31 janeiro 2006

Soy Cuba, o Mamute Siberiano



Nota: 7

O que importa em um documentário: a relevância do tema ou a maneira como é abordado? Há excelentes documentários que falam de banalidades, como O Fim e o Princípio. E tem aqueles que chamam a atenção pela grandiosidade de seus assuntos, uma corrida presidencial, a sociedade bélica dos EUA, as megacorporações, etc. É fato que muitos filmes do gênero são engolidos por seus objetos de estudo, tão interessantes que eclipsam todo o resto do discurso. Este é o caso de Soy Cuba - O Mamute Siberiano (2005).

O diretor Vicente Ferraz foi a Havana tentar reconstituir a fantástica história de Soy Cuba, de 1964, filme de propaganda da revolução cubana rodado pelo moscovita Mikhail Kalatozov (1903-1973). Soy Cuba tem alguns dos planos-seqüências mais espetaculares da história do cinema. E o iniciante Ferraz faz questão de justificar a escolha de seu objeto mostrando um desses planos logo no início.

A câmera do lendário diretor de fotografia Sergei Urusevsky (1908-1974) acompanha do alto do vão entre dois prédios um velório na rua, lá embaixo, como um formigueiro humano. O trilho da câmera entra por uma varanda, atravessa uma sala onde pessoas trabalham enrolando charutos, sai por outra janela, novamente na rua, seguindo do alto e rasando junto à procissão. Falando assim a operação de um travelling desses pode parecer banal, ainda mais diante dos processos computadorizados de hoje, mas contextualizada a coisa se torna fascinante.

Acontece que ninguém em Havana se lembra desse plano. Não se lembra nem da existência de Soy Cuba, filme em quatro episódios que mostra desde os turistas estadunidenses na época dos cassinos, prévia à revolução, até embates nas ruas de estudantes contra a polícia, no auge do descontentamento popular. Hoje, um dos atores principais tem dificuldade em lembrar dessas passagens célebres. Ferraz decide alterar seus objetivos. Quer, agora, mais do que reconstituir a história, entender porque o povo e até mesmo os técnicos que participaram das filmagens apagaram a superprodução cubano-soviética da memória.

É possível que o documentário se consumasse como um mero making-of do filme de 1964 se não fosse esse desvio de percurso. Ele exige que Ferraz passe a atentar não somente para o passado, mas para as condições sociopolíticas que levaram ao esquecimento. Isso porque a ilha da época era o paraíso e a paixão dos românticos engajados, em especial dos revolucionários da arte como Kalatozov e Urusevsky, mas hoje a pobreza e a irrelevância política demonstram que algo se perdeu no caminho. Não apenas de Soy Cuba, mas também da utopia comunista não sobrou nada.

Quer dizer, sobrou, em latas de rolos empoeiradas do ICAIC, Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos. É lá que o documentarista resgata outras tomadas formidáveis, como a cena do hotel, que sobe e desce pela área de lazer até submergir na piscina. Ferraz se "retira", sequer inclui uma narração em off, durante os minutos de reprodução do plano-sequência. Este é outro momento de reverência em que o objeto estudado engole seu observador, toma-lhe a narrativa.

Soy Cuba - O Mamute Siberiano (o subtítulo é uma referência a um crítico que chamou Kalatozov de "um mamute siberiano numa praia tropical") termina nesse misto de making-of e tratado social. Mas é bom que seja assim. O saldo fica equilibrado. Se chegasse a Havana determinado em esquadrinhar a História, se chegasse com uma pretensão desmedida de dono da verdade, o resultado poderia ser não só pedante como desastroso. Ferraz faz uma ótima reconstituição do período festivo dos anos 60 e ainda capta a Cuba de hoje sem palavras excessivas, só com o registro das ruas amarronzadas, dos prédios descascando, dos rostos das pessoas. É mais que suficiente, a mensagem fica subentendida.

Família Rodante



Nota: 8

Uma das cenas marcantes de Do Outro Lado da Lei (El Bonaerense, 2002), o primeiro filme do argentino Pablo Trapero a chegar comercialmente no Brasil, era o festejo do Réveillon dos policiais de Buenos Aires. A crise econômica da Argentina atingia toda a instituição, faltava dinheiro para comprar munição. Mas isso não impedia que os companheiros celebrassem com triste otimismo o ano que viria, bebendo, refestelando-se, dando tiros para o alto.

A maneira com que Trapero filma, com a câmera muito próxima a corpos e objetos, num close-up constante, tornava aquele ritual ainda mais agoniante, quase um rito de morte. A tristeza que existe por trás de um momento de felicidade, uma tristeza que se escava na epiderme das pessoas é o mote do seu filme mais recente. Família Rodante (2004) é melancolia do início ao fim.

A personificação dessa melancolia é Emilia (Graciana Chironi), matriarca de 84 anos de uma família farta. O filme abre com ela remexendo sua caixa de fotografias antigas. É o seu aniversário, comemoração com as amigas de tarde, os parentes à noite. Meio como um presente, ela recebe um telefonema de sua irmã, que ainda mora no interior em que nasceram. A notícia: haverá um casamento e todos em Buenos Aires estão convidados. A avó Emilia não quer saber de resmungos. Terão que caber todos os dez filhos e netos, mais o bisneto, numa camionete, mil quilômetros a caminho de Missiones, fronteira com o Brasil.

Missiones também é conhecido como o fim do mundo. Não fosse pelo show esdrúxulo que o White Stripes resolveu fazer recentemente por lá, permaneceria incólume nos mapas da região, cercado de estradas de terra, mata cerrada, luz e telefone escassos. Aliás, fora da capital, rios Uruguai e Paraná acima, o que se vê está longe da cenografia europeizada de Buenos Aires. Os próprios personagens, já entuchados no veículo balouçante, se ressentem de ter que passar calor e aperto fora de seu habitat natural.

Quatro gerações que sintetizam o painel da capital - espécie de microcosmo que funciona como metonímia (a parte pelo todo) da vida bonaerense - desfilam na tela. Há o adolescente que flerta com a prima, a garota de piercings, tatuagens e bebê no colo, o cunhado com sua câmera digital, o casal de casamento abalado, o menino que pega cães na estrada. São lições que Julio Cortazar (1914-1984) ensina desde 1959, com Os Prêmios, seu primeiro romance: a família de classe média é o resumo do estrato social.

O mestre da literatura paira como referência no ar, mas o road-movie de Trapero não tira sua força do texto, mas do uso calculado e eficiente do som e da câmera. Os já citados close-ups e, especialmente, a cacofonia (ruídos se acumulam enquanto tentamos entender o que se fala em cena) aproximam o filme de outro exemplar do novo cinema argentino, Pântano, o bom filme de estréia de Lucrecia Martel.

São os dois melhores diretores argentinos em atividade. Trapero e Martel dividem entre si o apego por histórias de personagens. Exercitam, mais do que isso, um cinema naturalista ao extremo, de diálogos enxutos, situações improvisadas e atores não-profissionais. Como em A Menina Santa, o elenco de Família Rodante parece não estar encenando, mas vivendo de fato a vida dos personagens. A começar por Emillia, a quem Trapero reserva carinho até a tomada final, contemplativa e lamuriosa como no início do filme. A diferença entre os dois diretores é que Martel não tem comiseração pelos personagens. A eles, Trapero reserva a melancolia.

Impulsidade



Nota: 8,5

Cena: personagem magro de moletom caminha em câmera lenta no meio de uma multidão como se estivesse sozinho; sente que não pertence àquele lugar, que não pertence a lugar algum, comoção anestésica reforçada pela bela canção melancólica de uma banda que toca na trilha e que pouca gente conhece.

A descrição acima cabe perfeitamente em qualquer filme independente feito nos EUA na última década e meia, a década de Sundance, festival que transformou losers e marginalizados em, se não heróis, ao menos protagonistas. Basta nomear. O personagem: o adolescente Justin Cobb, de dezessete anos. A multidão: o corredor do colégio. A trilha: canções especialmente compostas por Tim DeLaughter, do Polyphonic Spree. O filme: Impulsividade, ou melhor dizendo, já que o título original é inigualável, Thumbsucker, Chupa-dedão.

A história de formação de caráter, de passagem da adolescência à vida adulta, que não atende só a produções indies como a muitas narrativas modernas, é o motor do filme de estréia de Mike Mills, até então conhecido por dirigir vídeos musicais de Moby, Pulp e Air. Clipes são a especialidade de Mills, e o clichê câmera lenta/trilha sonora nasceu nesse meio. O caso é saber se o diretor tem algo a dizer além dos floreios de estilo. Como a base da história é o livro homônimo de Walter Kirn, ele encontra algo, sim, que vale a pena narrar.

A grande força por trás do texto de Kirn é o fato dele inserir a formação do caráter em um microcosmos muito bem definido: a sociedade materialista dos EUA. É nesse ambiente em que todos precisam de um vício para sobreviver - vício em remédios, vício em ilícitos, vício em causas nobres, vício em sucesso, vício em competição - que o frágil Justin (Lou Taylor Pucci) tenta encontrar o seu, mas um vício que a sociedade legitime. Porque ser viciado em chupar o dedo não é um vício digno, é uma anomalia, uma sem-vergonhice.

Até mesmo os vícios de seus pais são legítimos. Mike (Vincent D'Onofrio) é adicto em sonhos interrompidos - fraturou o joelho, teve que largar a carreira juvenil esportiva, hoje é só uma sombra ressentida. Audrey (Tilda Swinton) tem sua coleção de sonhos irrealizáveis - sua ambição atual é virar enfermeira da clínica de reabilitação para onde foi encaminhado um astro da TV. Nenhum dos dois é julgado ou punido por isso. Tanto que fazem questão que o filho Justin não os chame de pai e mãe, mas de Mike e Audrey, como se isso adiasse a autocrítica, a chegada da maturidade, da velhice, desculpasse os vícios ao infinito, enfim, suspendesse a responsabilidade de rever a vida antes de morrer.

Justin pena para livrar-se de seu vício anormal. Essa coisa de chupar o dedo escondido precisa parar. A mania tem raízes evidentes em algum trauma psicológico, dizem. A ação, filosofa o dentista de Justin, Perry (Keanu Reeves), remete ao ato da amamentação. O seio materno, esse ninho quente que protege do mundo, seria a resposta às dificuldades que a vida impõe. Medo do fracasso? Medo de garotas? Nem Justin sabe direito a razão, mas o fato é que só cessará de chupar o dedo quando encontrar outro vício para substituí-lo. Impulsividade fala, basicamente, dessa substituição, e de como ela pode ou não preencher o espírito errante das pessoas.

Falando assim, parece uma aula profundíssima sobre a psique humana (e de certo modo é), mas o diretor Mills espertamente quebra a sisudez com humor. Não pode ser nada além de uma gozação a decisão de escalar Keanu Reeves para o papel do guru e Vince Vaughn (Penetras Bons de Bico) para o lugar do professor do colégio. A boa notícia é que os alívios cômicos não sabotam a parte séria da narrativa. Isso acontece, em especial, pelas atuações compenetradas da tríade de protagonistas.

D'Onofrio (atualmente conhecido pela telessérie Law & Order) e Tilda Swinton (A Feiticeira Branca de Narnia) são sempre ótimos, mas o destaque mesmo é Lou Taylor Pucci. Como Mike Mills, o ator é estreante na prática (ele já havia feito uma ponta discreta em O Tempo de Cada Um). É enorme a versatilidade de Pucci para viver ora um Justin chupador de dedão, inseguro, ora um Justin campeão, superior, novamente um Justin em dúvida, em seguida um Justin redimido. O plano que fecha o filme, novamente o chavão da câmera lenta/trilha sonora, não chega a incomodar, porque é Pucci quem está lá. Esta história de formação não seria a mesma sem ele.

17 janeiro 2006

A Passagem



Nota: 7,5

O tempo se impõe, hoje, como a questão principal da ficção cinematográfica americana, assim como o diretor francês Alain Resnais surge como sua influência maior: o que o tempo é, como nos escapa, qual o grau de subjetividade de sua apreensão - são questões que aparecem nos roteiros do badalado Charlie Kaufman e também no desse A Passagem. Isso deriva de hábitos que esses roteiros vêm cultivando, como a resistência freqüente à organização cronológica linear dos acontecimentos. Mas a escola americana parece questionar a própria realidade das coisas -seria o mundo mera aparência, mera ilusão?

Em Kaufman isso vem associado, em Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, à tecnologia e à virtualidade, à qual Benioff passa ao largo. A ficção se produz no instante entre a vida e a morte. Qual é o tempo dessa passagem? O que está implicado nela? Com a evolução da trama, nós, espectadores, nos vemos num emaranhado de identificações possíveis, nunca certas. Navegamos numa história que nos carrega sem saber para onde. Essa deliciosa sensação é estancada no final, quando tudo se explica - o que é uma pena.

No espaço entre o desejo e o medo, entre realidade e ilusão, entre a vida e a morte, encontramos todo um mundo alternativo que ganha vida no instigante suspense A Passagem. Do elogiado diretor dos premiados A Última Ceia e Em Busca da Terra do Nunca, Marc Forster, chega essa fascinante história (que se perde no final) que mergulha sob a superfície da vida comum para levar um homem num redemoinho através dos mistérios da identidade, dos sonhos e do próprio tecido de nossa existência.

O filme parece a princípio se tratar da história cheia de suspense sobre o dedicado psiquiatra nova-iorquino Sam Foster (Ewan McGregor) e sua tentativa desesperada de impedir que Henry Letham (Ryan Gosling), um jovem e incomum paciente, cheio de segredos (que ele acaba por tratar), acabe cometendo suicídio na noite de seu 21º aniversário. Mas por detrás dessa premissa básica de A Passagem temos um mistério ainda mais surreal e perturbador quando a chocante realidade dessa investigação começa a alterar a vida de Sam. Quando Sam se aprofunda mais e mais na vida de Henry - e portanto no labirinto de seu subconsciente – o que ocorre de início é um pouco de tensão em seu relacionamento com sua namorada Lila (Naomi Watts), que é artista e foi ex-paciente sua.

Mas logo a ligação intensa de Sam com seu mundo racional começa se dissolver. Tendo de enfrentar uma série de encontros cada vez mais surreais numa paisagem onírica, que parece estar sempre se transformando cada vez mais, Sam não consegue mais separar o que é verdade e o que está acontecendo em sua imaginação, nem onde ele começa e Henry acaba. Então, quem é Letham e por que ele está partindo a realidade de Sam tão profundamente? À medida que crescem o número de pistas e o suspense, quando a história se encaminha para seu clímax na ponte do Brooklyn, tanto Sam – como a platéia – terão de lidar com perguntas reveladoras sobre a percepção, a consciência, o perdão e os momentos finais de redenção. Já que rapidamente se torna claro que o que está acontecendo entre Sam e Henry não se passa neste mundo, mas naquele estado entre a vida e a morte... um local onde só se pode ficar de passagem.

Como este é um filme que só se explica pela cena final, fica meio difícil mesmo entrar em detalhes sobre ele sob pena de depois ficarem reclamando que eu estrago o prazer de ver um filme. E não vou fazer isso , porque eu fui envolvido pela história, que fui acompanhando com curiosidade, sem entender alguns detalhes. Mas tudo era tão bem feito, com um visual tão interessante que não me perturbou (há uma utilização de imagens digitais muito interessantes, particularmente ao final). Na verdade, a ambientação da fita é notável, utilizando uma arquitetura desconhecida de Nova York (por exemplo, a cena dos degraus da escadaria em espiral foi na Catedral de St. John). Com imagens impressionantes e que vão dando um clima ao filme, que nos deixa sempre na ponta da cadeira.O que está acontecendo mesmo?

2046



Nota: 8

2046: o número de um quarto de hotel; o ano que guarda memórias perdidas e em que tudo permanecerá intocado; um filme de Wong Kar-wai... 2046: dele não é possível voltar e a ele só se chega por meio de um trem especial. 2046: ano que marcará o fim do período de 49 anos de auto-regulação imposto pela Inglaterra para a devolução de Hong Kong à China (em julho de 1997). Data em que a liberdade política e econômica da antiga colônia britânica chegará ao fim.

Visto pelo significado histórico do número que dá origem ao título, o novo filme do cineasta se torna ainda mais pungente e melancólico. Fica também mais difícil afastar a associação quase óbvia das sensações que ele provoca aos sabores agridoces de um bom prato da culinária chinesa tradicional. Amargo e ligeiramente doce, como a saudade que Kar-wai já sente do país em que nasceu e que vê, pouco a pouco, desaparecer.

Como um marido às portas da viuvez, sentado no leito de morte da amada, o diretor recupera as memórias que estarão perdidas quando o fatídico ano chegar. Em sua contagem regressiva, retorna aos anos 60 de sua infância, onde reencontra Mr. Chow , o protagonista de sua última obra, Amor à Flor da Pele (In the Mood for Love, 2000). Para reproduzir a maneira que via o mundo naquela época, posiciona a câmera na mesma altura de um menino de 8 anos, o que talvez explique o encantamento que se renova a cada quadro.

O personagem, interpretado magistralmente por Tony Leung Chiu-wai , é um jornalista que vive um amor platônico com a vizinha para, tempos depois, descobrir que o marido dela é também o amante de sua mulher. Aquele homem assolado pela traição e pela impossibilidade do amor verdadeiro já não marca presença nas cenas deste novo filme. Trocou a angústia dos desejos não consumados pelo jogo, pela bebida e pelo amor fugaz das concubinas, dançarinas e prostitutas que perfumam os salões onde ele agora passa as suas noites.

Ele tem agora uma nova ocupação: trocou as notícias por livros baratos de ficção — de onde vêm os muitos saltos no tempo que marcam esta história. 2046 é também o nome do romance futurista que Chow escreve, auxiliado pela filha do proprietário do hotel onde mora. As personagens são inspiradas em suas amantes e as projeções que faz da realidade trazem, nas entrelinhas, o lamento de Kar-wai pelo que está por vir.

Neste futuro imaginado, fala-se japonês. O país cuja sanha conquistadora tanto oprimiu Hong Kong impôs-se não apenas em seu idioma, mas também na estética: roupas, rostos e ambientes remetem à estética dos animês. A fragilidade escondida na beleza altiva das mulheres dos anos 60 — com seus cheongmais (vestidos tradicionais chineses) bordados, altíssimos sapatos de salto agulha e unhas pintadas de vermelho vivo — deu lugar à frieza e aos olhares embotados de garotas-andróides, cujos vestidos são marcados por trapos sobrepostos. E, surpreendentemente, o que um homem pode fazer de mais terrível a uma mulher é por ela se apaixonar.

Não cabe destacar aqui o desenvolvimento do enredo, nem mesmo apontar algumas de suas muitas cenas memoráveis. Em 2046, o apuro estético, a intensidade das cores, a perfeição da trilha sonora e a atitude contemplativa dos personagens retornam ainda melhores do que em Amor à Flor da Pele . O fascínio do diretor pela beleza feminina fica mais evidente e a paixão com que as vê se transfere de maneira inevitável para os olhos do espectador.

O déjà vu incomoda porque embaralha realidade e imaginação. Já passamos por aquilo ou tudo não passa de truque da mente? Ainda que não seja a questão principal de 2046, a sensação norteia este novo filme de Wong Kar-wai.

Claro, não poderia ser diferente, já que se trata da continuação de Amor à Flor da Pele, ao acompanhar o sr. Chow após sua decepção amorosa com a vizinha. Um certo mal-estar emana deste triste 2046, porque encontraremos um personagem mudado. É o mesmo cenário saudosista da Hong Kong dos anos 60, mas aqui não há amor. O negócio é sexo sem delongas.

Se a imagem fixada era a do homem honrado, tímido e rejeitado, agora Chow ostenta um espírito safado e quer mais é fazer transitar o maior número de mulheres em sua cama. 2046 mostra quatro envolvimentos fugazes desse jornalista free-lancer que escreve um romance, também 2046. Na história dentro da história, o número é uma data/lugar/estado de espírito em que as pessoas vão para recapturar memórias perdidas. Lá, nada muda. 2046 é ainda o último ano do período estipulado pela China a Hong Kong em que tudo na ex-colônia deve permanecer inalterado. É, por fim, o número do quarto de hotel de Amor à Flor da Pele onde Chow encontrava sua vizinha.

Kar-wai lida, portanto, com a questão do tempo e da memória. Não vem ao caso comparações com Alain Resnais. Mais do que cinema de autor, o diretor oriental cria filmes para culto. Permite-se, em 2046, o uso de maneirismos, ainda mais gratuitos -planos fragmentados em velocidades diferentes, música nostálgica etc.

O déjà vu surge ainda porque Kar-wai lida basicamente com os mesmos temas e personagens em sua obra. Uma das mulheres por quem Chow se interessa é a filha do dono do hotel, interpretada pela mesma Faye Wong que, em Amores Expressos, atiçava a curiosidade do policial feito por Leung. É como se buscasse explicitar a idéia de que temos diferentes encarnações ao longo da vida.

O interesse se mantém pela poesia pueril com que entrelaça seu balé de desencontros amorosos. Na trama dentro da trama, temos andróides com emoções atrasadas. Se algum deles deseja chorar, a lágrima só cairá no dia seguinte.

2046 é história sobre fantasmas, a começar por Chow, que não se livra do fantasma da mulher perfeita. Assim, Kar-wai transmite a sensação surreal que é a rejeição de um amante. Esperamos pelas gentilezas e sorrisos do passado, mas apenas encontramos um ser transformado. O corpo é o mesmo, mas algo ali, na essência, se perdeu. 2046 é como o ex-amante que retorna, não melhor ou pior, apenas sem o frescor da novidade e o poder da ilusão.

Soldado Anônimo



Nota: 8,5

"Guerras são todas iguais, guerras são todas diferentes." É a conclusão a que chega o marine Anthony Swofford (Jake Gyllenhaal) quando retorna aos EUA depois de meses no desértico Oriente Médio. É uma conclusão contraditória, sim, mas que faz todo sentido a certa altura de Soldado Anônimo (Jarhead, 2005), filme sobre a Guerra do Golfo de 1991 baseado nas memórias do Swofford real.

Na cena em questão, o combatente passeia em ônibus pelas ruas da "América", o povo saudando o retorno de seus filhos, a liberdade do Kuwait, a derrota do iraquiano Saddam Hussein, o sucesso da campanha Tespestade no Deserto - que consolidou o termo "guerra videogame", em que a tecnologia de jatos e lança-mísseis fez todo o trabalho braçal das tropas. É o desfile dos vencedores, como sempre, pois guerras são todas iguais. Mas dentro do ônibus Swofford vê entrar um veterano do Vietnã, emocionado em saudar os novos e vitoriosos marines. Está impresso no rosto débil e torto do veterano, na sua fala desconexa, que o Vietnã foi um trauma de verdade. Guerras não são todas iguais.

Ou são? O início do filme dirigido por Sam Mendes (Beleza Americana, Estrada Para a Perdição) remete ao começo de um clássico sobre o Vietnã, Nascido para Matar (1987), de Stanley Kubrick (1928-1999). Ambos dão a largada na narrativa a partir dos quartéis e da preparação "de macho" que é feita ali - começando pela tosa no barbeiro e pelo clássico juramento do fuzil ( "Este é o meu fuzil, existem muitos iguais mas este é único, yadda yadda..."). Swofford, como o cadete Joker de Matthew Modine em 87, participa dessa catequese com cinismo. Porém, a pressão de um superior intransigente - o caricato R. Lee Ermey naquele tempo, o estiloso Jamie Foxx (Ray) aqui - não demora a dobrar a resistência intelectualóide do novato. Nos dois filmes, a fase do treinamento termina com uma morte imprevista - recurso narrativo que marca o fim da inocência.

E lá vão Swofford e os demais jarheads - apelido dos recos dos EUA, devido ao corte ralo de cabelo - para alguns dias de marchas triunfantes sobre o inimigo. Ao menos é o que eles imaginam. As coincidências com o Vietnã (e com Kubrick) param aí. O agrupamento do qual Swofford faz parte é encarregado de proteger poços de petróleo na Arábia Saudita. Correria ininterrupta? Munições descarregadas aos quilos? Nada disso. O primeiro beduíno barbudo, preocupado com a morte de um camelo, só aparece depois uma hora e tanto de película. E nem sinal do Sodoma Insano do Iraque, como o sargento interpretado por Foxx apelidou o ditador Hussein.

Soldado Anônimo é um trabalho cheio de referências alheias, desde o pôster que remete a M.A.S.H. (o filme de Robert Altman também empresta a Mendes o pendor para o teatro do absurdo) até a emblemática exibição de Apocalypse Now no cinema do quartel. Outra influência, provavelmente involuntária, é o israelense O Dia do Perdão (2000), um dos melhores filmes de guerra dos últimos anos.

O trabalho do cineasta Amos Gitai trata o campo de batalha não como um palco de táticas magistrais, explosões e atiradores de mira certeira, mas como um fardo onde não há heroísmos, só a liturgia de patrulhar, avançar, recuar, recolher corpos. Em Soldado Anônimo também é assim, uma rotina infinita de cavar trincheiras contra um inimigo que não se vê. Aliás, no caso da "guerra videogame", não há sequer oportunidade para o confronto. Limpar fuzis e se masturbar, diz Swofford, são as duas maneiras de manter a sanidade quando a estadia no deserto ultrapassa semanas.

Não é difícil prever, então, porque o filme de guerra do eclético inglês Mendes - que ainda se mostra literal demais, solene demais, como em Estrada Para a Perdição - não foi bem nas bilheterias nos Estados Unidos. A platéia quer sangue, quer ouvir os helicópteros cavalgando com as Valquírias! E aqui não há óperas, ainda que o diretor amontoe a trilha sonora com T.Rex, Nirvana, Tom Waits, Public Enemy...

Guerras podem ser muito diferentes umas das outras, afinal. Saraivadas aéreas de napalm são uma espécie de espetáculo audiovisual que não cabe desta vez. O que há em Soldado Anônimo é a sensação esquisita de sentar-se sozinho ao lado de um corpo carbonizado, de uma morte sem marcas, sem sangue e sem grito, e ver-se refletido ali.

Valiant



Nota: 3

Com o sucesso avassalador das produções animadas desenvolvidas através de computação gráfica, os filmes de médio orçamento do gênero não demoraram a aparecer. Não por acaso, os próprios responsáveis pelos campeões de bilheteria também investem seu conhecimento - e dinheiro - nessa nova safra, mais barata, de animações.

Com um orçamento de 40 milhões de dólares (enorme para os padrões brasileiros, mas apenas mediano aos olhos de Hollywood), o curto Valiant - com apenas 76 minutos - foi co-produzido por John H. Williams, o produtor de Shrek, e levou dois anos para ser feito por uma equipe de 170 animadores. Mesmo com "baixo orçamento" a equipe é enorme, mas deixa a desejar.

O resultado decepcionou nas bilheterias estadunidenses, mas também pudera, o filme é infinitamente inferior a grande maioria dos desenhos que são lançados atualmente. Criou-se um bom padrão de cinema nos desenhos infantis, com bons roteiros e enredos, e filmes que insistem em criar historinhas bestas apenas para animar as férias (como é o caso de Xuxa, por exemplo), não costumam agradar ao gosto, já apurado, dos pequenos. Valiant é uma exaltação aos aliados (como a maioria dos filmes dos EUA) na 2ª GM, e a sua destemida sagacidade e inteligência. O filme se define mais ou menos como: nós, os espertos ingleses, que derrubamos, os burros nazistas.

A trama é baseada em uma história real da Segunda Guerra Mundial. No conflito, os britânicos usavam pombos treinados para manter contato com a resistência francesa. As aves, porém, eram caçadas por falcões dos nazistas. Valiant conta a história a partir do ponto de vista das aves.

O pequeno pombo inglês Valiant (valente, em inglês - voz de Ewan McGregor no original) sonha em integrar o correio aéreo real e se juntar aos penosos que levam mensagens aos territórios ocupados pelos nazistas. Destemido, é aceito nas fileiras dos heróicos pombos depois que esquadrões inteiros dos animais são atacados e destruídos pelo grupo do Barão Von Falcão (Tim Curry), uma ave nazista que caça os mensageiros alados ao longo do Canal da Mancha. Ao concluir seu treinamento, no entanto, Valiant enfrenta logo de início uma missão tão perigosa e importante que poderá ajudar a definir os rumos da Segunda Guerra.

O insucesso do filme nos cinemas dos Estados Unidos pode ser facilmente explicado... uma história para crianças estrelada por heróis britânicos e que requer certo grau de conhecimento sobre o maior conflito da história da humanidade não é exatamente uma mina de ouro num país que refilma boas histórias criadas na terra da rainha (a excelente telessérie The Office, por exemplo). O humor britânico também é muito diferente do hollywoodiano e, apesar de pouco presente na animação, é suficientemente sutil para passar despercebido aos olhos ianques. Valiant até faz um esforcinho para colocar alguma piadinhas escatológicas na história (provavelmente uma concessão do diretor Gary Chapman aos produtores), mas elas não são suficientemente freqüentes para manter a molecada interessada. Afinal, trata-se de um filme que se passa na Segunda Guerra Mundial e isso, para quem acha que Buenos Aires é a capital do Brasil, deve parecer trabalho chato de História, não diversão de fim de semana.

O filme é menor, mas o design é particularmente interessante. O contraste da Inglaterra livre com a França ocupada pelos nazistas e o quartel general dos falcões (um bunker sob um canhão que faz parte da impenetrável Muralha do Atlântico) é bem trabalhado, assim como o desenho dos personagens principais. A suástica nazista não aparece em lugar algum, provavelmente por ser um símbolo considerado forte demais para um filme infantil, mas eles não são necessários para o entendimento de quem são aquelas aves ameaçadoras. A roupa engomadinha já dá o tom (e algumas das piadas mais divertidas da aventura, como a preferência de um dos nazis por capas cor-de-rosa).

07 janeiro 2006

Apenas um Beijo



Nota: 8

Quantas vezes a mesma história pode ser contada sem se tornar repetitiva? Se o contador for bom, tal limite não existe. A prova disso é Apenas um Beijo (Ae Fond Kiss, 2004), roteirizado por Paul Laverty e que completa a "trilogia escocesa" que o diretor Ken Loach começou com My Name is Joe (1998) e continuou em Sweet Sixteen (2002). A trama mostra um filho de imigrantes paquistaneses que vive em Glasgow (Escócia) e se apaixona pela professora de música de sua irmã caçula. Não bastasse a moça ser goree (branca), não muçulmana, ele está prometido para se casar com uma prima prestes a chegar ao Reino Unido.

Sim, temos aqui a clássica história do amor proibido, cujos personagens mais famosos são Romeu e Julieta. Mas o filme não é um drama no sentido mais shakespeariano da palavra e não há disputas diretas entre as famílias envolvidas. O choque aqui é de gerações e também de diferenças culturais e religiosas entre muçulmanos e católicos.

Enquanto Casim Khan (Atta Yaqub) tenta se livrar do casamento arranjado para viver o verdadeiro amor, sua irmã Rukhsana (Ghizala Avan) quer sair de casa para cursar jornalismo na Universidade de Edimburgo. Ao se mostrarem descontentes com os planos pré-determinados pelos pais, os dois estão envergonhando a família perante a sociedade muçulmana.

Mas engana-se quem pensa que as duras regras e o preconceito são exclusividade dos orientais. Para manter seu emprego na escola católica, Roisin (Eva Birthistle) tem que conseguir a assinatura do padre de sua paróquia. Mas ele sabe que ela está "vivendo no pecado" e braveja que sua aprovação só será dada quando ela pedir o divórcio à igreja, se casar novamente e prometer criar seus filhos seguindo os moldes cristãos.

Como se pode imaginar, Roisin e Casim terão muito o que discutir e é nisso que o veterano Ken Loach se destaca. O diretor tem um ótimo faro para descobrir atores desconhecidos ou até mesmo não-atores e tirar deles emoções reais. Ele procura sempre por pessoas que tenham passado por situações semelhantes em suas vidas e pede para que eles demonstrem esta experiência. Esta forma de não-atuação dá ao filme o realismo que o assunto pede.

Além de explorar as diferenças e apontar os pontos fracos dos dois lados, Loach mostra em segundo plano os motivos político e históricos da formação do Paquistão e uma sociedade em transformação. Enquanto a irmã mais velha de Casim aceitou pacientemente as escolhas tomadas por ela, e a caçula briga pela sua independência, Casim fica perdido. Ele ama sua família e não quer magoá-los, muito menos envergonhá-los, mas será que não há mesmo outra forma de viver sem ter que abrir mão do seu amor?

Uma curiosidade: o poema "Ae Fond Kiss" que dá o título original ao filme foi escrito pelo Robert Burns (1759-1796), conhecido por escrever em "escocês", misturando palavras gaélicas, com o inglês e a forma bastante particular com que os escoceses falam.