Mar Adentro
Nota: 8,5
Javier Bardem é o Marlon Brando ibérico. Seja um travesti almodovariano ou um cafajeste de Bigas Luna, os seus personagens escondem por trás do porte vigoroso e intimidador uma personalidade sensível, carente até, como os papéis que Brando consagrou no Realismo Americano dos anos 50.
O californiano (1924-2004) se beneficiava da linguagem do cinema clássico - filmado em closes solenes, câmera posta de baixo para cima, pelo mestre Elia Kazan (1909-2003) - para construir rapidamente a sua persona e fazer de si um mito da masculinidade. Bardem tem, ao contrário, um mundo de limitações em Mar adentro (2004). Passa a maior parte do filme numa cama, só com a cabeça de fora do cobertor. Ainda assim, tira dessa situação avessa um gigante viril.
A história do personagem que vive, o espanhol Ramón Sampedro, é real. Marinheiro apaixonado pelo mundo que conheceu via oceano, Sampedro perdeu a liberdade aos 26 anos, num mergulho raso demais que lhe deixou tetraplégico. Por quase três décadas, ele lutou pelo direito de morrer. Acima da polêmica da eutanásia, Sampedro colocava o livre arbítrio de cada cidadão. O problema é que a sociedade ainda não permite legalmente o suicídio de um indivíduo.
Bardem pega a bandeira à altura dos 54 anos de vida de Sampedro. Zelado por irmão, cunhada e sobrinho, cercado de cuidados, remédios e rotinas, parece a fragilidade em pessoa. Mas basta Sampedro abrir a boca para que aqueles ao seu redor esqueçam da piedade. Homem sem meias palavras, determinado como poucos, conhecedor dos meandros jurídicos de suas disputas, não só convence como seduz. Quando uma jornalista igualmente debilitada e uma mãe solteira e frustrada se aproximam do seu dilema, a admiração se confunde com a paixão. Acontece que esse Sampedro inabalável sofre, e muito.
Por isso Bardem, com os seus fortes traços faciais e os seus olhares que já dizem tudo, se encaixa tão bem no papel. Mas o desenvolvimento do drama não cabe somente a ele. Roteirista e diretor, Alejandro Amenábar (Abre los ojos, Os Outros) ambiciona aqui o reconhecimento fora do gênero do suspense. Não quer ser associado apenas a atmosferas e reviravoltas bem encaixadas. Busca, portanto, uma história mais densa - mas Mar adentro pode ter sido um passo largo demais. Afinal, não é fácil se desvencilhar dos clichês que perigam jogar uma tragédia desse tipo na vala comum dos "telefilmes de doença" norte-americanos.
Quando Amenábar já começa a mil, escancarando conflitos logo de cara, botando a trilha melosa no talo, dá a sensação de que ele não controlará o filme por muito tempo. Aos poucos, porém, a coisa se equilibra. Se em alguns momentos o diretor recorre a um sentimentalismo que prejudica a obra, em muitos outros ele abraça o politicamente incorreto com saúde. Amenábar não poupa ninguém do niilismo - nem o padre tetraplégico que chega para convencer Sampedro a viver mas não consegue subir as escadas até o quarto devido ao tamanho da sua cadeira-de-rodas hi-tech.
Ao fim de altos e baixos, fica a certeza de planos perfeitamente filmados, de diálogos muito bem escritos, mas fica também a impressão de que Bardem contribui muito mais do que Amenábar para o sucesso de Mar adentro. O ator começa, como Brando, a ficar maior que o cinema.
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