19 janeiro 2007

Babel



Nota: 9

Ao receber, na última segunda-feira, o Globo de Ouro de melhor filme dramático das mãos do governator Arnold Schwarzenegger, o diretor de Babel, Alejandro Gonzáles Iñárritu, espetou: "Senhor governador, meus documentos estão em dia, eu juro!".

Nada bobo, o mexicano abarcou numa só frase tudo o que um discurso de agradecimento que se preze deve ter: bom humor, fundo político e um toque de provocação. Mas o alcance da tal frase não termina aí. Ela resume exemplarmente o tema da película e responde a uma pergunta velada que alguns dos espectadores da cerimônia certamente se fizeram. Radicado nos Estados Unidos há 11 anos, Iñárritu conhece melhor do que muita gente o que é ser alvo de preconceito — e transpõe essa experiência para a tela com maestria.

É justamente das idéias pré-concebidas que fazemos uns dos outros que falam as quatro histórias, espalhadas por três continentes e totalmente interconectadas, que compõem Babel. São crônicas de um mundo que, no discurso, tem cada vez menos fronteiras, mas que, na prática, está mais dividido do que nunca. O planeta em que vivem esses personagens não é o mesmo que os economistas retratam em suas teses. As situações criadas por Guillermo Arriaga (roteirista do filme que trabalhou com o diretor em todos os seus filmes e que atualmente briga para ser incluído nos créditos como autor) estão longe de ser fictícias. Elas aparecem nos jornais diariamente.

Atentados a turistas em países de fé islâmica e imigração ilegal são apenas dois dentre os muitos indícios de que o mundo pode até ser plano — como defende o colunista do jornal The New York Times Thomas Friedman no livro The World is Flat -, mas as pessoas definitivamente não são. Um dos mais perfeitos exemplos é dado pelo próprio Friedman em seu livro. Jovens universitários chineses engolem os ressentimentos causados por anos de guerra com o Japão e aprendem a falar a língua do antigo inimigo sem sotaque, para poder prestar os serviços de telemarketing que não atraem os vizinhos do país do sol nascente. Mais do que uma mera forma de sobrevivência, eles revelam que buscam a oportunidade de conhecer as empresas japonesas por dentro e, a partir do que aprenderem com elas, construir as suas próprias empresas. "Hoje vocês são os arquitetos e nós os tijolos. Mas estamos nos preparando para mudar de posição", afirma no livro o supervisor da operação chinesa.

E aí reside a raiz de todo o problema. Ninguém quer ser "tijolo" para sempre. Para dar cabo das próprias inseguranças, a solução parece ser reduzir a "ameaça" a meia dúzia de adjetivos, quase todos depreciativos, e atacar antes de ouvir. Mais uma vez, vários elementos de Babel comprovam o conhecimento de causa que seus autores têm do que é viver num mundo onde as fronteiras mais intransponíveis não são exatamente geográficas. O melhor deles é o diálogo entre as crianças estadunidenses e o sobrinho de sua babá (vivida pela excelente Adriana Barraza) quando chegam ao México, onde vão assistir a um casamento. "Minha mãe disse que o México é um lugar muito perigoso", diz o pequeno Mike. Em espanhol, Santiago (Gael García Bernal) responde: "É mesmo... está cheio de mexicanos".

O slogan do filme, "A tragédia é universal. Se quiser ser compreendido, escute", é a síntese perfeita. Escutar o outro é coisa que os personagens só fazem em momentos extremos, quando já não há outro recurso. Os pais dos meninos pastores no Marrocos só se dão conta que lhes deram responsabilidades demais e que não lhes prestaram a devida atenção quando é muito tarde. Susan (Cate Blanchett) entende o quão patético era o seu medo de beber a água desse mesmo Marrocos, quando luta contra a dor do tiro que tomou. Richard (Brad Pitt, em atuação memorável) percebe que nem toda ajuda é motivada por dinheiro numa das cenas mais lindas e sufocantes, a da saída do vilarejo. Amélia, a babá, vê que sua origem mexicana conta mais do que os 16 anos que passou na "América" quando uma série de decisões equivocadas a coloca numa situação em que suas palavras não valem nada.

Mas o brilhantismo de Iñárritu e Arriaga fica evidente na história de Chieko (Rinko Kikuchi), a adolescente que, de todos os personagens, é a mais capaz de compreender o mundo à sua volta, mesmo sem poder escutá-lo.

Babel (2006) chega para completar a trilogia iniciada há seis anos com Amores Brutos (2000) e 21 Gramas (2003). O título remete à Torre de Babel, uma referência bíblica à idéia de pessoas que falam línguas diferentes e não conseguem estabelecer comunicação entre si.

O roteirista Guillermo Arriaga, parceiro de Iñáritu também nos filmes anteriores, coloca a ação em quatro países diferentes (Marrocos, Estados Unidos, México e Japão) e, conseqüentemente, em quatro línguas distintas. O filme começa no deserto do Marrocos, onde um pai de família compra um rifle para proteger suas cabras dos chacais. Como trabalha fora, ele deixa a arma com seus dois filhos menores (os atores mirins estreantes Said Tarchani e Boubker Ait El Caid). Eles resolvem testar o limite de alcance do novo "brinquedo". O menor, que sabe atirar, mira em um ônibus que passa na distante estrada desértica. Nele estão viajando Susan (Cate Blanchett) e Richard (Brad Pitt). O tiro acerta a mulher na altura do ombro, provocando pânico dentro do ônibus.

Nos Estados Unidos, Amelia (Adriana Barraza), a babá que toma conta dos filhos de Richard, recebe um telefonema avisando que Susan está hospitalizada. Mexicana, Amelia mora ilegalmente nos Estados Unidos há 16 anos. Com medo de perder o casamento do seu filho, no México, ela resolve cruzar a fronteira levando as crianças com Santiago (Gael García Bernal), seu sobrinho.

Enquanto isso, a jovem surda-muda Chieko (Rinko Kikuchi) fica sabendo da tragédia que aconteceu na África através dos noticiários japoneses. Mas a sua ligação com os demais eventos só será mostrada com o desenrolar da trama.

Para alguns o filme pode parecer uma colcha de retalhos de impossíveis coincidências, com uma forte manipulação emocional. Mas isso não importa. O objetivo de Iñáritu é mostrar que neste mundo globalizado, as pessoas estão cada vez mais distantes. Falta uma verdadeira comunicação desprovida de preconceitos e desde o 11 de Setembro a paranóia se instaurou. Depois que Susan é atingida, os outros turistas do ônibus ficam desesperados, achando que estão na mira de um novo ataque terrorista. Os únicos sentimentos que a globalização parece ter propagado pelo mundo são a violência e o medo de se tornar mais uma vítima.

Para Iñáritu, a conseqüência disso tudo é o isolamento. Susan e Richard estão afastados um do outro. Eles não se perdoam por terem perdido um filho. Culpam um ao outro e a si mesmos. Amelia se isolou de sua família ao tentar uma vida melhor nos Estados Unidos. No Marrocos, é a falta de um adulto por perto que faz com que duas crianças utilizem uma arma de fogo como brinquedo.

E no Japão, onde existe uma enorme cobrança por sucesso, tudo o que se vê é a solidão. Yasujiro (o veterano e ótimo ator Koji Yokusho), o pai de Chieko, é um rico e bem sucedido empresário que na sua caminhada para o sucesso foi se isolando cada vez mais da família. As cenas mais marcantes e poéticas mostram Chieko dentro de uma discoteca barulhenta com luzes berrantes. Iñáritu alterna momentos de extremo silêncio com ensurdecedores silêncios, mostrando que mesmo em um lugar repleto de pessoas, a solidão pode ser a sua única companheira. Chega a provocar lágrimas.

O elenco está soberbo. Iñáritu sabe tirar o melhor de seus intérpretes. Veteranos, estrelas e estreantes desenvolvem seus personagens com idênticas camadas de profundidade, mesmo tendo diferentes níveis de exposições na tela. É gratificante observar que os meninos no Marrocos conseguem interpretações tão apaixonantes quanto os consagrados Brad Pitt e Cate Blanchett. Vale destacar ainda os trabalhos de Adriana Barraza (que merecia uma indicação ao Oscar) e da estreante Rinko Kikuchi, que mesmo sem falar usa toda a sua expressão e linguagem corporal para demonstrar seus sentimentos.

Do ponto de vista técnico, Iñáritu se cercou do melhor e o resultado final é um arroubo visual e sonoro. Rodrigo Prieto faz um excelente trabalho de fotografia. Com extrema competência, ele consegue mesclar os diferentes cenários sem deixar o contraste de cores entre a moderna cidade de Tóquio, o deserto do Marrocos e a pobreza do México se sobressaírem uns sobre os outros. A música de Gustavo Santaolalla (ganhador do Oscar por O Segredo de Brokeback Mountain) completa as cenas, surgindo hipnoticamente após longos silêncios.

Todo esse trabalho de excelência levou Iñáritu a ser premiado no festival de Cannes deste ano como Melhor Diretor. Sua narrativa imagética corrobora as mensagens sobre a solidão e a falta de comunicação. Mesmo com celulares, internet e satélites ainda não conseguimos transpor barreiras culturais e lingüísticas. A câmera de Iñáritu registra cada um desses momentos de perto, colada nos personagens como se buscasse uma solução. É a linguagem cinematográfica em todo o seu esplendor.