20 outubro 2005

O Senhor das Armas



Nota: 9

Há muito a se analisar com o lançamento do O Senhor das Armas (Lord of War, 2005) às vésperas de um referendo que pode proibir a venda e porte de armas de fogo no Brasil. Logo no início do filme, em uma rua coberta por balas dos mais diversos calibres, Yuri Orlov (Nicolas Cage) começa a despejar dados sobre a indústria na qual trabalha, a armamentista. "Existem mais de 550 milhões de armas de fogo em circulação no mundo. Isso significa uma arma para cada 12 pessoas. A única pergunta é: como armar as outras 11?", diz ele sem demonstrar qualquer tipo de ressentimento.

Para entender como ele chegou àquele estágio, um flashback nos leva aos anos 80. Sempre com uma locução em off, Yuri conta que imigrou da Ucrânia para os Estados Unidos com seus pais. Um dia, em um restaurante, ele tem uma epifania: matar faz parte da natureza humana, como comer, e assim começa a lucrar com esta necessidade, vendendo armas ilegalmente. Junto com seu irmão mais novo, Vitaly (Jared Leto), ele logo está negociando com pessoas de todos os tipos de ilicitude, do tráfico de drogas, ao maior de todos, o tráfico de influências da politicagem.

Escrito e dirigido por Andrew Niccol (Gattaca, S1m0ne), o filme mostra detalhes da máfia controladora de uma indústria bilionária. Quem compra armas ilegais são os bandidos, os traficantes, os guerrilheiros, os tiranos, mas quem as fabrica são geralmente pessoas e conglomerados de muito poder entre as classes dominantes, não importa o país. Em Tiros em Columbine (2002), Michael Moore mostra detalhes da cultura belicista norte-americana. Niccol afasta sua câmera e mostra casos mundiais de generais corruptos roubando armas de seu próprio batalhão, traficantes armando seu próprio exército e líderes africanos colocando crianças armadas nas ruas.

Embora os personagens pareçam formas caricatas do que já foi mostrado inúmeras vezes no cinema, na TV e nos jornais, todos os fatos foram pesquisados a fundo por Niccol. Os números são atirados como balas saindo de uma semi-automática, como por exemplo: "Entre 1982 e 1992 foram roubados na Ucrânia mais de 32 billhões de dólares em armamento, no que acreditam ser o maior assalto do século 20. Ninguém foi condenado, ou investigado".

A diferença do filme ficcional de Niccol com o documentário de Moore é que este último era tão maniqueísta ao falar da indústria que acabava deixando o tema irônico, afinal é cômico ver como os armamentistas tentam defender algo feito para matar. Já o personagem de Nicolas Cage é uma contradição ambulante. Méritos ao ator, que consegue transformar um vendedor de armas em um cara frágil e do qual você até pode nutrir algum sentimento positivo, quase um carinho. Yuri sabe que o que faz é errado, mas não consegue parar, pois ele é realmente bom no seu trabalho, estando sempre à frente dos seus adversários, sejam eles outros vendedores, ou a polícia. Seu azar/maldição é que este ramo é ilícito e, pior, responsável pela morte de milhares de pessoas por ano.

Talvez o grande defeito de O Senhor das Armas seja seu excesso de zelo. O filme mostra muito cuidado com toda a parte gráfica do filme, que apresenta um dos pôsteres mais bem trabalhados do ano e uma seqüência de créditos iniciais que mostra a "vida" de uma bala, desde o seu "nascimento", até o seu objetivo final, entrando na cabeça de uma criança. Ao mostrar cenas bem filmadas, trilha sonora pop e até bom uso de computação gráfica, o longa corre o risco de cair na prateleira dos filmes-pipoca, perdendo assim seu selo de filme-denúncia.

Ajuda também o texto escrito por Niccol, que transforma Yuri em um grande cínico. Há muita ironia no texto, como na citação de que "após o fim da Guerra Fria, a AK-47 se tornou o maior ítem de exportação da Rússia. Seguido pela vodca, caviar e escritores suicidas", ou quando Yuri diz que não vendeu armas para Osama Bin Laden. Não por razões morais, mas porque ele só dava cheques sem fundos. Mas ao bom entendedor, meia-palavra basta, certo?

O Terceiro Olho



Nota: 6


Se você tem alguma crença mística, O Terceiro Olho (The I inside, 2003), de Roland Suso Richter, é um interessante mergulho na discussão etérea. Se você é daqueles que acreditam piamente na capacidade humana, então o filme pode ser visto sobre os olhos da filosofia, da metafísica.

Este é justamente o trunfo desejado pelo diretor, que ali realiza uma obra contida - talvez por incapacidade própria. Ou seja, apostou mesmo suas fichas na idéia teatral de Michael Cooney, dramaturgo da obra original e também roteirista da película. Eles trabalham com um tema interessante, da memória, do poder da mente, mas têm o confronto direto de grandes filmes como Amnésia e Efeito Borboleta. Talvez esse seja o maior desafio do filme, que em nenhum momento consegue superar isso. Não trabalharam com um tema novo e não inovaram quase nada.

Na fita, Ryan Phillippe vive Simon Cable, que acorda em um hospital sob os cuidados do doutor Newman (Stephen Rea). Porém, Cable está com amnésia temporária, não sabe em que ano está, quem é sua esposa e porque foi parar lá. Num primeiro momento, pensa que Clair (Sarah Polley) é sua esposa, mas descobre que, de fato, é Anna (Piper Perabo).

Neste ambiente confuso, Cable começa a descobrir situações macabras, que culminaram com a morte de seu irmão Peter (Robert Sean Leonard). Porém, esta descoberta se dá através de viagens no tempo - entre 2000 e 2002.

Falar mais da trama pode acabar com a suposta surpresa que ela contém. Misticismo? Paranóia? Filosofia? Tempo circular? Richter é claramente influenciado pelo nervoso Alucinações do Passado (Jacob´s Ladder, 1990), obra magistral de Adrian Lyne. Porém, entrega pistas demais do rumo da trama - se você prestar atenção logo no começo, terá a resposta de tudo o que acontecerá depois.

Ainda que Ryan Phillippe se esforce para convencer na trama, o fato é que o filme carece de tutano em sua delicada digressão, uma vez que a abordagem técnica é totalmente convencional. Mas a julgar pela quantidade de filmes ruins que chegaram nos cinemas em 2005, O Terceiro Olho não faz feio. Pena que, para variar, a pasteurização é o porto seguro de diretores sem ousadia. O diretor acerta em não fazer algumas concessões -o filme é passado quase que somente em ambientes internos, aumentando a claustrofobia-, o elenco é bom -há Stephen Rea e Sarah Polley, entre outros-, mas, ao final, o espectador fica com sensação de déjà vu, tal qual o protagonista. Faltou ousadia.

Os Irmãos Grimm



Nota: 5

Depois de mais de um ano pegando poeira nas prateleiras do estúdio, a Miramax finalmente lançou Os Irmãos Grimm, novo filme de Terry Gilliam. Mas seria Grimm um bom filme? Afinal, talvez esse seja o trabalho menos pessoal de Gilliam que teve diversas brigas com o produtor Harvey Weinstein. Aliás, eles até deixaram o filme de lado por seis meses para que ambos os lados esfriassem a cabeça e pudessem, com os espíritos renovados, analisar o filme de modo mais distante e crítico para entrar em acordo em suas divergências. Dizem ambos que no final tudo deu certo e que a mídia especula muito sobre o que seriam brigas normais entre produtor e diretor.

Durante a dominação francesa da Alemanhã, dois irmãos, Jacob (Heath Ledger) e Wilhelm (Matt Damon) Grimm, são famosos por matar monstros, bruxas e outros seres sobrenaturais. Na verdade, são dois farsantes que usam truques de luzes e fios para simular assombrações e arrancar dinheiro das pessoas. Até que o francês general Delatombe (Jonathan Pryce) os captura e os força a desvendar o mistério do desaparecimento de onze crianças em uma vila distante. Acompanhados do sádico Cavaldi (Peter Stormare), braço direito do general, eles contam com a bela Angelika (Lena Headey), uma caçadora amaldiçoada cujas duas irmãs estão entre as desaparecidas, e que vai guiá-los pela floresta.

Muito foi dito sobre o roteiro de Ehren Kruger que, realmente, não é dos melhores. Às vezes é até mesmo um pouco óbvio. Imagino como seria antes de Gilliam e Tony Grisoni terem feito várias alterações. Apesar de que eles não são creditados como roteiristas mas como "Dress Patern Makers" por terem feitos diversas novas costuras em um roteiro retalhado. Mas ainda assim conta uma história eficiente e divertida, brincando com o conceito de que os verdadeiros irmãos Grimm, famosos pelos seus contos de fadas, teriam se inspirado em "fatos reais".

Mas o filme se apóia exatamente nisso, na capacidade que temos de acreditar nos contos de fadas. Em querer acreditar em algo que não é real e, ao mesmo tempo, acreditar em si mesmo. E mais, querer que acreditem em você. Não só no que você diz mas em sua capacidade. Em dar um voto de confiança ao próximo que, por mais que comece como alguém mais tímido e "inferior", possa no fim andar ombro a ombro com seu igual. Até mesmo salvar o dia.

Um dos pontos altos do filme é a interação entre os personagens. A química entre Damon e Ledger, este um pouco mais teatral e eficiente, é muito boa, assim como os poucos minutos de projeção de Monica Bellucci que faz aqui o que faz de melhor: ser linda, sexy e completamente apaixonante. Headey parece ser uma escolha mais adequada para o papel de Angelika do que Samantha Morton, a escolha de Gilliam que foi rejeitada pelos Weinstein, por ter uma beleza mais óbvia. Afinal, para encantar os dois irmãos, não basta apenas ser a mocinha esquisita do filme. Os personagens de Pryce e Stormare são divertidos mas um pouco cansativos mas nada que abale o resultado final do filme.

Destaque para a trilha sonora de Dario Marianelli que, misturando elementos de suspense com velhas canções de ninar, consegue criar um efeito familiar e ainda assim apavorante como os próprios contos dos Grimm que, ao passar dos anos foram se tornando mais brandos mas que em sua essência são grandes histórias de horror.

No fim das contas, Os Irmãos Grimm talvez seja o filme mais problemático de Gilliam. E ainda é melhor do que 90% do que se vê do atual cinema hollywoodiano. Principalmente porque o filme tem uma boa qualidade: ele consegue ao mesmo tempo misturar uma história absolutamente fantástica com um visual de contos de fadas mas com uma bela fotografia quase realista, com cores de mesmo tom que permeiam cenas inteiras e passando sensações específicas. O clima sombrio do filme, lembra a mente de Tim Burton, sem ter o mesmo charme dos filmes do diretor. A sensação dark e mística, que permeia aquele período histórico, nos remete a filmes como A Vila ou O Pacto dos Lobos.

Os Irmãos Grimm pode ser um pouco assustador para as crianças mas é o tipo de filme que eu adorava quando moleque, como Willow ou Goonies (sem a mesma magia, claro). É diversão para o público a que se pretende induzir. Para mim faltou mais monstros e mais efeitos especiais.

11 outubro 2005

2 Filhos de Francisco



Nota: 7

O que faz um bom filme? Um roteiro inteligente? Direção e atores competentes? Personagens interessantes e uma história cativante, cheia de surpresas e reviravoltas? Uma trilha sonora decente com certeza não faz mal a ninguém, né?

Acredite: 2 Filhos de Francisco - A história de Zezé di Camargo e Luciano (2005) tem tudo isso e mais um pouco.

O "acredite" da frase acima se faz necessário pois há um compreensível "pé-atrás" de boa parte do público em relação ao filme. Culpa do atual sistema que combina celebridades nacionais com cinema de baixa qualidade e que, logicamente, não dá uma boa liga - vide filmes da Xuxa, Padre Marcelo, Didi e Eliana Dedinhos.

É justamente nesse ponto que o roteiro esmerado de Patrícia Andrade e Carolina Kotscho se destaca. As duas utilizam a consagrada dupla sertaneja apenas como uma ponte para na verdade contar a história do pai dos cantores, Francisco Camargo, um trabalhador rural apaixonado por música e que sonhava com a carreira musical dos filhos. Interpretado brilhantemente por Angelo Antonio, Francisco é um típico brasileiro como tantos e, ao mesmo tempo, tão poucos. Sem instrução, dinheiro e, muitas vezes, comida, mas dono de uma ingenuidade que viria a ser seu maior trunfo, Seu Francisco jamais desistiu deste sonho. Ao preço de uma vida de sacrifícios, hoje pode contar sua história, que começa no nascimento do primeiro filho, Mirosmar (Zezé di Camargo), e vai até o show final da dupla, não sem antes mostrar a construção do mega-hit que lançou os dois: "É o amor".

Mesmo que essa história tenha sofrido "poetizações", seus elementos mais importantes são retratados de maneira bastante realista, com fome, frio, deslumbramentos, decepções e até uma paralisia infantil de um dos filhos de Francisco, que também teve de lidar com uma tragédia ainda maior - mostrada lá pelo meio do filme. Os momentos alegres na infância e a vida adulta dos personagens existem, mas são mostrados de maneira honesta e bastante crível. Dos conhecidos contos de fada, a história só tem mesmo o final feliz.

Contudo, o filme também tem seus deméritos. Apesar da assustadora semelhança com Zezé di Camargo, Marcio Kieling deixa muito a desejar em sua atuação, e traz uma certa quebra no ritmo do filme que, até a fase adulta dos cantores, flui perfeitamente. Outro detalhe que incomoda são os excessivos e intrusivos merchandisings, incluindo a aparição da atual logomarca do Bradesco (criada em 1997) perdida numa cena ambientada no comecinho da década de 90. Um detalhe pequeno, mas que podia ser evitado.

Dirigido pelo premiado diretor de fotografia Breno Silveira, 2 Filhos de Francisco cai na estrada com o pé direito. Vencer preconceitos, pelo menos da crítica, foi sua maior vitória até agora. Resta torcer para que em sua estréia o filme também ganhe o merecido respeito do público.

Vlado: 30 Anos Depois



Nota: 7

Como o próprio cineasta João Batista de Andrade (O Homem Que Virou Suco) deixa claro na introdução, Vlado - 30 Anos Depois é um filme extremamente pessoal. O documentário, que estreou essa semana em São Paulo, conta a trajetória do jornalista Vladimir Herzog, de quem o diretor foi amigo e colega de trabalho.

João Batista afirma que o filme é uma dívida, "um filme que deveria ter sido feito há muito tempo". Longe de ser panfletário, o cineasta faz um registro emocionado de um homem que representou muito não só para a imprensa brasileira (foi diretor de jornalismo de TV Cultura, editor de cultura da revista Visão, entre outros trabalhos), como também para o fim da ditadura militar no Brasil.

Herzog foi morto em 25 de outubro de 1975, após ser violentamente torturado no DOI-CODI (órgão da repressão política do regime militar). A versão oficial sustentava que Vlado, como era chamado pelos amigos, se suicidou - o que não é verdade, conforme foi provado anos depois.

Embora existam algumas imagens de arquivo ilustrando a época e os acontecimentos, Vlado - 30 Anos Depois encontra a sua força no depoimento de diversas personalidades que foram amigas do jornalista, além da viúva Clarice Herzog. São sempre depoimentos emocionados de pessoas que sentiram na pele os horrores de lutar para livrar o país da ditadura.

Momentos de tensão e dor vêm à tona com depoimentos de jornalistas como Paulo Markun, Alberto Dines, Mino Carta, Fernando Morais e Sérgio Gomes. Todos lembram os horrores da repressão vigente depois do AI-5.

Markun conta, entre outras coisas, o quanto era difícil não fraquejar ao saber que sua mulher estava sendo torturada na sala ao lado. Muitos concordam que ver amigos torturados é tão doloroso quanto ter o seu corpo agredido.

Contando desde a infância difícil na Iugoslávia, de onde Herzog, de origem judaica, teve de fugir com a família, o filme chega ao ápice no ato ecumênico que reuniu diversos setores da sociedade paulista e cerca de 8 mil pessoas na Catedral da Sé, em São Paulo, uma semana depois da morte do jornalista.

No dia 31 de outubro de 1975, realizou-se o que foi caracterizado como um ato silencioso contra o regime. O documentário apresenta imagens inéditas do evento, que mostram líderes religiosos como o cardeal D. Paulo Evaristo Arns e o rabino Henry Sobel realizando o ato ecumênico, que representava toda a sociedade pedindo paz.

Vlado - 30 Anos Depois é até limitado enquanto cinema - na maior parte do tempo é uma câmera enquadrando os entrevistados. Mas é exatamente o que essas pessoas dizem que torna o filme poderoso. São testemunhos de uma época obscura de nossa história que merece ser lembrada e mostrada àqueles que não a viveram.

João Batista pergunta a meia dúzia de pessoas na Praça da Sé, em São Paulo, nas primeiras cenas do filme, se elas sabem quem foi Vladimir Herzog. A maioria não sabe. Um entrevistado chega até a dizer que a ditadura deveria voltar. Vlado - 30 Anos Depois faz, assim, um grande serviço ao Brasil ao recuperar a memória histórica do que pode acontecer num regime de força e exceção. E para que algo do gênero nunca volte a se repetir no Brasil.

Em um bate-papo informal com a imprensa depois da apresentação do filme em São Paulo, o diretor João Batista contou que não sabe quem registrou as imagens, de muito boa qualidade, aliás, do ato ecumênico.

"Começamos a produzir o filme em março. No início de maio, foram mandados para a minha casa, por alguém que não se identificou, alguns rolos com as imagens do ato da Catedral da Sé", explica.

Os depoimentos foram todos gravados em câmera digital - mesmo suporte no qual o filme será exibido - com uma câmera pequena e leve que propiciou maior intimidade entre diretor e entrevistados. "Eu estava a um palmo de distância das pessoas", conta o cineasta. "Queria essa aproximação que facilitava também o envolvimento emocional."

Como se pode perceber pela ausência de logotipos de patrocinadores no início do longa, Vlado - 30 Anos Depois foi feito com dinheiro do próprio diretor. A distribuidora Europa Filmes entrou com a parceria na finalização e garantiu a distribuição do documentário em DVD.

Todos os entrevistados são amigos de João Batista, que, além de trabalhar com Herzog na TV Cultura, filmou um roteiro escrito pelo jornalista, e que acabou premiado em Gramado.

"Eles sabiam que falavam com alguém que conhecia o assunto, podiam falar do lado emocional, das experiências pessoais. Não precisavam contar a história como a gente faz para quem não está familiarizado com o assunto", explica.

Da Cama Para a Fama



Nota: 6

Imagine que, certa manhã, seu chefe o informa de que, para continuar na empresa, você terá que filmar, para fins científicos, as relações sexuais que mantém com seu cônjuge! Tomando como ponto de partida essa idéia absurda, Pablo Berger dirigiu Da Cama Para a Fama (Torremolinos 73), seu longa-metragem de estréia.

Nos anos setenta, Alfredo Lopez, um vendedor de enciclopédias à beira da demissão, é convidado para um projeto secreto: a Enciclopédia de reprodução audiovisual. De acordo com o patrão, a obra faz sucesso em países escandinavos e tem como objetivo ensinar práticas sexuais a pessoas de diferentes nacionalidades. No entanto, tudo não passa de um embuste. Seu superior quer apenas realizar filmes pornôs.

É hilário acompanhar Alfredo em seu aprendizado cinematográfico. Os rudimentos da sétima arte, ele adquire de um diretor escandinavo, que alega ter sido assistente de Ingmar Bergman. As citações à obra do diretor sueco conferem um delicioso tempero à narrativa.

Encerrado o "curso", o protagonista dá início às suas produções caseiras. Num primeiro momento, tomadas inocentes e, por fim, os repetitivos enredos das películas pornôs: dona de casa chama técnico – cada vez de um tipo – para consertar um eletrodoméstico e recebe um "trato" como cortesia.

A loucura, porém, não para aí! Depois de protagonizar dezenas de fitas com sua mulher Carmen, Alfredo sonha com vôos mais altos. Inspirado em O Sétimo Selo de Bergman, decide escrever seu primeiro roteiro sem sexo. O patrão topa desafio e contrata uma equipe escandinava. O desenrolar é impagável.

Mesmo abordando um tema polêmico, é impossível não se divertir com situação tão bizarra. A comédia flui despretensiosa, resolvendo seus conflitos com uma mescla de tristeza e alegria. Comentário inteligente sobre as relações familiares, a produção recebeu de Berger tratamento de filme pornô da época no emprego de sombreado marrom e no posicionamento de câmera. Figurinos e penteados completam a ambientação setentista.

Em um elenco primoroso, o destaque vai para Jávier Câmara no papel de Alfredo e para Candela Pena no de Carmen. A química entre ambos garantiu os prêmios de Melhor Ator e Melhor Atriz no Festival de Málaga, Espanha. A propósito, na mesma oportunidade, a película papou as categorias de Melhor Filme e Melhor Diretor.

O Coronel e o Lobisomen



Nota: 4

A principal atração e o grande problema de O Coronel e o Lobisomem (2005) são um só: a palavra.

É dela que se vale o Coronel Ponciano de Azeredo Furtado (Diogo Vilela), no tribunal, para convencer a todos de que seu irmão de criação, Pernambuco Nogueira (Selton Mello), é um lobisomem. Endividado, prestes a perder a Fazenda Sobradinho que herdou do avô, o boa-vida Ponciano não tem outra solução. A hipoteca foi resgatada pelo rival e o coronel só reverterá a decisão judicial se provar que Nogueira é "bicho juramentado de muita astúcia no atacado e no varejo" e, como tal assombração, não tem valia na lei dos homens.

O filme dirigido por Maurício Farias, a partir do romance que o fluminense José Cândido de Carvalho (1914-1989) escreveu em 1964, toma esse ponto de partida para contar em flashback a vida dos meio-irmãos. A narração em primeira-pessoa acontece na voz de Ponciano - e ela se impregna de neologismos burocráticos-jurídicos, cheios de sufixos e prefixos inexistentes, para impressionar o júri. No papel, isso funciona muito bem, com efeito cômico, mas no cinema pede um tratamento diferente.

Guel Arraes é craque em lidar com esse tipo de verborragia. O homem que já bem domou um Chicó e um João Grilo, afinal, não tem o que temer. A transposição literária é sua especialidade. E aqui, no papel de roteirista e produtor, ele ganha o reforço de Jorge Furtado e João Falcão para adaptar o roteiro. O trio já havia passado O Coronel e o Lobisomem, para a TV em 1994, com Marco Nanini como Ponciano. O resultado na telona, porém, pode desagradar quem espera a enxurrada de eventos de um Lisbela e o Prisioneiro (de Arraes, 2003) ou mesmo de um Auto da Compadecida (também de Arraes, 1999). Dá pra dizer que O Coronel e o Lobisomem é o filme mais "literário" dessa leva: a onipresença de diálogos e o andamento devagar da trama se fazem notar.

O diretor Farias - estreando na direção de cinema, depois de exitosa carreira como diretor de novelas, minisséries e atualmente no humorístico A Grande Família - tem papel decisivo nessa tradução emperrada. O seu cuidado com a estética não se traduz, propriamente, em um cuidado com uma narrativa visual. O que conduz o filme, como o livro, é mesmo a palavra. Paciência. Isso não é de todo ruim, pelo contrário.

Como já se disse, além de grande problema, o verbo é a principal atração da obra. Há algo de cervantino nesse palavreado empolado, nessas patentes e jurisprudências - como um Dom Quixote que recorre à solenidade das frases-feitas da cavalaria, sem perceber que isso ridiculariza a própria novela de cavalaria.

No caso do Coronel Ponciano de Azeredo Furtado (personagens de filmes que possuem nomes e sobrenomes já são uma forma de ridículo), seu "falar difícil" só revela o quanto a aristocracia rural, à época da crise do café e da urbanização das cidades, tem de obsoleta. E, não por acaso, Pedro Paulo Rangel, no papel de um criado do coronel, faz as vezes de Sancho com perfeição: crente da coragem e das venturas do patrão, respeitoso das hierarquias e normas da fazenda, ainda que ela se desmanche em dívidas e poeiras a olhos vistos.

Claro, também como Quixote, as trapalhadas de Ponciano acabam transformando-o num anti-herói cativante. O problema é que Farias freqüentemente confunde essa empatia com sentimentalismo, o que leva aos temas sonoros equivocados na porção final do filme, feitos para vender discos, cortesia da produtora Paula Lavigne.

Antes disso, sempre que capta a vocação para a auto-avacalhação, o diretor faz o filme render - inclusive com licenças em relação ao original. Por exemplo, no episódio da briga de galos ou na citação de juros e empréstimos bancários, é evidente que o coronel personifica nossas autoridades maiores e suas burradas econômicas. O governante que só fala em superávits e selics não deixa de ser um deslumbrado, como Quixote ou Ponciano, com as próprias palavras.

Vida de Menina



Nota: 5

Vida de Menina venceu o Festival de Gramado em 2004 não por ser o melhor filme, mas o menos imperfeito. Na competição de ficção, não tinha a mesma energia de Filhas do Vento, mas era melhor produzido, encenado, acabado. Enfim, mais vistoso. Mas continua sendo um filme de pilha fraca.

Co-escrito por Elena Soárez (Eu Tu Eles), o longa marca a estréia na ficção da documentarista Helena Solberg (Carmen Miranda: Bananas is My Business). A história se baseia nos diários que Alice Dayrell Caldeira Brant (1880-1970) escreveu entre 1893 e 1895, em Diamantina, Minas Gerais, sob o pseudônimo de Helena Morley. Alice se surpreendeu décadas depois - quando menina, desejava apenas deixar algumas memórias para seus descendentes, mas adulta viu os relatos serem publicados e traduzidos com sucesso em inglês, francês e italiano.

O filme se concentra no conteúdo do diário e dispensa a história posterior de Alice. Ludmila Dayer interpreta Helena Morley, filha de ingleses que se instalam na região atrás dos garimpos de diamantes. Nos anos que sucedem a Proclamação da República, porém, Diamantina já vê escassear o brilhante que lhe dá nome. Alexandre Morley (Dalton Vigh), pai de Helena, insiste na exploração. Por conta disso, mal consegue sustentar a casa, enquanto o outro ramo da família já aposta no comércio e vive bem financeiramente.

Desde o começo, o tom da narrativa é dado pelo embate de dualidades. Helena vem do lado protestante dos imigrantes ingleses, enquanto seus primos, abrasileirados, são católicos. Criada junto aos escravos, a menina não tem nada de aristocrata. Seus tios, ao contrário, acham-na uma deseducada. No colégio, igualmente, esse duelo do fino contra o tosco, rico contra pobre, crença gringa contra religião vigente vira motivo de briga entre meninas.

Como qualquer adolescente de qualquer época, com o adendo de ser ruiva entre brancos e negros, Helena se sente diminuída pela segregação. Passa a ler ficção, depois a escrever sobre a vida de Diamantina, para tentar fugir dela. Assim, a clássica situação da imaginação escrita como escape de uma realidade adversa vira o foco aqui.

A reconstituição histórica é cuidadosa, a inserção da abolição da escravatura na trama é pertinente. Aliás, todos os diálogos que são visivelmente uma tradução literal do diário - como aquele em que Helena chama a Proclamação de "festa de malucos" - ajudam a dar veracidade ao filme. Mas falta algo que o tire do mero registro, um clímax que altere a música sempre cerimoniosa da trilha sonora. Falta deixar um pouco a fidelidade ao texto original, que trata do mundo ao redor de Helena, e enfocar a própria protagonista. Ela começa o filme maior do que Diamantina, dona de si, mas termina como se fosse apenas uma coadjuvante a aceitar o mundo.