De Tanto Bater Meu Coração Parou
Nota: 8
Registrando um mundo estilhaçado entre paixão e violência, calmaria e desespero, humanidade e barbárie, De Tanto Bater Meu Coração Parou, de Jacques Audiard, é não só um filme sobre a multiplicidade das coisas como sobre a sintonia de um homem com este cenário tão impossível de norteamento.
Uma grandíssima sintonia. Porque Thomas, 28, flutua pela violência dos acontecimentos com desenvoltura ímpar, assumindo papéis variados, como ser o pai do seu próprio pai ou, pior, mostrar-se cruel quando está a serviço de sua agência imobiliária. O preço é caro: temos aqui alguém em ritmo atômico, sem paz de espírito e, aos trancos, tentando dar conta dos acontecimentos.
Nesse fatiamento das coisas, surge um norte para este alucinado rapaz: a arte, o piano largado na infância. Mas o caminho será mais de casamento do que desquite. Porque, por mais que peleje, ele não consegue manter o branco das teclas intacto.
Talvez porque a arte agora não mais seja uma negação à barbárie, como apontava o original desta refilmagem, Fingers (78), de James Toback. Com Audiard, a expressão artística não está livre de contaminações, pois é parte do mundo. A tradução disso está na ótima câmera na mão que segue fiel a Thomas, respeitando das suas baixezas no ramo imobiliário a suas elevações no teclado, tudo mostrado aos solavancos, numa crença na captação de imagens. E é assim, meio aos estilhaços, que o filme reencontra o cinema naquilo que este tem de mais impuro, entre a arte e o capital.
Tom (Romain Duris, de Exílios, Albergue Espanhol), faz pequenos negócios no ramo de corretagem imobiliária ao seu estilo mafioso e violento: coloca ratos no imóvel pra desvalorizar o negócio, expulsa os sem-teto que invadem o local, trata pessoalmente de dívidas com os devedores de modo nada amigável. Muitas vezes, se vê obrigado a proteger seu pai acertando contas com trambiqueiros dessa maneira truculenta e pouco ortodoxa. Assim o filme constrói seu universo capitalista, preenchido por pobres e aproveitadores, fracassados, estrangeiros, desiludidos sem perspectiva em seus vazios existenciais.
Mas uma oportunidade inesperada leva Tom a acreditar que pode se tornar, como sua mãe, um grande pianista. Aí o filme muda de ritmo, dá uma acalmada, concentra-se em planos mais abertos e mais demorados. Com muita dedicação, ele começa a se preparar para uma audição com uma virtuose chinesa, que não fala nada de francês. (Repare como há diferentes maneiras de abordar o estrangeirismo na França: em Lila Diz, a personagem chinesa é uma prostituta; aqui, é uma graduada em música erudita). Ambos estabelecem como único elo de relacionamento a música.
Se não fosse a competência do diretor, esse dilema ficaria meio esquemático. A opção do protagonista entre ingressar no mundo belo, sério e artístico, ou se perpetuar nos feios e sujos bas fonds dos negócios lucrativos porém escusos. Aqui, há um dinamismo cênico de deixar qualquer marcapasso em parafuso. Sim, o filme funciona à base de calmantes e estimulantes o tempo todo. Mas essa alternância de estados reativos bipolares não indica qualquer tipo de obviedade. Pelo contrário, são maneiras experimentais de se tatear um caminho para o encontro de algo que não sabemos exatamente o que é.
Talvez esse seja o grande mérito do filme. Não na mudança rítmica, estética e cromática, pois seria simplista demais. Mas em manter as ambigüidades acima das aparências, sem cair em psicologismos fáceis. De Tanto Bater... não chega exatamente a condenar suas crias com formulações estereotípicas. Tampouco é um filme que prega a redenção salvacionista. O pai de Tom, da maneira fora de forma como está caracterizado, é sim um loser. Mas guarda dentro de si uma vontade rancorosa de mudar o estado das coisas e melhorar de vida, assim como o filho, mesmo que tem a plena consciência de que não irá conseguir. O próprio Tom não consegue se dar bem na audição e desiste (é o que parece), mesmo treinando o filme todo. Através dessas caracterizações, o filme não fica sendo nem determinista nem transformista de sua realidade nua, crua e podre. Consegue ser muito mais dialético do que bipartidário e mecanicista, explorando com cuidado as incertezas humanas e extraindo um belo conteúdo de seus impasses.
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