17 janeiro 2006

A Passagem



Nota: 7,5

O tempo se impõe, hoje, como a questão principal da ficção cinematográfica americana, assim como o diretor francês Alain Resnais surge como sua influência maior: o que o tempo é, como nos escapa, qual o grau de subjetividade de sua apreensão - são questões que aparecem nos roteiros do badalado Charlie Kaufman e também no desse A Passagem. Isso deriva de hábitos que esses roteiros vêm cultivando, como a resistência freqüente à organização cronológica linear dos acontecimentos. Mas a escola americana parece questionar a própria realidade das coisas -seria o mundo mera aparência, mera ilusão?

Em Kaufman isso vem associado, em Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, à tecnologia e à virtualidade, à qual Benioff passa ao largo. A ficção se produz no instante entre a vida e a morte. Qual é o tempo dessa passagem? O que está implicado nela? Com a evolução da trama, nós, espectadores, nos vemos num emaranhado de identificações possíveis, nunca certas. Navegamos numa história que nos carrega sem saber para onde. Essa deliciosa sensação é estancada no final, quando tudo se explica - o que é uma pena.

No espaço entre o desejo e o medo, entre realidade e ilusão, entre a vida e a morte, encontramos todo um mundo alternativo que ganha vida no instigante suspense A Passagem. Do elogiado diretor dos premiados A Última Ceia e Em Busca da Terra do Nunca, Marc Forster, chega essa fascinante história (que se perde no final) que mergulha sob a superfície da vida comum para levar um homem num redemoinho através dos mistérios da identidade, dos sonhos e do próprio tecido de nossa existência.

O filme parece a princípio se tratar da história cheia de suspense sobre o dedicado psiquiatra nova-iorquino Sam Foster (Ewan McGregor) e sua tentativa desesperada de impedir que Henry Letham (Ryan Gosling), um jovem e incomum paciente, cheio de segredos (que ele acaba por tratar), acabe cometendo suicídio na noite de seu 21º aniversário. Mas por detrás dessa premissa básica de A Passagem temos um mistério ainda mais surreal e perturbador quando a chocante realidade dessa investigação começa a alterar a vida de Sam. Quando Sam se aprofunda mais e mais na vida de Henry - e portanto no labirinto de seu subconsciente – o que ocorre de início é um pouco de tensão em seu relacionamento com sua namorada Lila (Naomi Watts), que é artista e foi ex-paciente sua.

Mas logo a ligação intensa de Sam com seu mundo racional começa se dissolver. Tendo de enfrentar uma série de encontros cada vez mais surreais numa paisagem onírica, que parece estar sempre se transformando cada vez mais, Sam não consegue mais separar o que é verdade e o que está acontecendo em sua imaginação, nem onde ele começa e Henry acaba. Então, quem é Letham e por que ele está partindo a realidade de Sam tão profundamente? À medida que crescem o número de pistas e o suspense, quando a história se encaminha para seu clímax na ponte do Brooklyn, tanto Sam – como a platéia – terão de lidar com perguntas reveladoras sobre a percepção, a consciência, o perdão e os momentos finais de redenção. Já que rapidamente se torna claro que o que está acontecendo entre Sam e Henry não se passa neste mundo, mas naquele estado entre a vida e a morte... um local onde só se pode ficar de passagem.

Como este é um filme que só se explica pela cena final, fica meio difícil mesmo entrar em detalhes sobre ele sob pena de depois ficarem reclamando que eu estrago o prazer de ver um filme. E não vou fazer isso , porque eu fui envolvido pela história, que fui acompanhando com curiosidade, sem entender alguns detalhes. Mas tudo era tão bem feito, com um visual tão interessante que não me perturbou (há uma utilização de imagens digitais muito interessantes, particularmente ao final). Na verdade, a ambientação da fita é notável, utilizando uma arquitetura desconhecida de Nova York (por exemplo, a cena dos degraus da escadaria em espiral foi na Catedral de St. John). Com imagens impressionantes e que vão dando um clima ao filme, que nos deixa sempre na ponta da cadeira.O que está acontecendo mesmo?