19 janeiro 2007

Dias Selvagens













Nota: 9

Não há amor para o cineasta chinês Wong Kar Wai que não seja uma mistura de arrebatamento, dependência ou sacrifício. Nessas formas, a paixão pode estar virando a esquina - e a Hong Kong dos anos 60, cheia de corredores compridos, passagens estreitas e cantos angulosos, serve muito bem ao enlevado imaginário do diretor de Felizes Juntos, Amor à Flor da Pele e 2046.

Já era assim no seu segundo longa-metragem, Dias Selvagens (A fei jing juen), de 1991. Os boleros em espanhol de Xavier Cugat que tocam em 2046 já acompanhavam em Dias Selvagens os desamores de Su Li Zhen, personagem de Maggie Cheung que retorna em outros filmes de Kar Wai. Até Tony Leung, presença constante na obra do diretor ao longo da década, surge no longa de 1991, mas só na cena final, como uma deixa lúdica para aquilo que virá.

Quer dizer então que Kar Wai faz há anos o mesmo filme? Bem... Nem tanto. É interessante assistir a Dias Selvagens para perceber como as obsessões do cineasta - o retrato das mulheres, das roupas, da Hong Kong de sua infância - se intensificaram com o tempo, esteticamente falando. Em 1991 seus modos eram mais contidos, sua poesia visual mais mínima, sua narrativa mais íntima e menos grandiloquente. Dependendo do gosto do espectador, era tudo muito melhor.

O que não muda é a maneira incomum como Kar Wai cria o filme na preparação do elenco. Ele não usa roteiros com diálogos definidos. Ao contrário, deixa os atores livres para imergir nos personagens e armar as situações a partir disso. O paradoxal é que essa abertura se traduz, dentro da tela, em um mundo de amores claustrofóbicos, onde as relações de dependência são mais fortes do que as vontades próprias.

Su Li Zhen já começa o filme apaixonando-se por Yuddy (Leslie Cheung), cena belíssima em que a fotografia enevoada, como num delírio, já demonstra a marca do esteta Kar Wai. Rapidamente, porém, Su Li Zhen percebe que o amor não é correspondido na mesma intensidade. A nova namorada de Yuddy, Mimi (Carina Lau), logo chega à mesma conclusão. O Don Juan que salta de romance em romance já antevê, de certo modo, o tipo galanteador que Leung viverá posteriormente, especialmente em 2046.

A diferença é que Yuddy tem um motivo um tanto edipiano para a sua indiferença em relação às mulheres. E ele precisa deixar a cidade para enfrentar o problema. Quem vê na antologia de Kar Wai uma simbologia sociopolítica, um frequente embate de liberdade e dependência entre Hong Kong e o resto do mundo, essencialmente a China (outro turbulento amor?), terá na trajetória de Yuddy um interessante ponto de discussão.

É como se Hong Kong, com seus corredores que parecem fechar-se em círculos, fosse um saciado fim em si mesmo. E o perigo (ou a verdade) estivesse somente do lado de fora. Dias Selvagens pode ser apenas o início da história desdobrada por Kar Wai em meia-dúzia de filmes nos anos seguintes, mas em 1991 alguns personagens já alcançavam sua verdade, ainda que fosse a mais melancólica delas.