Pintar ou Fazer Amor
Nota: 7
A alternativa posta entre os dois termos do título de Pintar ou Fazer Amor não exclui nem um, nem outro. Pois, no filme dos irmãos franceses Jean-Marie e Arnaud Larrieu, ambos estão sujeitos ao predomínio da natureza. É a natureza o que mais salta aos olhos na história. Primeiro, como espaço livre, onde a beleza não precisa estar codificada para encantar. Depois, como espetáculo das forças, em particular o desejo, que impõe sua lei de atração a seres e corpos. A proeza dos Larrieu é transformar um típico filme francês de costumes, uma crônica leve e gentil, num trabalho em que a física e a metafísica não mais se distinguem, em que transcendência e imanência passeiam de mãos dadas.
O ponto de partida é um casal de meia idade (Sabine Azéma e Daniel Auteuil, irresistíveis), que alcançou a estabilidade do relacionamento e vê nisso mais uma ameaça que um ganho. Pintora amadora, em um dia ela pratica seu hobby no campo, quando é abordada por um homem. Ele lhe propõe conhecer uma casa, que a encanta. Logo ela convence o marido a deixarem os confortos urbanos e se instalarem fora da cidade. Com esse tom prosaico o filme avança de surpresa em surpresa. O cicerone é cego e reponde pelo nome Adam. Ele tem uma companheira cujo nome é Eva. Tal referência, em vez de ser mero exibicionismo intelectual, é de fato uma escolha "naïf", um modo de reiterar uma origem, que vai dominar os qüiproquós sexuais nos quais o casal urbano se envolverá na segunda parte do filme. É como se o casal Madeleine/William encontrasse neles um paradigma, nesse primeiro amor de todos representados pelo par Adão e Eva, antes que o pecado e o castigo divino caíssem sobre suas cabeças.
O tal conflito do título, surge também na atmosfera de normalidade efêmera, daquelas prontas a se desmanchar, que os irmãos diretores imprimem ao começo da história. Seja a inércia de William, seja a curiosidade com que Madeleine se aproxima da debilidade de Adam, seja o embaraço da nova amizade e da nova vizinhança... A verdade é que se anuncia com o vento uma mudança das grandes na vida dessas pessoas.
O fato de Adam dominar o seu terreno, esse Jardim do Édem, valendo-se dos apurados sentidos que lhe restam, e de ter uma esposa chamada Eva já o coloca na condição de catalisador das descobertas. A citação bíblica vem de brinde, para arredondar o simbolismo. Mesmo sem essa facilidade não seria complicado entender o personagem do prefeito como símbolo das transformações, de um tempo que se abre aos frutos proibidos da vida. O "deus" que breca a mudança, no caso, são os preceitos sociais vigentes não apenas na França, mas em todas as bem estabelecidas sociedades ocidentais, burguesas e monogâmicas, que podem se ver representadas em Pintar ou Fazer Amor.
Não é fácil, aqui ou na França, livrar-se do "deus" impregnado nos nossos costumes. E é essa ruptura que se apresenta diante de Madeleine e William e que norteia boa parte do filme.
Se à certa altura, lá pelos dois terços da duração, os irmãos Larrieu desmontam o conflito, isto é, adiantam uma resolução, isso não significa, exatamente, que todas as respostas foram encontradas. Especialmente pela maneira apaziguante com que os dilemas se resolvem - diluindo o suspense, anulando as diferenças, enfim, encontrando a saída mais ao alcance da mão. Do jeito que tudo se soluciona, parece escapismo. Muito próximo, exacerbando um pouco, da fuga que Auteuil experimenta em Caché. E não deixa de ser um escapismo confortável, ainda mais quando falamos de um mundo repleto de problemas como Paris e arredores: o escapismo idílico.
Fica a sensação de uma esquiva, como se Jean-Marie e Arnaud Larrieu evitassem bater-se contra aquilo que propuseram. Fecham a fatura com um filme despudorado, e só.
Pintar é aproximar-se da natureza, buscar nela algum segredo, mas, sobretudo, comungar sua beleza. Fazer amor é uma maneira ainda mais completa de se devolver à natureza, deixar que ela imponha sua necessidade e seus ritmos. O filme parte dessas duas formas de reencontro para alcançar de forma indireta aquilo que está no seu centro: a natureza como epifania. Mas como representar essa experiência mágica no cinema, que sempre impõe seus limites realistas, sem precisar recorrer ao artifício e, assim, quebrar o encanto? A natureza não é apenas registrada pela câmera, ela impregna a imagem graças a um trabalho atencioso dado à luz. A predominância da luz natural nas cenas, capturada em sua atmosfera aérea, sem efeitos fotográficos, torna ainda mais impressionante seu esforço de buscar instantes perfeitos, sobretudo quando eles registram a luminosidade do crepúsculo, aquele momento em que luz e sombra se conciliam da mesma maneira que dois corpos na união sexual.
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