31 janeiro 2006

Família Rodante



Nota: 8

Uma das cenas marcantes de Do Outro Lado da Lei (El Bonaerense, 2002), o primeiro filme do argentino Pablo Trapero a chegar comercialmente no Brasil, era o festejo do Réveillon dos policiais de Buenos Aires. A crise econômica da Argentina atingia toda a instituição, faltava dinheiro para comprar munição. Mas isso não impedia que os companheiros celebrassem com triste otimismo o ano que viria, bebendo, refestelando-se, dando tiros para o alto.

A maneira com que Trapero filma, com a câmera muito próxima a corpos e objetos, num close-up constante, tornava aquele ritual ainda mais agoniante, quase um rito de morte. A tristeza que existe por trás de um momento de felicidade, uma tristeza que se escava na epiderme das pessoas é o mote do seu filme mais recente. Família Rodante (2004) é melancolia do início ao fim.

A personificação dessa melancolia é Emilia (Graciana Chironi), matriarca de 84 anos de uma família farta. O filme abre com ela remexendo sua caixa de fotografias antigas. É o seu aniversário, comemoração com as amigas de tarde, os parentes à noite. Meio como um presente, ela recebe um telefonema de sua irmã, que ainda mora no interior em que nasceram. A notícia: haverá um casamento e todos em Buenos Aires estão convidados. A avó Emilia não quer saber de resmungos. Terão que caber todos os dez filhos e netos, mais o bisneto, numa camionete, mil quilômetros a caminho de Missiones, fronteira com o Brasil.

Missiones também é conhecido como o fim do mundo. Não fosse pelo show esdrúxulo que o White Stripes resolveu fazer recentemente por lá, permaneceria incólume nos mapas da região, cercado de estradas de terra, mata cerrada, luz e telefone escassos. Aliás, fora da capital, rios Uruguai e Paraná acima, o que se vê está longe da cenografia europeizada de Buenos Aires. Os próprios personagens, já entuchados no veículo balouçante, se ressentem de ter que passar calor e aperto fora de seu habitat natural.

Quatro gerações que sintetizam o painel da capital - espécie de microcosmo que funciona como metonímia (a parte pelo todo) da vida bonaerense - desfilam na tela. Há o adolescente que flerta com a prima, a garota de piercings, tatuagens e bebê no colo, o cunhado com sua câmera digital, o casal de casamento abalado, o menino que pega cães na estrada. São lições que Julio Cortazar (1914-1984) ensina desde 1959, com Os Prêmios, seu primeiro romance: a família de classe média é o resumo do estrato social.

O mestre da literatura paira como referência no ar, mas o road-movie de Trapero não tira sua força do texto, mas do uso calculado e eficiente do som e da câmera. Os já citados close-ups e, especialmente, a cacofonia (ruídos se acumulam enquanto tentamos entender o que se fala em cena) aproximam o filme de outro exemplar do novo cinema argentino, Pântano, o bom filme de estréia de Lucrecia Martel.

São os dois melhores diretores argentinos em atividade. Trapero e Martel dividem entre si o apego por histórias de personagens. Exercitam, mais do que isso, um cinema naturalista ao extremo, de diálogos enxutos, situações improvisadas e atores não-profissionais. Como em A Menina Santa, o elenco de Família Rodante parece não estar encenando, mas vivendo de fato a vida dos personagens. A começar por Emillia, a quem Trapero reserva carinho até a tomada final, contemplativa e lamuriosa como no início do filme. A diferença entre os dois diretores é que Martel não tem comiseração pelos personagens. A eles, Trapero reserva a melancolia.