17 janeiro 2006

2046



Nota: 8

2046: o número de um quarto de hotel; o ano que guarda memórias perdidas e em que tudo permanecerá intocado; um filme de Wong Kar-wai... 2046: dele não é possível voltar e a ele só se chega por meio de um trem especial. 2046: ano que marcará o fim do período de 49 anos de auto-regulação imposto pela Inglaterra para a devolução de Hong Kong à China (em julho de 1997). Data em que a liberdade política e econômica da antiga colônia britânica chegará ao fim.

Visto pelo significado histórico do número que dá origem ao título, o novo filme do cineasta se torna ainda mais pungente e melancólico. Fica também mais difícil afastar a associação quase óbvia das sensações que ele provoca aos sabores agridoces de um bom prato da culinária chinesa tradicional. Amargo e ligeiramente doce, como a saudade que Kar-wai já sente do país em que nasceu e que vê, pouco a pouco, desaparecer.

Como um marido às portas da viuvez, sentado no leito de morte da amada, o diretor recupera as memórias que estarão perdidas quando o fatídico ano chegar. Em sua contagem regressiva, retorna aos anos 60 de sua infância, onde reencontra Mr. Chow , o protagonista de sua última obra, Amor à Flor da Pele (In the Mood for Love, 2000). Para reproduzir a maneira que via o mundo naquela época, posiciona a câmera na mesma altura de um menino de 8 anos, o que talvez explique o encantamento que se renova a cada quadro.

O personagem, interpretado magistralmente por Tony Leung Chiu-wai , é um jornalista que vive um amor platônico com a vizinha para, tempos depois, descobrir que o marido dela é também o amante de sua mulher. Aquele homem assolado pela traição e pela impossibilidade do amor verdadeiro já não marca presença nas cenas deste novo filme. Trocou a angústia dos desejos não consumados pelo jogo, pela bebida e pelo amor fugaz das concubinas, dançarinas e prostitutas que perfumam os salões onde ele agora passa as suas noites.

Ele tem agora uma nova ocupação: trocou as notícias por livros baratos de ficção — de onde vêm os muitos saltos no tempo que marcam esta história. 2046 é também o nome do romance futurista que Chow escreve, auxiliado pela filha do proprietário do hotel onde mora. As personagens são inspiradas em suas amantes e as projeções que faz da realidade trazem, nas entrelinhas, o lamento de Kar-wai pelo que está por vir.

Neste futuro imaginado, fala-se japonês. O país cuja sanha conquistadora tanto oprimiu Hong Kong impôs-se não apenas em seu idioma, mas também na estética: roupas, rostos e ambientes remetem à estética dos animês. A fragilidade escondida na beleza altiva das mulheres dos anos 60 — com seus cheongmais (vestidos tradicionais chineses) bordados, altíssimos sapatos de salto agulha e unhas pintadas de vermelho vivo — deu lugar à frieza e aos olhares embotados de garotas-andróides, cujos vestidos são marcados por trapos sobrepostos. E, surpreendentemente, o que um homem pode fazer de mais terrível a uma mulher é por ela se apaixonar.

Não cabe destacar aqui o desenvolvimento do enredo, nem mesmo apontar algumas de suas muitas cenas memoráveis. Em 2046, o apuro estético, a intensidade das cores, a perfeição da trilha sonora e a atitude contemplativa dos personagens retornam ainda melhores do que em Amor à Flor da Pele . O fascínio do diretor pela beleza feminina fica mais evidente e a paixão com que as vê se transfere de maneira inevitável para os olhos do espectador.

O déjà vu incomoda porque embaralha realidade e imaginação. Já passamos por aquilo ou tudo não passa de truque da mente? Ainda que não seja a questão principal de 2046, a sensação norteia este novo filme de Wong Kar-wai.

Claro, não poderia ser diferente, já que se trata da continuação de Amor à Flor da Pele, ao acompanhar o sr. Chow após sua decepção amorosa com a vizinha. Um certo mal-estar emana deste triste 2046, porque encontraremos um personagem mudado. É o mesmo cenário saudosista da Hong Kong dos anos 60, mas aqui não há amor. O negócio é sexo sem delongas.

Se a imagem fixada era a do homem honrado, tímido e rejeitado, agora Chow ostenta um espírito safado e quer mais é fazer transitar o maior número de mulheres em sua cama. 2046 mostra quatro envolvimentos fugazes desse jornalista free-lancer que escreve um romance, também 2046. Na história dentro da história, o número é uma data/lugar/estado de espírito em que as pessoas vão para recapturar memórias perdidas. Lá, nada muda. 2046 é ainda o último ano do período estipulado pela China a Hong Kong em que tudo na ex-colônia deve permanecer inalterado. É, por fim, o número do quarto de hotel de Amor à Flor da Pele onde Chow encontrava sua vizinha.

Kar-wai lida, portanto, com a questão do tempo e da memória. Não vem ao caso comparações com Alain Resnais. Mais do que cinema de autor, o diretor oriental cria filmes para culto. Permite-se, em 2046, o uso de maneirismos, ainda mais gratuitos -planos fragmentados em velocidades diferentes, música nostálgica etc.

O déjà vu surge ainda porque Kar-wai lida basicamente com os mesmos temas e personagens em sua obra. Uma das mulheres por quem Chow se interessa é a filha do dono do hotel, interpretada pela mesma Faye Wong que, em Amores Expressos, atiçava a curiosidade do policial feito por Leung. É como se buscasse explicitar a idéia de que temos diferentes encarnações ao longo da vida.

O interesse se mantém pela poesia pueril com que entrelaça seu balé de desencontros amorosos. Na trama dentro da trama, temos andróides com emoções atrasadas. Se algum deles deseja chorar, a lágrima só cairá no dia seguinte.

2046 é história sobre fantasmas, a começar por Chow, que não se livra do fantasma da mulher perfeita. Assim, Kar-wai transmite a sensação surreal que é a rejeição de um amante. Esperamos pelas gentilezas e sorrisos do passado, mas apenas encontramos um ser transformado. O corpo é o mesmo, mas algo ali, na essência, se perdeu. 2046 é como o ex-amante que retorna, não melhor ou pior, apenas sem o frescor da novidade e o poder da ilusão.