Soldado Anônimo
Nota: 8,5
"Guerras são todas iguais, guerras são todas diferentes." É a conclusão a que chega o marine Anthony Swofford (Jake Gyllenhaal) quando retorna aos EUA depois de meses no desértico Oriente Médio. É uma conclusão contraditória, sim, mas que faz todo sentido a certa altura de Soldado Anônimo (Jarhead, 2005), filme sobre a Guerra do Golfo de 1991 baseado nas memórias do Swofford real.
Na cena em questão, o combatente passeia em ônibus pelas ruas da "América", o povo saudando o retorno de seus filhos, a liberdade do Kuwait, a derrota do iraquiano Saddam Hussein, o sucesso da campanha Tespestade no Deserto - que consolidou o termo "guerra videogame", em que a tecnologia de jatos e lança-mísseis fez todo o trabalho braçal das tropas. É o desfile dos vencedores, como sempre, pois guerras são todas iguais. Mas dentro do ônibus Swofford vê entrar um veterano do Vietnã, emocionado em saudar os novos e vitoriosos marines. Está impresso no rosto débil e torto do veterano, na sua fala desconexa, que o Vietnã foi um trauma de verdade. Guerras não são todas iguais.
Ou são? O início do filme dirigido por Sam Mendes (Beleza Americana, Estrada Para a Perdição) remete ao começo de um clássico sobre o Vietnã, Nascido para Matar (1987), de Stanley Kubrick (1928-1999). Ambos dão a largada na narrativa a partir dos quartéis e da preparação "de macho" que é feita ali - começando pela tosa no barbeiro e pelo clássico juramento do fuzil ( "Este é o meu fuzil, existem muitos iguais mas este é único, yadda yadda..."). Swofford, como o cadete Joker de Matthew Modine em 87, participa dessa catequese com cinismo. Porém, a pressão de um superior intransigente - o caricato R. Lee Ermey naquele tempo, o estiloso Jamie Foxx (Ray) aqui - não demora a dobrar a resistência intelectualóide do novato. Nos dois filmes, a fase do treinamento termina com uma morte imprevista - recurso narrativo que marca o fim da inocência.
E lá vão Swofford e os demais jarheads - apelido dos recos dos EUA, devido ao corte ralo de cabelo - para alguns dias de marchas triunfantes sobre o inimigo. Ao menos é o que eles imaginam. As coincidências com o Vietnã (e com Kubrick) param aí. O agrupamento do qual Swofford faz parte é encarregado de proteger poços de petróleo na Arábia Saudita. Correria ininterrupta? Munições descarregadas aos quilos? Nada disso. O primeiro beduíno barbudo, preocupado com a morte de um camelo, só aparece depois uma hora e tanto de película. E nem sinal do Sodoma Insano do Iraque, como o sargento interpretado por Foxx apelidou o ditador Hussein.
Soldado Anônimo é um trabalho cheio de referências alheias, desde o pôster que remete a M.A.S.H. (o filme de Robert Altman também empresta a Mendes o pendor para o teatro do absurdo) até a emblemática exibição de Apocalypse Now no cinema do quartel. Outra influência, provavelmente involuntária, é o israelense O Dia do Perdão (2000), um dos melhores filmes de guerra dos últimos anos.
O trabalho do cineasta Amos Gitai trata o campo de batalha não como um palco de táticas magistrais, explosões e atiradores de mira certeira, mas como um fardo onde não há heroísmos, só a liturgia de patrulhar, avançar, recuar, recolher corpos. Em Soldado Anônimo também é assim, uma rotina infinita de cavar trincheiras contra um inimigo que não se vê. Aliás, no caso da "guerra videogame", não há sequer oportunidade para o confronto. Limpar fuzis e se masturbar, diz Swofford, são as duas maneiras de manter a sanidade quando a estadia no deserto ultrapassa semanas.
Não é difícil prever, então, porque o filme de guerra do eclético inglês Mendes - que ainda se mostra literal demais, solene demais, como em Estrada Para a Perdição - não foi bem nas bilheterias nos Estados Unidos. A platéia quer sangue, quer ouvir os helicópteros cavalgando com as Valquírias! E aqui não há óperas, ainda que o diretor amontoe a trilha sonora com T.Rex, Nirvana, Tom Waits, Public Enemy...
Guerras podem ser muito diferentes umas das outras, afinal. Saraivadas aéreas de napalm são uma espécie de espetáculo audiovisual que não cabe desta vez. O que há em Soldado Anônimo é a sensação esquisita de sentar-se sozinho ao lado de um corpo carbonizado, de uma morte sem marcas, sem sangue e sem grito, e ver-se refletido ali.
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