01 junho 2006

Crime Ferpeito



Nota: 7

Desde que o cineasta Pedro Almodóvar resolveu fazer filmes para disputar o Oscar, o cinema espanhol perdeu sua figura de maior representatividade em termos de uma linguagem cinematográfica marcada pela inovação. Existem vários outros diretores talentosos no país ibérico, mas ninguém preenchia o espaço deixado pelo diretor de Ata-me! (1990), Carne Trêmula (1997) e Tudo Sobre Minha Mãe (1999). Álex de la Iglesia já pode ser apontado como este sucessor. A cada novo filme, percebemos que sua apurada técnica e seu estilo criativo vêm sendo esculpidos como um artista burila um mármore. Suas primeiras produções, Ação Mutante (1993), O Dia da Besta (1995) e Perdita Durango (1997), eram mostras de um cinema puro, feito na raça e voltado para um mercado mais restrito. Porém, desde A Comunidade (2000) reparamos sua vontade de dialogar com o público, mas sem se vender ou perder a sua assinatura.

Em seu novo filme, Crime Ferpeito (2005), Álex mostra a história de Rafael, um vendedor nato, seguro de si, que faz sucesso com as mulheres e consegue vender qualquer coisa para qualquer um. Após perder a chance de uma promoção por causa de um cheque sem fundos, Rafael acidentalmente mata Don Antonio, seu concorrente diretor ao posto. Lourdes, a feiosa da loja, assiste ao fato e resolve ajudá-lo. Só que sua intenção é ter Rafael como amante, então começa a chantageá-lo. A situação fica insustentável e ele se vê em “um mato sem cachorro”. Agora, para livrar-se dela, ele precisa cometer um crime perfeito.

Iglesia e o co-roteirista Jorge Guerricaechevarría brindam o público com uma história de humor negro, mas recheada de crítica social. A trama acontece quase toda num shopping. A intenção dos dois foi mostrar como a Espanha tem abandonado suas tradições com intuito de copiar os países mais desenvolvidos. Costumes como se divertir nas ruas com um bom papo regado a vinho, têm sido substituídos por um consumismo desenfreado. Ao mesmo tempo, o filme também se aprofunda na relação que o amor tem com o sucesso e a beleza, mostrando as conseqüências dos excessos da sociedade atual.

A câmera de Iglesia é enxuta e ousada. Ela serve a história com um ritmo veloz, mas ao mesmo tempo constrói uma idéia de claustrofobia. O mesmo shopping que simboliza para Rafael um mundo perfeito de sexo e dinheiro fácil, acaba se tornando a sua própria prisão. De predador, ele se transforma em presa. E tudo isso só foi possível com a ótima atuação de Guillermo Toledo. Mesmo não sendo um padrão de beleza, ele consegue convencer o público com um magnetismo quase que animal. Mónica Cervera, que faz Lourdes, é uma rival à altura. E o resto do elenco cumpre seus papéis com bastante competência.

Tudo funciona no filme de Iglesia. Figurino, edição e trilha sonora sublinham com extrema precisão os momentos de suspense intercalados com uma sátira voraz ao comportamento humano. Cenários e roupas coloridas lembram os primeiros filmes de Pedro Almodóvar. Estilisticamente, o drama psicológico de uma paixão avassaladora nos remete a obras de Buñuel e Hitchcock. A comédia de costumes irônica e crítica de Billy Wilder também se faz presente. Até a estética do filme noir surge em alguns momentos. Notamos todas essas influências, mas alinhavadas com uma originalidade espantosa. Com certeza Iglesia será tentado muito em breve pelos grandes estúdios a fazer filmes em busca de bilheterias fartas e premiações. É rezar que ele não cometa o mesmo erro que Almodóvar.