19 janeiro 2007

Mais Estranho Que A Ficção



Nota: 7

No lançamento de Mais Estranho que a Ficção, durante o Festival de Toronto, em setembro do ano passado, Emma Thompson e Dustin Hoffman defenderam que o filme tinha um "roteiro brilhante" e que "não há muitos como esse em Hollywood". A crítica também elogiou, ressaltando que o filme era uma espécie de Charlie Kaufman "mais palatável". Porém o resultado é mais linear e menos estimulante.

Dirigido por Marc Forster (Em Busca da Terra do Nunca) e escrito pelo novato Zach Helm, 31, o longa pertence, de fato, à escola de filmes em que os roteiros fantásticos, às vezes confusos, sempre absurdos, são as estrelas. E dos quais Quero Ser John Malkovich, Adaptação, Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, todos de Kaufman, são exemplos.
"Acho que filmes como O Show de Truman, e até mesmo alguns mais antigos de Woody Allen, como Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, anteciparam isso, tornando roteiros assim mais fáceis de produzir", disse Forster à Folha, em Toronto.
"Mas Charlie Kaufman levou isso para outro nível, com histórias realmente diferentes. É importante que ele tenha tido essa força."

Ao assumir esse texto, parece que o cineasta Marc Forster (Em Busca da Terra do Nunca) se sentiu como Spike Jonze ou Michel Gondry diante de uma típica trama de revelações e reviravoltas escrita por Charlie Kaufman. Mas o universo de Kaufman é cínico e debochado, enquanto o de Helm é romântico e melancólico. A diferença se faz notar no tom da narrativa e, em especial, na interpretação de Ferrell.

Ele é Harold Crick, um solitário cobrador do Imposto de Renda, profissão odiada por todos. É um apalermado, que passa a ouvir uma voz narrando gestos e fatos de sua vida mecânica e sem graça.

O espectador logo descobre que a voz pertence à escritora Kay Eiffel (Emma Thompson), que enfrenta sério bloqueio criativo. Essa narração onipresente e imprevisível interferirá na rotina de Crick e fará seu caminho cruzar com o de seu interesse amoroso, a doce confeiteira Ana Pascal (Maggie Gyllenhaal). Mas ele precisará agir quando a voz fala em sua morte.

No mundo da literatura e dos tipos anônimos, Forster e Helm contaram com ótimo elenco para erguer mais um elogio às iniciativas transgressoras. Se o espectador raciocinar, a premissa se torna impossível de engolir. Seu maior defeito é chegar tarde num filão já explorado com qualidade.

Maggie Gylenhaal, no papel de uma padeira cujos impostos Crick precisa analisar, está especialmente sexy no filme, mas os dois não fazem muito sentido como casal.

Quando não está tentando conquistar Gylenhaal, Crick tenta fazer sentido da situação inusitada em que se encontra. Para isso, vai procurar o professor de literatura Jules Hilbert (Dustin Hoffman), que, de maneira cômica, analisa os problemas de Crick na vida real através da ótica da teoria. No momento mais divertido dessa parte, o professor manda Crick juntar evidências para descobrir se o romance do qual ele é protagonista é uma comédia ou uma tragédia.

Enquanto isso, a única razão pela qual Crick ainda não morreu é que sua criadora está sofrendo um bloqueio criativo. A escritora Kay Eiffel (Emma Thompson) é um exemplo exagerado de angústia existencial, fumando sem parar, enquanto sua assistente, Penny (a subaproveitada Queen Latifah), faz o que pode para redespertar sua imaginação.

Mas a necessidade hollywoodiana de resolver os nexos da trama leva o filme a perder as nuances. Ao planificar as dimensões da criação e da criatura, impor aos personagens um ponto de contato através da figura de um professor de literatura, o filme vira uma ficção qualquer, onde o que interessa é dissolver os nós e garantir um final que não perturbe a crença na solução apaziguadora da "felicidade". O que o torna um filme agradável, mas muito menos estranho do que pode ser uma ficção.

Dias Selvagens













Nota: 9

Não há amor para o cineasta chinês Wong Kar Wai que não seja uma mistura de arrebatamento, dependência ou sacrifício. Nessas formas, a paixão pode estar virando a esquina - e a Hong Kong dos anos 60, cheia de corredores compridos, passagens estreitas e cantos angulosos, serve muito bem ao enlevado imaginário do diretor de Felizes Juntos, Amor à Flor da Pele e 2046.

Já era assim no seu segundo longa-metragem, Dias Selvagens (A fei jing juen), de 1991. Os boleros em espanhol de Xavier Cugat que tocam em 2046 já acompanhavam em Dias Selvagens os desamores de Su Li Zhen, personagem de Maggie Cheung que retorna em outros filmes de Kar Wai. Até Tony Leung, presença constante na obra do diretor ao longo da década, surge no longa de 1991, mas só na cena final, como uma deixa lúdica para aquilo que virá.

Quer dizer então que Kar Wai faz há anos o mesmo filme? Bem... Nem tanto. É interessante assistir a Dias Selvagens para perceber como as obsessões do cineasta - o retrato das mulheres, das roupas, da Hong Kong de sua infância - se intensificaram com o tempo, esteticamente falando. Em 1991 seus modos eram mais contidos, sua poesia visual mais mínima, sua narrativa mais íntima e menos grandiloquente. Dependendo do gosto do espectador, era tudo muito melhor.

O que não muda é a maneira incomum como Kar Wai cria o filme na preparação do elenco. Ele não usa roteiros com diálogos definidos. Ao contrário, deixa os atores livres para imergir nos personagens e armar as situações a partir disso. O paradoxal é que essa abertura se traduz, dentro da tela, em um mundo de amores claustrofóbicos, onde as relações de dependência são mais fortes do que as vontades próprias.

Su Li Zhen já começa o filme apaixonando-se por Yuddy (Leslie Cheung), cena belíssima em que a fotografia enevoada, como num delírio, já demonstra a marca do esteta Kar Wai. Rapidamente, porém, Su Li Zhen percebe que o amor não é correspondido na mesma intensidade. A nova namorada de Yuddy, Mimi (Carina Lau), logo chega à mesma conclusão. O Don Juan que salta de romance em romance já antevê, de certo modo, o tipo galanteador que Leung viverá posteriormente, especialmente em 2046.

A diferença é que Yuddy tem um motivo um tanto edipiano para a sua indiferença em relação às mulheres. E ele precisa deixar a cidade para enfrentar o problema. Quem vê na antologia de Kar Wai uma simbologia sociopolítica, um frequente embate de liberdade e dependência entre Hong Kong e o resto do mundo, essencialmente a China (outro turbulento amor?), terá na trajetória de Yuddy um interessante ponto de discussão.

É como se Hong Kong, com seus corredores que parecem fechar-se em círculos, fosse um saciado fim em si mesmo. E o perigo (ou a verdade) estivesse somente do lado de fora. Dias Selvagens pode ser apenas o início da história desdobrada por Kar Wai em meia-dúzia de filmes nos anos seguintes, mas em 1991 alguns personagens já alcançavam sua verdade, ainda que fosse a mais melancólica delas.

Babel



Nota: 9

Ao receber, na última segunda-feira, o Globo de Ouro de melhor filme dramático das mãos do governator Arnold Schwarzenegger, o diretor de Babel, Alejandro Gonzáles Iñárritu, espetou: "Senhor governador, meus documentos estão em dia, eu juro!".

Nada bobo, o mexicano abarcou numa só frase tudo o que um discurso de agradecimento que se preze deve ter: bom humor, fundo político e um toque de provocação. Mas o alcance da tal frase não termina aí. Ela resume exemplarmente o tema da película e responde a uma pergunta velada que alguns dos espectadores da cerimônia certamente se fizeram. Radicado nos Estados Unidos há 11 anos, Iñárritu conhece melhor do que muita gente o que é ser alvo de preconceito — e transpõe essa experiência para a tela com maestria.

É justamente das idéias pré-concebidas que fazemos uns dos outros que falam as quatro histórias, espalhadas por três continentes e totalmente interconectadas, que compõem Babel. São crônicas de um mundo que, no discurso, tem cada vez menos fronteiras, mas que, na prática, está mais dividido do que nunca. O planeta em que vivem esses personagens não é o mesmo que os economistas retratam em suas teses. As situações criadas por Guillermo Arriaga (roteirista do filme que trabalhou com o diretor em todos os seus filmes e que atualmente briga para ser incluído nos créditos como autor) estão longe de ser fictícias. Elas aparecem nos jornais diariamente.

Atentados a turistas em países de fé islâmica e imigração ilegal são apenas dois dentre os muitos indícios de que o mundo pode até ser plano — como defende o colunista do jornal The New York Times Thomas Friedman no livro The World is Flat -, mas as pessoas definitivamente não são. Um dos mais perfeitos exemplos é dado pelo próprio Friedman em seu livro. Jovens universitários chineses engolem os ressentimentos causados por anos de guerra com o Japão e aprendem a falar a língua do antigo inimigo sem sotaque, para poder prestar os serviços de telemarketing que não atraem os vizinhos do país do sol nascente. Mais do que uma mera forma de sobrevivência, eles revelam que buscam a oportunidade de conhecer as empresas japonesas por dentro e, a partir do que aprenderem com elas, construir as suas próprias empresas. "Hoje vocês são os arquitetos e nós os tijolos. Mas estamos nos preparando para mudar de posição", afirma no livro o supervisor da operação chinesa.

E aí reside a raiz de todo o problema. Ninguém quer ser "tijolo" para sempre. Para dar cabo das próprias inseguranças, a solução parece ser reduzir a "ameaça" a meia dúzia de adjetivos, quase todos depreciativos, e atacar antes de ouvir. Mais uma vez, vários elementos de Babel comprovam o conhecimento de causa que seus autores têm do que é viver num mundo onde as fronteiras mais intransponíveis não são exatamente geográficas. O melhor deles é o diálogo entre as crianças estadunidenses e o sobrinho de sua babá (vivida pela excelente Adriana Barraza) quando chegam ao México, onde vão assistir a um casamento. "Minha mãe disse que o México é um lugar muito perigoso", diz o pequeno Mike. Em espanhol, Santiago (Gael García Bernal) responde: "É mesmo... está cheio de mexicanos".

O slogan do filme, "A tragédia é universal. Se quiser ser compreendido, escute", é a síntese perfeita. Escutar o outro é coisa que os personagens só fazem em momentos extremos, quando já não há outro recurso. Os pais dos meninos pastores no Marrocos só se dão conta que lhes deram responsabilidades demais e que não lhes prestaram a devida atenção quando é muito tarde. Susan (Cate Blanchett) entende o quão patético era o seu medo de beber a água desse mesmo Marrocos, quando luta contra a dor do tiro que tomou. Richard (Brad Pitt, em atuação memorável) percebe que nem toda ajuda é motivada por dinheiro numa das cenas mais lindas e sufocantes, a da saída do vilarejo. Amélia, a babá, vê que sua origem mexicana conta mais do que os 16 anos que passou na "América" quando uma série de decisões equivocadas a coloca numa situação em que suas palavras não valem nada.

Mas o brilhantismo de Iñárritu e Arriaga fica evidente na história de Chieko (Rinko Kikuchi), a adolescente que, de todos os personagens, é a mais capaz de compreender o mundo à sua volta, mesmo sem poder escutá-lo.

Babel (2006) chega para completar a trilogia iniciada há seis anos com Amores Brutos (2000) e 21 Gramas (2003). O título remete à Torre de Babel, uma referência bíblica à idéia de pessoas que falam línguas diferentes e não conseguem estabelecer comunicação entre si.

O roteirista Guillermo Arriaga, parceiro de Iñáritu também nos filmes anteriores, coloca a ação em quatro países diferentes (Marrocos, Estados Unidos, México e Japão) e, conseqüentemente, em quatro línguas distintas. O filme começa no deserto do Marrocos, onde um pai de família compra um rifle para proteger suas cabras dos chacais. Como trabalha fora, ele deixa a arma com seus dois filhos menores (os atores mirins estreantes Said Tarchani e Boubker Ait El Caid). Eles resolvem testar o limite de alcance do novo "brinquedo". O menor, que sabe atirar, mira em um ônibus que passa na distante estrada desértica. Nele estão viajando Susan (Cate Blanchett) e Richard (Brad Pitt). O tiro acerta a mulher na altura do ombro, provocando pânico dentro do ônibus.

Nos Estados Unidos, Amelia (Adriana Barraza), a babá que toma conta dos filhos de Richard, recebe um telefonema avisando que Susan está hospitalizada. Mexicana, Amelia mora ilegalmente nos Estados Unidos há 16 anos. Com medo de perder o casamento do seu filho, no México, ela resolve cruzar a fronteira levando as crianças com Santiago (Gael García Bernal), seu sobrinho.

Enquanto isso, a jovem surda-muda Chieko (Rinko Kikuchi) fica sabendo da tragédia que aconteceu na África através dos noticiários japoneses. Mas a sua ligação com os demais eventos só será mostrada com o desenrolar da trama.

Para alguns o filme pode parecer uma colcha de retalhos de impossíveis coincidências, com uma forte manipulação emocional. Mas isso não importa. O objetivo de Iñáritu é mostrar que neste mundo globalizado, as pessoas estão cada vez mais distantes. Falta uma verdadeira comunicação desprovida de preconceitos e desde o 11 de Setembro a paranóia se instaurou. Depois que Susan é atingida, os outros turistas do ônibus ficam desesperados, achando que estão na mira de um novo ataque terrorista. Os únicos sentimentos que a globalização parece ter propagado pelo mundo são a violência e o medo de se tornar mais uma vítima.

Para Iñáritu, a conseqüência disso tudo é o isolamento. Susan e Richard estão afastados um do outro. Eles não se perdoam por terem perdido um filho. Culpam um ao outro e a si mesmos. Amelia se isolou de sua família ao tentar uma vida melhor nos Estados Unidos. No Marrocos, é a falta de um adulto por perto que faz com que duas crianças utilizem uma arma de fogo como brinquedo.

E no Japão, onde existe uma enorme cobrança por sucesso, tudo o que se vê é a solidão. Yasujiro (o veterano e ótimo ator Koji Yokusho), o pai de Chieko, é um rico e bem sucedido empresário que na sua caminhada para o sucesso foi se isolando cada vez mais da família. As cenas mais marcantes e poéticas mostram Chieko dentro de uma discoteca barulhenta com luzes berrantes. Iñáritu alterna momentos de extremo silêncio com ensurdecedores silêncios, mostrando que mesmo em um lugar repleto de pessoas, a solidão pode ser a sua única companheira. Chega a provocar lágrimas.

O elenco está soberbo. Iñáritu sabe tirar o melhor de seus intérpretes. Veteranos, estrelas e estreantes desenvolvem seus personagens com idênticas camadas de profundidade, mesmo tendo diferentes níveis de exposições na tela. É gratificante observar que os meninos no Marrocos conseguem interpretações tão apaixonantes quanto os consagrados Brad Pitt e Cate Blanchett. Vale destacar ainda os trabalhos de Adriana Barraza (que merecia uma indicação ao Oscar) e da estreante Rinko Kikuchi, que mesmo sem falar usa toda a sua expressão e linguagem corporal para demonstrar seus sentimentos.

Do ponto de vista técnico, Iñáritu se cercou do melhor e o resultado final é um arroubo visual e sonoro. Rodrigo Prieto faz um excelente trabalho de fotografia. Com extrema competência, ele consegue mesclar os diferentes cenários sem deixar o contraste de cores entre a moderna cidade de Tóquio, o deserto do Marrocos e a pobreza do México se sobressaírem uns sobre os outros. A música de Gustavo Santaolalla (ganhador do Oscar por O Segredo de Brokeback Mountain) completa as cenas, surgindo hipnoticamente após longos silêncios.

Todo esse trabalho de excelência levou Iñáritu a ser premiado no festival de Cannes deste ano como Melhor Diretor. Sua narrativa imagética corrobora as mensagens sobre a solidão e a falta de comunicação. Mesmo com celulares, internet e satélites ainda não conseguimos transpor barreiras culturais e lingüísticas. A câmera de Iñáritu registra cada um desses momentos de perto, colada nos personagens como se buscasse uma solução. É a linguagem cinematográfica em todo o seu esplendor.

Cidade dos Sonhos - David Lynch (2001)
















































Nota: 9,5

Por que as pessoas preferem condenar o que não entendem? Na época em que Magnólia foi lançado, lembro-me perfeitamente das intermináveis discussões sobre a famosa 'chuva de sapos' que ocorria no terceiro ato da trama: enquanto algumas pessoas tentavam ao menos decifrar o significado daquela aparente insanidade, outras simplesmente rotulavam o filme de Paul Thomas Anderson como 'bobagem pretensiosa', negando a impecável lógica e a riqueza de simbolismos de seu roteiro. Infelizmente, a mesma falta de compreensão vem cercando Cidade dos Sonhos, um dos melhores trabalhos da carreira de David Lynch.

Pelo menos, é o que pude perceber quando assisti a este magnífico filme pela segunda vez: durante os vinte minutos finais da história, quando as coisas começam a ficar um pouco menos claras, boa parte do público começou a rir e a tecer comentários de desaprovação em voz alta – e quando as luzes finalmente se acenderam, até mesmo vaias puderam ser ouvidas.

A pergunta é: por que isso tem acontecido? Cidade dos Sonhos é um filme complexo, sim, mas não incompreensível. Então por que muitas pessoas não têm conseguido perceber a mágica que Lynch realizou desta vez? A resposta é simples: porque não têm paciência. Nos dias de hoje, a maior parte das produções cinematográficas (especialmente quando produzidas por Hollywood) não exige muito do espectador: as tramas são simples e auto-explicativas, excluindo o público da equação final. Não temos que pensar; o filme pensa por nós. E quando algum projeto foge deste padrão, normalmente é descartado com um aceno de desprezo (não é à toa que os três títulos citados fracassaram nas bilheterias).

Pois bem: escrevi toda esta introdução simplesmente para expressar minha frustração com a falta de reconhecimento ao brilhantismo de Cidade dos Sonhos, uma produção extremamente bem realizada e que traz uma protagonista trágica e comovente. Na realidade, poucas vezes senti tamanha afeição (e pena) por determinado personagem – e confesso que fiquei profundamente chateado ao perceber que sua angústia e seu sofrimento foram recebidos com gargalhadas por parte de vários integrantes da platéia. O filme tem seus momentos engraçados, é verdade, mas nenhum deles acontece no terceiro ato da história.

O roteiro, escrito pelo próprio David Lynch, conta a história de Betty, uma aspirante a atriz que chega a Los Angeles com a determinação de se tornar uma estrela de cinema. Sem ter muitos recursos financeiros, ela hospeda-se na casa de sua tia, que está fora da cidade, e tem uma surpresa ao encontrar uma intrusa no local: Rita, uma mulher misteriosa que, depois de sofrer um grave acidente, perdeu a memória. Juntas, as duas garotas tentam descobrir as verdadeiras circunstâncias em que o acidente ocorreu e a origem do dinheiro que Rita traz em sua bolsa (cujo conteúdo também inclui uma estranha chave azul). A história também aborda os problemas enfrentados por um explosivo cineasta depois que este se recusa a escalar, como protagonista de seu novo filme, uma atriz apadrinhada pela máfia.

É claro que, como estamos falando de um trabalho de David Lynch, tudo acaba se revelando mais complexo do que o esperado, já que o cineasta utiliza vários recursos narrativos para contar sua história: flashbacks (que aparecem sem aviso); sonhos; delírios; e até mesmo cenas exibidas fora da ordem cronológica. Além disso, Lynch brinca com a percepção do espectador sobre o que é real ou apenas uma ilusão (tema recorrente no filme) em diversos momentos da projeção: em certa cena, por exemplo, vemos alguém cantando em um estúdio de rádio - que acaba se revelando um cenário construído à frente de uma bela paisagem (que, por sua vez, também se revela apenas um painel localizado em um estúdio cinematográfico). Desta forma, o público é obrigado a reorganizar mentalmente o que vê a fim de compreender exatamente o que está acontecendo.

No entanto, ao contrário do que muitos podem pensar, Cidade dos Sonhos não é um filme chato de se ver: a maior parte da trama se desenrola de maneira 'lógica', funcionando (curiosamente) como um noir moderno. O 'problema', como eu disse anteriormente, reside nos vinte minutos finais da projeção, quando Lynch parece dizer: 'Muito bem... Agora vamos ver o que realmente aconteceu!' (a ironia: até que isso aconteça, o público não se dá conta de que há algo a se explicar, já que tudo parece tão óbvio – e a explicação acaba soando mais confusa do que o mistério em si).

Embalado por uma excelente trilha sonora (composta por Angelo Badalamenti, colaborador habitual de David Lynch), Cidade dos Sonhos ainda conta com uma atuação magistral de Naomi Watts, que não apenas merecia ter sido indicada ao Oscar, como deveria ter levado o prêmio. Infelizmente, não posso falar livremente sobre os méritos de sua atuação, já que isso acabaria revelando o 'mistério' do filme, mas o fato é que Watts consegue criar uma personagem que desperta nossa compaixão mesmo depois que descobrimos a cruel natureza de alguns de seus atos (e a cena na qual ela realiza um teste para participar de uma produção é fenomenal – principalmente porque, minutos antes, ela havia ensaiado aquele mesmo texto de maneira apenas convencional).

Meu conselho: assista a Cidade dos Sonhos, mesmo que apenas como um exercício de lógica. No mínimo, você viverá uma experiência bem diferente daquela que Hollywood está acostumada a produzir. E se no final das contas você ficar perdido, discuta a história com os amigos, pois isso é sempre um passatempo interessante.

Interpretando os Sonhos de David Lynch

Há um motivo muito claro para a falta de 'lógica' existente em determinados momentos deste novo trabalho de David Lynch: a maior parte da história vista ao longo da projeção se trata, na verdade, de um sonho. (É espantoso como a distribuidora brasileira pôde traduzir o título desta forma. É o mesmo que traduzir O Sexto Sentido como O Garoto e o Fantasma.)

No entanto, a coisa não pára por aí, já que Lynch não se contenta em surpreender o público ao revelar que, até então, testemunháramos apenas os sonhos de Betty: quando a moça acorda, a narrativa assume um caráter episódico, incluindo delírios da protagonista e outras cenas 'reais' situadas fora da ordem cronológica (algumas destas cenas acontecem antes mesmo que Betty durma e tenha seu longo sonho). E o que é mais interessante: na realidade, ela não se chama Betty, mas sim Diane – e a mesma troca de nomes (e rostos) se aplica a vários outros personagens (algo que já é simbolizado na primeira tomada do filme, quando vemos várias pessoas dançando ao som do jitterbug e percebemos que há várias 'cópias' de cada um dos dançarinos).

Mas estou me adiantando. Antes de mais nada, creio que seria mais prudente analisar o que é real em Cidade dos Sonhos: quem são, de fato, aqueles personagens? E de que maneira eles se relacionam? A maior parte destas informações é fornecida por Lynch em duas cenas: durante a festa na casa de Adam Kesher (o diretor) e ao longo da conversa que Diane tem com o assassino que contrata para matar Camille.

Então vamos lá:

Depois de receber uma herança deixada por sua tia Ruth, Diane viaja para Los Angeles para tentar alavancar sua carreira de atriz. Certo dia, ela faz um teste para participar do filme A História de Sylvia North, mas é rejeitada pelo diretor da produção, Bob Rooker, que acaba escolhendo a bela Camilla Rhodes para o papel-título. Porém, Diane e Camilla acabam se tornando amigas e, eventualmente, amantes - sendo que esta última, agora uma atriz de sucesso, freqüentemente arruma pequenas pontas para a namorada em seus filmes.

Infelizmente, nem tudo corre bem para as duas: durante as filmagens de seu novo projeto, Camilla se envolve com Adam Kesher, o diretor responsável pela empreitada (apesar de ser casado, ele logo se divorcia da esposa, alegando que ela o traíra com o rapaz responsável por limpar a piscina, deixando-a sem direito a nada). Enciumada, Diane passa a brigar com Camilla - até que, certa noite, é convidada para uma festa na mansão de Kesher, sem saber que será obrigada a testemunhar o anúncio do casamento de sua namorada e o cineasta.

Sentindo-se humilhada, Diane decide contratar um assassino profissional para executar Camilla, pagando 50 mil dólares pelo serviço. Depois de receber o dinheiro e pegar uma foto de sua vítima, o sujeito diz que Diane encontrará uma chave azul em seu apartamento quando tudo estiver terminado – e, de fato, logo a garota recebe o aviso de que sua ex-namorada está morta. No entanto, corroída pelo remorso, ela tem longos sonhos envolvendo Camilla e, mesmo quando acordada, não consegue parar de pensar no que fez. Torturada pelas lembranças e pela crueldade de seus atos, Diane finalmente comete suicídio.

Pois bem: toda esta complexa trama é revelada apenas nos vinte minutos finais de Cidade dos Sonhos, e pouco tem a ver com o que vinha acontecendo até então, quando acompanhávamos apenas o sonho de Diane sobre as investigações de Betty (Diane) e Rita (Camilla), que já descrevi na primeira parte deste artigo.

Mas quais são, para início de conversa, os indícios de que a história envolvendo Betty e Rita não passa mesmo de um sonho? A primeira 'pista' pode ser encontrada logo no início da projeção, quando vemos a câmera mergulhar em um imenso travesseiro (algo que é auto-explicativo: em câmera subjetiva, estamos vendo Diane/Betty ir se deitar). Observe, também, como todas as fontes de luz vistas nesta primeira parte do filme apresentam um caráter difuso, conferindo um formato peculiar (um 'X') aos faróis e postes que aparecem na tela. Além disso, certos diálogos presentes no roteiro são uma clara alusão ao caráter imaginário daquele universo, sendo que os exemplos mais óbvios são:

O apresentador do Clube Silêncio afirma que ali 'tudo é uma ilusão'.

Quando resolve ligar para a polícia para sondar sobre o acidente ocorrido em Mulholland Drive (uma estrada), Betty diz: 'Faremos como nos filmes: a gente finge ser outra pessoa'. Esta referência aos 'filmes' será abordada mais adiante, pois também é importante para a compreensão da história.

Quando telefona para Diane Selwyn, Betty diz: 'É estranho ligar para si mesma'.

No momento em que Louise Bonner (a vizinha vidente) toca a campainha, a garota diz: 'Meu nome é Betty', ao que a outra responde: 'Não, não é'.

Portanto, a partir do momento em que percebemos que estamos assistindo ao sonho de Diane/Betty, alguns elementos se tornam mais compreensíveis, como o fato de Betty ser 'perfeita' demais: ela é inocente, simpática, pura, belíssima, talentosa, independente, corajosa e causa forte impressão em todos que a conhecem (como podemos perceber na cena em que ela faz um teste de interpretação e também no momento em que ela chega a Los Angeles e se despede de um casal de velhinhos que conheceu no avião. Aliás, este casal também desempenha função importante na interpretação dos sonhos da moça, como explicarei mais tarde).

Não é à toa que, em seus sonhos, Diane se imagina como a perfeita 'heroína' de Hollywood: influenciada por uma cultura puramente cinematográfica (não se esqueçam de que ela realmente é aspirante a atriz, embora fracassada), a moça estrutura seu sonho de forma parecida ao roteiro de um filme noir, colocando-se no papel da 'mocinha' e utilizando vários elementos clássicos do gênero: a misteriosa mulher em apuros (Rita); a corrupção que domina a cidade; a visão cínica do mundo; os policiais com longas capas de chuva; e assim por diante. Betty é, na verdade, tudo aquilo que Diane gostaria de ser - e em seus sonhos, a pobre garota credita seu fracasso (no mundo real) a alguma misteriosa conspiração arquitetada por figuras sinistras.

Mas não pára por aí: abandonada por Camilla, Diane transforma a ex-namorada em Rita, uma mulher vulnerável, frágil e sem memória, e que depende de seus cuidados para sobreviver (mesmo assim, em certo momento Betty declara seu amor a Rita, que não responde, provando que até mesmo em seus sonhos ela se vê descartada pela outra). Como se não bastasse, Diane aproveita o 'poder' de comandar seu próprio universo e 'vinga-se' de Adam, humilhando-o de todas as maneiras possíveis em seu sonho: ele realmente é traído pela esposa (e ainda apanha do tal limpador de piscinas); é demitido; perde todo o dinheiro; é ridicularizado por todos e ainda se vê obrigado a aceitar as exigências da 'máfia'.

(Aliás, acredito que Adam Kesher também atua como um desabafo/protesto de David Lynch contra os grandes estúdios, que freqüentemente massacram os impulsos artísticos dos cineastas enquanto procuram alcançar maiores lucros. Não pode ser coincidência o fato de que até mesmo o visual de Kesher nos faça lembrar de Lynch).

Porém, o mais fascinante de Cidade dos Sonhos é perceber como Diane insere os elementos de sua vida real na 'narrativa' que cria em seu longo sonho/pesadelo: observe, por exemplo, que Rita carrega, em sua bolsa, uma fortuna em dinheiro e uma chave azul – justamente os símbolos de sua morte (o dinheiro pago ao assassino e a chave – menos estilizada, claro – que este utiliza para avisar que o serviço foi feito). Além disso, o início do sonho de Diane mostra a tentativa feita para se matar Rita, que escapa graças a um acidente (ou melhor: é a forma que Diane – deus ex machina - encontrou para salvá-la). E mais: os dois detetives que investigam a morte de Camilla (e que são mencionados brevemente pela vizinha de Diane) aparecem no sonho como os policiais que inspecionam o local do acidente, ou seja: continuam a investigar, de uma forma ou de outra, o que aconteceu a Camilla/Rita.

Outros personagens que cruzam a fronteira entre o real e o imaginário são:

O assassino profissional: no sonho, ele aparece matando várias pessoas depois de recuperar uma misteriosa agenda preta (na verdade, a mesma agenda que estava à sua frente na cena em que ele conversa com Diane na lanchonete, quando é contratado para eliminar Camilla).

O 'cowboy': apesar de aparecer no sonho como um ameaçador emissário dos mafiosos irmãos Castigliani, o 'cowboy' é apenas um convidado que Diane vê de relance durante a festa na casa de Adam Kesher (sua aparência peculiar certamente chamou a atenção da moça).

O mafioso que cospe o capuccino: este é interessantíssimo. No sonho, um dos irmãos Castigliani é extremamente exigente com relação ao capuccino que lhe é oferecido pelos executivos do estúdio, chegando a cuspi-lo em um guardanapo depois de desaprovar seu gosto. Pois este mesmo sujeito (que é interpretado por Angelo Badalamenti, compositor do filme) é visto por Diane na festa de Kesher no momento em que a moça está tomando uma xícara de café (daí a relação inconsciente entre aquele rosto e a bebida).

Coco, a síndica do condomínio: esta é simples. Coco é, no mundo real, a mãe de Adam Kesher.

Camilla Rhodes: no sonho, Camilla é a causa dos problemas de Adam Kesher (afinal, é em função da verdadeira Camilla que Diane humilha o cineasta em sua imaginação). Pois, na verdade, a moça que se chama Camilla nos sonhos é a garota que beija a verdadeira Camilla na festa promovida por Kesher (como você pode observar, a festa é a seqüência-chave do filme).

Betty: este é o nome da garçonete que trabalha na lanchonete na qual Diane se encontra com o assassino (no sonho, a garçonete se chama Diane e Diane assume o nome de Betty).

Diane Selwyn: no sonho, Diane é companheira de quarto de Rita (algo que reflete o envolvimento entre Diane e Camilla no mundo real) e aparece morta, sem que jamais descubramos o porquê – embora isso possa ser interpretado como o desejo que Diane tem de morrer, agora que perdeu a amante.

O sujeito que tem medo do mendigo: é simplesmente um rapaz que Diane viu na lanchonete enquanto esta conversava com o assassino.

Bob Rooker: o diretor que realiza o teste com Betty é o mesmo cineasta que, anos antes, havia rejeitado Diane em favor de Camilla, durante a produção de A História de Sylvia North. No sonho, como não poderia deixar de ser, ele fica encantado com o talento de Betty/Diane.

O casal de velhinhos: isto é mais complicado. Particularmente, tenho a forte convicção de que eles são, na realidade, os pais de Diane. É por isso que a garota sonha que os dois estão felizes e orgulhosos de suas realizações e também é por esta razão que, posteriormente, ela se imagina sendo perseguida por eles (eles representariam a perda de seus valores morais, já que ela acaba de se tornar uma assassina).

Esclarecidas as origens dos principais personagens, resta-nos desvendar a explicação para outros símbolos criados por David Lynch, sendo que o mais importante seria, obviamente, a misteriosa caixa azul.

Agora procure se lembrar do que acontece quando Rita abre a tal caixa: a câmera mergulha no objeto, como se fosse sugada por ele. Como estamos vendo tudo pelo ponto de vista da moça, podemos presumir que ela é sugada pela caixa, desaparecendo em seguida. E o que foi utilizado para destrancar a caixa? A chave azul! Portanto, não seria ilógico concluir que a caixa azul é uma representação da morte de Rita. (E explicaria, também, porque tia Ruth aparece logo depois que a caixa é aberta, já que ela também está morta.)

Porém, esta não é a única explicação possível: o movimento da câmera em direção ao interior da caixa também é um reflexo do que aconteceu no início do filme, quando a câmera se aproximou do travesseiro. Assim, podemos supor que a caixa azul simboliza o retorno de Diane à consciência (o que explicaria, em parte, o estranho delírio envolvendo o casal de velhinhos saindo da caixa: são os valores morais da garota vindo à tona).

Já o Clube Silêncio é um pouco mais complexo de se analisar: à primeira vista, ele funciona como mais uma pista de que tudo ali não passa de ilusão ('Não há banda; é tudo gravado', diz o apresentador). No entanto, Lynch é conhecido por jamais fornecer respostas simples para seus problemas e, assim, é bastante plausível que o lugar tenha um significado oculto. Mas qual?

Em primeiro lugar, é sintomático observar que este é o instante em que vemos Rebekah Del Rio cantar a belíssima Llorando, cuja letra gira em torno do sofrimento de uma pessoa que perdeu seu grande amor (algo que, no sonho de Diane, serve como um momento de maior comunhão entre Betty/Diane e Rita/Camilla, que se abraçam e choram, comovidas). E mais: observe que o vestido que a cantora usa tem uma estampa parecidíssima com a roupa que tia Ruth deixa de presente para Betty. Então... seria Rebekah mais uma representação onírica da própria Diane? (Lembre-se de que a cantora 'morre' no final da canção.)

Mas não paramos por aí: é válido observar que o apresentador do Clube Silêncio tem um aspecto assustadoramente diabólico, com seu cavanhaque e sobrancelhas arqueadas – e seu monólogo faz Betty tremer incontrolavelmente. Por que? Creio que, pelo menos desta vez, a resposta é simples: o apresentador é, de fato, uma representação do castigo que será imposto a Diane por seus atos cruéis. Quer mais uma evidência disso? Quando ele encerra seu discurso, o palco é tomado por uma intensa fumaça, e o sujeito desaparece. Pois esta fumaça é idêntica àquela que toma conta do quarto de Diane depois que esta se mata, indicando que a garota pode realmente ter ido para 'o inferno' que tanto temia.

Para encerrar, faço uma última consideração: para tornar tudo ainda mais complexo, David Lynch prega duas peças adicionais no espectador.

A primeira: ele inclui sonhos dentro dos sonhos de Diane. Repare, por exemplo, que alguns dos momentos mais ilógicos da primeira parte do filme acontecem quando Rita está adormecida (são eles: o incidente envolvendo o misterioso sujeito na cadeira de rodas; e o encontro entre o mendigo e o rapaz da lanchonete). Assim, é possível que estes 'picos de insanidade' sejam, de fato, os pequenos sonhos de Rita ao longo do sonho maior de Diane.

A segunda: tenho a forte convicção de que, na segunda metade do filme, nem tudo o que testemunhamos aconteceu realmente da forma vista na tela. As risadas de Adam e Camilla durante o anúncio do noivado soam falsas demais – e o mesmo se aplica ao beijo que Camilla dá em uma outra garota durante a festa. Assim, creio ser possível que estejamos vendo não os fatos em si, mas as lembranças que Diane tem destes fatos. É por isso que, em sua mente, ela visualiza as risadas e o intenso beijo: ela se sente humilhada pelo que testemunhou e, assim, aumenta tudo em sua mente ao rememorar o que aconteceu.

Como podem ver, Cidade dos Sonhos realmente despertou minha imaginação. Não é à toa que, até agora, já gastei quase 4 mil palavras para falar sobre o filme (algo que normalmente faço em menos de 900 palavras). E o mais irônico é que, ao contrário do que você pode estar pensando, não tenho a menor ilusão de ter decifrado o enigma proposto por David Lynch. Quando assisti a Cidade dos Sonhos pela primeira vez, saí do cinema com a certeza de que desvendara o mistério e, assim, resolvi conferi-lo mais uma vez apenas para 'preencher as lacunas'. Resultado: realmente encontrei respostas para muitas de minhas perguntas, mas, em contrapartida, acabei me deparando com outra dezena de indagações:

Quem é, exatamente, a vizinha de Diane? A princípio, pensei que ela pudesse ser a própria Camilla (cuja aparência teria sido 'melhorada' no sonho), mas depois percebi meu erro: quando a vizinha aparece, Camilla já está morta (a chave azul está sobre a mesa) e, além disso, ela cita os dois detetives que investigam o assassinato. É possível que a tal vizinha tenha se envolvido com Diane depois que esta terminou com Camilla? (Neste caso, como o cinzeiro em forma de piano poderia estar presente na cena em que Diane e Camilla transam no sofá?) Ou será que ela é apenas alguém que trocou de apartamento com a garota (talvez Diane não tenha conseguido permanecer em seu velho apartamento, em função das lembranças provocadas pela morte de sua ex-namorada). Mas (e as perguntas não param) por que, durante o sonho, Rita/Camilla e a vizinha se olham de forma tão embaraçada (Rita chega a desviar o olhar)?

E mais: durante a segunda vez em que assisti ao filme, percebi que as cores azul e vermelha são empregadas de forma intensa ao longo da história (observe, por exemplo, as cadeiras ao lado da piscina de Adam Kesher e também as roupas de Betty e Rita – além, é claro, da caixa azul, do livro ao lado da pia de Betty e dos cabelos da mulher sentada no balcão do Clube Silêncio).

E por falar nesta mulher... quem é ela, exatamente?

As perguntas são muitas, e complexas. No entanto, ao contrário do que afirmam algumas pessoas, tenho a mais absoluta convicção de que as respostas também estão no filme. Portanto, é só procurar.

04 janeiro 2007

Mongolian Ping-Pong



Nota: 8

Assim como Happy feet: O Pingüim (2006) parece ser em muitos momentos uma versão animada do documentário francês A Marcha dos Pingüins (2005), Ping Pong Mongol (Lü cao di, 2005) poderia passar perfeitamente como o complemento ficcional para Camelos Também Choram (2003), o modesto documentário que fez um grande sucesso no boca-a-boca entre os cinéfilos paulistanos, retratando a vida de uma família nômade da Mongólia que divide seu tempo entre os afazeres cotidianos e o drama causado quando um filhote de camelo é rejeitado por sua mãe, colocando em risco sua vida.

No filme de Ning Hao acompanhamos a vida de uma outra família nômade mongol quando algo extraordinário os tira de seu cotidiano: a descoberta pelo filho caçula de uma bola de pingue-pongue. Como nem ele nem seus amigos jamais haviam visto uma dessas bolinhas, esse pequeno evento serve de partida para um grande despertar dessas crianças, que passam a buscar várias interpretações possíveis para aquilo que encontraram – a começar pela declaração da avó, que diz tratar-se de uma grande pérola enviada pelos espíritos do rio.

O filme parte dessa pequena brincadeira entre as crianças e do aparente isolamento e inocência dessas famílias para fazer um contraponto entre o que é exótico e o que é cotidiano nestes tempos de globalização. Tal análise, entretanto, é sempre acompanhada de uma sutil ironia (como na cena inicial em que os protagonistas posam para uma foto, em pleno deserto, diante de um cenário da praça da Paz Celestial e posteriormente, nessa mesma praça, uma outra família posa diante do cenário de um deserto), como a negar uma apologia a esse suposto primitivismo e pureza.

Como já nos mostrava Camelos Também Choram, a beleza desses povos não reside em seu isolamento da "civilização", mas sim em seu olhar diferenciado diante do mundo que os cerca. Ning Hao nos traz esse ensinamento com um filme singelo e humano, assim como o povo que pretende retratar.

A Promessa



Nota: 3

Com o sucesso de O Tigre e o Dragão (2000), do diretor Ang Lee, os lendários guerreiros Wuxia ganharam destaque internacionalmente. Aproveitando a onda, alguns cineastas renomados chineses resolveram embarcar no gênero. Zhang Yimou foi o primeiro com os magníficos Herói (2002) e O clã das Adagas Voadoras (2004). O mais novo a dar a sua versão da elnda é o diretor Chen Kaige, que nos apresenta A Promessa (Wu Ji, 2005).

O filme chega ao circuito laureado com diversos atributos de superlatividade em comparação a outras produções chinesas. Tem no seu currículo o título de produção com a maior quantidade de efeitos especiais e de filme mais caro realizado na China (35 milhões de dólares). Infelizmente, não se pode dizer o mesmo sobre a sua qualidade. A história sobre a mulher que renega o amor em troca de riquezas através de uma promessa feita a uma deusa, não encanta em instante algum. O roteiro é incoerente e cheio de furos. Toda vez que a trama precisa de um empurrão, a tal deusa surge para dar uma mãozinha. São idas e vindas dos personagens sem um motivo. A edição tosca contribui para a salada na narrativa.

E os equívocos não param. As motivações dos personagens não convencem. Os atores declamam as emoções em vez de senti-las. A idéia é que eles estejam envolvidos em um épico trágico, mas fica a impressão de estarem em uma novela mexicana. São momentos constrangedores. E mesmos os efeitos especiais são extremamente exagerados e superficiais. Até os cenários e figurinos são demasiadamente grandiosos. O Duque do Norte, vilão na história, muda de penteado três vezes durante a projeção. Em comparação com os filmes de Ang Lee e Zhang Yimou, o de Chen Kaige se parece mais com uma paródia ou um desenho animado. A cena inicial está mais para Kung-Fusão (2004) do que para a nobre arte protagonizada pelos cavaleiros Wuxia. Infelizmente, confundem feito extraordinário com babaquice exacerbada.

O cineasta Chen Kaige, que não consegue fazer um filme relevante desde Adeus, Minha Concubina (1993), realiza um exagero visual maçante e pouco original. E talvez o grande culpado sejam os cortes impostos pelos distribuidores norte-americanos. Eles resolveram limar 28 minutos de filme para exibi-lo nos países ocidentais. E reza a lenda que fizeram isso sem o acompanhamento de Chen Kaige. Talvez por isso o filme tenha ficado sem lógica em certas seqüências e com um final que parece ter saído da cartola de um mágico de segunda. A solução é importar a versão chinesa e comparar.

03 janeiro 2007

Harry Feet



Nota: 9

Quem for ao cinema para ver um filme sobre um filhote fofo de pingüim vai ter uma surpresa. Happy Feet - O Pingüim (2006) é isso, e muito mais. A tal ave do filme é só uma boa desculpa para uma história que ensina crianças (e adultos) uma importante lição sobre ecologia e outra contra a discriminação.

No melhor estilo A Marcha dos Pingüins, a animação mostra o curioso sistema de "namoro" e incubação destas aves que nadam, mas não voam. Para quem não viu o premiado documentário francês, os pingüins possuem cantos que são únicos. Inicialmente, eles servem para atrair o "cônjuge". Depois, quando a fêmea sai para pescar e deixa o macho chocando o ovo, é o timbre da voz que vai ajudar os casais a se acharem novamente, mesmo no meio de centenas de outros pares. Na animação, eles chamam isso de "canção do coração". E o problema do Mano (Elijah Wood), o protagonista da história, é que ele não sabe cantar. E quando tenta, causa mais arrepios do que arranhar a lousa com a unha. Seu negócio é outro. Ele é bom mesmo é com os pés! Ninguém consegue sapatear como ele!

Sua mãe, Norma Jean (Nicole Kidman), não vê problema algum nisso. Já o pai, Mênfis (Hugh Jackman), acha um absurdo ter um filho daquele jeito. E assim pensam também os demais habitantes da colônia dos pingüins imperadores - aqueles com a penugem meio alaranjada na área do peito - incluindo aí o Ancião (Hugo Weaving). Sim, estamos falando aqui de um caso de discriminação e que pode servir para qualquer situação - desde a homossexualidade até a diferença de raças.

Infeliz com tudo isso, Mano sai dali. E no meio dos pingüins Adelie ele vai fazer amizade com um grupo bem mais divertido, que não se preocupa muito com o status da cantoria. Declaradamente inspirados nos latinos, os adelies são festeiros e adoram os passos do Mano. Ramon (Robin Williams) e seus amigos decidem ajudar o desafinado amigo a conquistar o coração da amada Glória (Britanny Murphy) e o respeito dos demais pingüins. Porém, o plano não sai muito bem como planejado e ele se joga em uma aventura ainda maior, que o coloca em contato com outros animais, inclusive o temido Homo sapiens.

E é nesse ponto que a história ganha um clima completamente diferente. Sai a tradicional trama de superação, amadurecimento e redenção para se mostrar o que os humanos estão fazendo com o mundo. Um plástico que não é corretamente jogado no lixo pode matar animais na sua rua ou do outro lado do mundo.

Mas tudo acontece rápido demais e esta reviravolta parece perdida no meio daquela história, que até então era bastante infantil. Mas a mudança ganha algum sentido quando se sabe que o diretor e roteirista aqui é George Miller, que tem no currículo Mad Max e Babe, dois filmes completamente diferentes e que provam a enorme versatilidade do cineasta australiano - quer você goste dela, ou não.

E é com esta fórmula maluca, que soma animação computadorizada de alta qualidade, humor, eco-avisos e números musicais à la Moulin Rouge (misturando músicas antigas com atuais em novas roupagens e usando tudo isso para ajudar a contar a história), que Happy Feet surpreendeu, e com a ajuda de um certo menino-bruxo inglês deixou para trás Cassino Royale, a nova aventura do agente 007, nas bilheterias estaunidenses.

Em alguns momentos, seus 98 minutos podem parecer mais longos que uma viagem à Antártida, mas o visual e dois pingüins dublados por Robbin Williams valem qualquer esforço.

Time



Nota: 7,5

As primeiras imagens de Time - O Amor contra a Passagem do Tempo são de uma cirurgia plástica, na linha "embrulha estômago" da série Nip/Tuck. O diretor coreano Kim Ki-duk não é nem um pouco sutil ao discutir a questão da busca pela aparência perfeita e tudo decorrente daí - o culto à imagem, o interior versus o exterior etc.

O filme versa sobre uma garota que faz uma operação para mudar seu rosto, já que acha que seu namorado está enjoado dela. Não avisa ninguém, some por seis meses, adquire nova identidade e vai (re)conquistar o amado. O estranho é que, com tanta "sutileza" oriental, o diretor consegue ser grosseiro, ou melhor, aproxima-se do didatismo das telenovelas. Em alguns momentos, no entanto, cria boas idéias, ao mostrar como, no desespero, procuramos o rosto do ser amado em qualquer pessoa, como não sabemos mais quem somos em certo ponto da relação.

Ki-duk fica, assim, apenas perto do seu tema de "autor": uma discussão sobre a passagem cíclica do tempo, o eterno retorno, a ausência e incompletude como fardos da vida.

Em Time, as mesmas questões vêm embutidas já no cerne. A superficialidade, o tempo que não corrige defeitos e a ilusão de ótica são coisas indissociáveis para quem procura no diretor a tal renovação que representa o cinema sul-coreano. Kim Ki-duk é a traseira da produção local, justamente a que mais desembarca no Brasil.

Ele é o diretor coreano mais conhecido no ocidente – o que não quer dizer que seja o melhor ou o mais original, apenas o que consegue maior aceitação por parte do público e também dos distribuidores e dos curadores dos grandes festivais - e parece ter recobrado um pouco a consciência, após o atentado à inteligência e ao bom senso com que ele danificou sua carreira: O Arco.

Realmente há de se considerar que ele não angaria a simpatia ou compreensão de parte da crítica desde sempre, o que faz com que alguns indiquem o filme O Arco como uma continuação natural de uma carreira desastrosa e enganadora. Não me estenderei, no momento, a respeito dessa controvérsia de opiniões, mas deixo claro que mantinha o diretor em alta estima até bem pouco tempo – dúvidas surgiram com Primavera, Verão..., e um terror se abateu sobre minha cabeça com a produção citada acima.

Temos agora à mão uma nova possibilidade de avaliar e tentar definir com mais segurança o diretor: Time - O amor contra a passagem do tempo . Temos? Mais ou menos. Kim Ki-Duk retoma muitas de suas repetições, estilos e símbolos nesse filme. Estão lá o conflito eterno - embora não ostensivo ou aparente – que faz da coreana uma civilização à parte quando comparada às outras da região, com seu comportamento anormalmente agressivo e expansivo em contraste com momentos de serenidade zen (país de formação cristã e budista é uma boa tentativa de explicação); o estilo de montagem com algumas pequenas elipses – trata o tempo de maneira particular -; o amor num eterno processo de tortura mesclado ao prazer e resoluções inusitadas se observadas por padrões “comuns” de compreensão. É mais ou menos isso. Time nos traz um diretor que se repete mas que tem algo a dizer.

Time fala de pessoas insatisfeitas consigo mesmas e, conseqüentemente, com sua relação amorosa, encontrando como possível solução para tais dilemas a transformação física, que traz a reboque, evidentemente, toda uma reestruturação psicológica – como se realmente acreditassem na sua transformação em outra pessoa. Evidencia as reações extremadas – explosões temperamentais, ciúme doentio e sem razão e a agressividade física de seus personagens, que se comportam durante todo o filme como dispostos, a qualquer momento, a cometer um suicídio ou um assassinato, por amor. E cria momentos de ações, que se aproximam de um modo budista de observar, de cercar, de não aparecer, mas com evidentes dicas de que alguma presença está de soslaio – momentos em que o filme quase se veste de aura espiritual.