11 outubro 2005

O Coronel e o Lobisomen



Nota: 4

A principal atração e o grande problema de O Coronel e o Lobisomem (2005) são um só: a palavra.

É dela que se vale o Coronel Ponciano de Azeredo Furtado (Diogo Vilela), no tribunal, para convencer a todos de que seu irmão de criação, Pernambuco Nogueira (Selton Mello), é um lobisomem. Endividado, prestes a perder a Fazenda Sobradinho que herdou do avô, o boa-vida Ponciano não tem outra solução. A hipoteca foi resgatada pelo rival e o coronel só reverterá a decisão judicial se provar que Nogueira é "bicho juramentado de muita astúcia no atacado e no varejo" e, como tal assombração, não tem valia na lei dos homens.

O filme dirigido por Maurício Farias, a partir do romance que o fluminense José Cândido de Carvalho (1914-1989) escreveu em 1964, toma esse ponto de partida para contar em flashback a vida dos meio-irmãos. A narração em primeira-pessoa acontece na voz de Ponciano - e ela se impregna de neologismos burocráticos-jurídicos, cheios de sufixos e prefixos inexistentes, para impressionar o júri. No papel, isso funciona muito bem, com efeito cômico, mas no cinema pede um tratamento diferente.

Guel Arraes é craque em lidar com esse tipo de verborragia. O homem que já bem domou um Chicó e um João Grilo, afinal, não tem o que temer. A transposição literária é sua especialidade. E aqui, no papel de roteirista e produtor, ele ganha o reforço de Jorge Furtado e João Falcão para adaptar o roteiro. O trio já havia passado O Coronel e o Lobisomem, para a TV em 1994, com Marco Nanini como Ponciano. O resultado na telona, porém, pode desagradar quem espera a enxurrada de eventos de um Lisbela e o Prisioneiro (de Arraes, 2003) ou mesmo de um Auto da Compadecida (também de Arraes, 1999). Dá pra dizer que O Coronel e o Lobisomem é o filme mais "literário" dessa leva: a onipresença de diálogos e o andamento devagar da trama se fazem notar.

O diretor Farias - estreando na direção de cinema, depois de exitosa carreira como diretor de novelas, minisséries e atualmente no humorístico A Grande Família - tem papel decisivo nessa tradução emperrada. O seu cuidado com a estética não se traduz, propriamente, em um cuidado com uma narrativa visual. O que conduz o filme, como o livro, é mesmo a palavra. Paciência. Isso não é de todo ruim, pelo contrário.

Como já se disse, além de grande problema, o verbo é a principal atração da obra. Há algo de cervantino nesse palavreado empolado, nessas patentes e jurisprudências - como um Dom Quixote que recorre à solenidade das frases-feitas da cavalaria, sem perceber que isso ridiculariza a própria novela de cavalaria.

No caso do Coronel Ponciano de Azeredo Furtado (personagens de filmes que possuem nomes e sobrenomes já são uma forma de ridículo), seu "falar difícil" só revela o quanto a aristocracia rural, à época da crise do café e da urbanização das cidades, tem de obsoleta. E, não por acaso, Pedro Paulo Rangel, no papel de um criado do coronel, faz as vezes de Sancho com perfeição: crente da coragem e das venturas do patrão, respeitoso das hierarquias e normas da fazenda, ainda que ela se desmanche em dívidas e poeiras a olhos vistos.

Claro, também como Quixote, as trapalhadas de Ponciano acabam transformando-o num anti-herói cativante. O problema é que Farias freqüentemente confunde essa empatia com sentimentalismo, o que leva aos temas sonoros equivocados na porção final do filme, feitos para vender discos, cortesia da produtora Paula Lavigne.

Antes disso, sempre que capta a vocação para a auto-avacalhação, o diretor faz o filme render - inclusive com licenças em relação ao original. Por exemplo, no episódio da briga de galos ou na citação de juros e empréstimos bancários, é evidente que o coronel personifica nossas autoridades maiores e suas burradas econômicas. O governante que só fala em superávits e selics não deixa de ser um deslumbrado, como Quixote ou Ponciano, com as próprias palavras.