos não são do agrado, e nem da concordância, de todos. Apesar de se posicionar a favor da resistência, Pontecorvo não romantiza os guerrilheiros e nem mascara suas ações.

Este realismo, aliás, é uma das características que mantém A Batalha de Argel um filme atual. Rodado em preto-e-branco, sem atores profissionais (a única exceção é o coronel Mathieu, vivido por Jean Martin) em um estilo que lembra um documentário de guerra, a fita às vezes parece tão real que, durante sua primeira exibição, vinha acompanhada de um aviso alertando para o fato de que nenhuma imagem havia sido capturada durante o conflito. Com a câmera na mão, Pontecorvo dá ao longa um senso de urgência, de autenticidade, que a presença de Saadi Yacef no papel de um dos dirigentes da FLN só faz por ampliar. O realismo não agradou os franceses, e uma lei baniu Argel no país até 1971. Quando foi liberado, o cinema que o exibiu sofreu um atentado.

É claro que a proibição na França está mais relacionada à imagem negativa atribuída ao seu exército do que qualquer outra coisa. Os pára-quedistas marcham nas ruas, fecham bairros, prendem e torturam árabes indiscriminadamente. Quando uma jornalista pergunta ao Coronel como justificar os maus tratos, sua resposta é a mesma da “coalizão dos determinados” em relação ao Iraque: “Para combater o terrorismo, precisamos aceitar todas as conseqüências”. Ou seja, para manter o domínio sobre um país, é necessário aniquilar militarmente qualquer forma de resistência. A história, felizmente, provou o contrário: mesmo derrotada, a FLN agitou a opinião pública e garantiu a independência na Argélia.

Em um dos momentos mais impressionantes, um jornalista pergunta a um prisioneiro guerrilheiro se o uso de mulheres e crianças nos atentados, deixando cestas com bombas em lugares públicos, não era uma covardia. O dirigente responde que se os franceses emprestassem seus jatos e helicópteros, teria o prazer de trocá-los pelas cestas. Declarações como essas, aliadas aos relatos sobre a conduta dos pára-quedistas, incendiaram a França, onde figuras influentes como Jean-Paul Sartre defendiam a libertação dos argelinos. A estratégia foi eficaz e, hoje em dia, o Pentágono exibe Argel a seus funcionários para ensiná-los como vencer a guerra contra o terrorismo sem perder no front das idéias.

O próprio Yacef diz que a guerra no Iraque ressuscitou o filme. Uma cópia restaurada foi exibida em festivais ao redor do mundo – inclusive por aqui – e, segundo o jornalista Ricardo Calil, há uma nova versão sendo planejada, que teria entre os candidatos a diretor o brasileiro Fernando Meirelles. Argel também voltou em um DVD da coleção Criterion, que acompanha dois discos de documentários e entrevistas. São horas e mais horas de material extra, como uma visita de Pontecorvo à Argélia na década de 90 e depoimentos de militares franceses.

Desejo e Obsessão



Nota: 7,5

"O filme é, de certa forma, sobre o amor." Essa foi a resposta que a diretora Claire Denis encontrou para os jornalistas que repercutiam a controvérsia causada por Desejo e Obsessão no Festival de Cannes 2001. A julgar pela resposta, a cena de abertura pode ser vista como uma carta de intenções: o flagrante de um beijo noturno comentado pela fina orquestração da banda Tindersticks. "Quando você olha através dos meus olhos, você vê problemas todos os dias", canta a voz grave de Stuart Staples.

Mas, se esse é mesmo um filme de amor, seria preciso acrescentar que se trata de um daqueles ao estilo "ame-o ou deixe-o" - em Cannes, houve quem deixasse a sessão. Isso tudo porque, se resumido ao seu enredo, como gostam de fazer os críticos americanos, Desejo e Obsessão não foge à categoria "filme de horror".
Vejamos: o jovem casal Brown chega a Paris em lua-de-mel. Um pretexto para o senhor Brown (Vincent Gallo), atormentado por estranhas compulsões, procurar velhos conhecidos, Léo (Alex Descas), um cientista banido dos círculos oficiais por conta de uma controversa experiência com a libido humana, e sua mulher (Béatrice Dalle), cuja beleza é ainda mais predatória do que aparenta.

Dito isso, deve-se ressaltar que o enredo não importa muito. O público que não se engane: a diretora não é de fazer gênero. Desejo é um filme de atmosfera (um filme sobre a noite) que segue languidamente o fluxo do desejo de seus protagonistas, máquinas desejantes. É claro, as já famosas cenas de canibalismo estão lá, intensas mas perfeitamente estetizadas, prontas a levantar polêmica.
No início dos anos 90, quando rodava um curta com Gallo, Denis recebeu a proposta de um produtor americano para fazer um "filme de horror". Na época, ela se achava incapaz de fazer um filme de gênero. Nove anos depois, mudou de idéia. A melhor forma que encontrou de driblar, com seu talento, as ambições de seus financiadores foi levar o gênero a sério.

O resultado é uma obra que resvala nos códigos do filme de vampiro somente para se sedimentar sobre o mistério das relações humanas -o vampirismo entra aqui em sua forma original, sadiana, como sinônimo e metáfora de uma sexualidade desenfreada. Não é um thriller de suspense, como poderia fazer crer. Claire Denis conduz o filme como um drama, como a busca pessoal de um homem, que ama profundamente sua esposa, para livrar-se de uma doença que pode colocá-la em risco (logo no início do filme, uma mordida no braço dela já revela o perigo).


Desejo e Obsessão não é a história de canibais, de estranhos viciados em carne humana, como vende a publicidade atual em torno do filme. Como todo outro filme de Claire Denis, é um filme sobre a carne e seus impulsos mais irracionais, seja a criminalidade serial (Noites Sem Dormir), seja o racalcamento homossexual (Bom Trabalho). É um filme feito com a câmera, coisa que não se pode dizer da maioria do cinema feito atualmente. Isso não quer dizer que seja um filme sem narrativa, mas a narrativa certamente sofre mudanças que podem incomodar um espectador intransigente e mais acostumado a filmes de Russell Crowe que eleja Woody Allen como o limite máximo de experimentação formal permitida. Desejo e Obsessão é um filme à flor da pele, ao mesmo tempo delicado e selvagem, onde se fala muito pouco, se age muito pouco, mas quando se fala ou se age, é de uma vez por todas.