08 setembro 2005

A Batalha de Argel



Nota: 10

O cinema moderno nasceu político, com O Encouraçado Potemkim (1925), do russo Sergei Eisenstein. Não só porque Eisenstein inventou a edição como a conhecemos hoje, mas por fazer arte engajada, por tomar uma posição diante de acontecimentos históricos de maneira mais incisiva do que havia sido feito anteriormente. É fácil desmerecer filmes políticos como simples propaganda de um governo, como difusão em massa de uma ideologia. Difícil é acreditar que boa parte do cinema norte-americano de entretenimento, de Rambo à última travessura do ursinho Pooh, não faça rigorosamente o mesmo, e ainda saia no lucro sob a pecha de fazer filmes “inofensivos” e “pipoca”. O cinema moderno obriga o diretor, portanto, a tomar uma posição.

E é isto que faz o italiano Gillo Pontecorvo na sua obra-prima do cinema de esquerda, A Batalha de Argel (La Battaglia di Algeri - 1965). A posição, no caso, é a favor do terrorismo, mais especificamente o praticado pela Frente de Libertação Nacional durante a guerra de independência da Argélia. Financiada pela própria FLN, e tendo um de seus dirigentes, Saadi Yassef, como ator, a fita é um misto de documentário e reconstrução histórica da luta argelina contra o governo francês. A situação se parece, e é praticamente impossível fugir da comparação, com a vivida no Iraque dos dias de hoje. Há algumas diferenças, segundo o próprio Yacef, em entrevista concedida no Rio de Janeiro, durante o Festival de Cinema do ano passado, já que a luta argelina era contra um colonialismo que já durava 130 anos e que a resistência estava unida, e não diluída em dezenas de grupos guerrilheiros.

A prática comum que torna o colonialismo francês e o neocolonialismo norte-americano indissociáveis, no entanto, é a tortura. Centrado no episódio do conflito entre a FLN e a divisão de pára-quedistas do exército francês, o filme expõe os métodos usados nos interrogatórios e as justificativas do exército comandado no país pelo Coronel Mathieu, que representa uma figura histórica verdadeira, o general Jacques Massu. Depois de uma derrota avassaladora no Vietnã, os franceses se voltam para a Argélia, onde aflora um sentimento de independência por parte da população. Em resposta a um atentado do exército no bairro árabe da cidade, a FLN explode três bares freqüentados por franceses. A partir daí, começa a ser travada uma guerra contra os insurgentes, tanto nas ruas como nas salas de tortura.

O filme também expõe em detalhes o funcionamento de uma organização terrorista. Sua eficácia nesse sentido pode ser verificada pela informação de que, segundo um dos documentários que acompanham a edição em DVD, a fita já foi projetada para grupos como o IRA, na Irlanda, e os Panteras Negras, nos EUA. Talvez não signifique muito e, de qualquer maneira, é importante ressaltar que os métodos da FLN são mostrados como uma forma de resistência legítima ao imperialismo francês. Ainda assim, imagens de mulheres e crianças sendo usadas para plantar bombas em lugares públicos não são do agrado, e nem da concordância, de todos. Apesar de se posicionar a favor da resistência, Pontecorvo não romantiza os guerrilheiros e nem mascara suas ações.

Este realismo, aliás, é uma das características que mantém A Batalha de Argel um filme atual. Rodado em preto-e-branco, sem atores profissionais (a única exceção é o coronel Mathieu, vivido por Jean Martin) em um estilo que lembra um documentário de guerra, a fita às vezes parece tão real que, durante sua primeira exibição, vinha acompanhada de um aviso alertando para o fato de que nenhuma imagem havia sido capturada durante o conflito. Com a câmera na mão, Pontecorvo dá ao longa um senso de urgência, de autenticidade, que a presença de Saadi Yacef no papel de um dos dirigentes da FLN só faz por ampliar. O realismo não agradou os franceses, e uma lei baniu Argel no país até 1971. Quando foi liberado, o cinema que o exibiu sofreu um atentado.

É claro que a proibição na França está mais relacionada à imagem negativa atribuída ao seu exército do que qualquer outra coisa. Os pára-quedistas marcham nas ruas, fecham bairros, prendem e torturam árabes indiscriminadamente. Quando uma jornalista pergunta ao Coronel como justificar os maus tratos, sua resposta é a mesma da “coalizão dos determinados” em relação ao Iraque: “Para combater o terrorismo, precisamos aceitar todas as conseqüências”. Ou seja, para manter o domínio sobre um país, é necessário aniquilar militarmente qualquer forma de resistência. A história, felizmente, provou o contrário: mesmo derrotada, a FLN agitou a opinião pública e garantiu a independência na Argélia.

Em um dos momentos mais impressionantes, um jornalista pergunta a um prisioneiro guerrilheiro se o uso de mulheres e crianças nos atentados, deixando cestas com bombas em lugares públicos, não era uma covardia. O dirigente responde que se os franceses emprestassem seus jatos e helicópteros, teria o prazer de trocá-los pelas cestas. Declarações como essas, aliadas aos relatos sobre a conduta dos pára-quedistas, incendiaram a França, onde figuras influentes como Jean-Paul Sartre defendiam a libertação dos argelinos. A estratégia foi eficaz e, hoje em dia, o Pentágono exibe Argel a seus funcionários para ensiná-los como vencer a guerra contra o terrorismo sem perder no front das idéias.

O próprio Yacef diz que a guerra no Iraque ressuscitou o filme. Uma cópia restaurada foi exibida em festivais ao redor do mundo – inclusive por aqui – e, segundo o jornalista Ricardo Calil, há uma nova versão sendo planejada, que teria entre os candidatos a diretor o brasileiro Fernando Meirelles. Argel também voltou em um DVD da coleção Criterion, que acompanha dois discos de documentários e entrevistas. São horas e mais horas de material extra, como uma visita de Pontecorvo à Argélia na década de 90 e depoimentos de militares franceses.