09 junho 2006

Araguaya



Nota: 8

Mais de 40 anos depois de seu início e 20 de seu término, o regime militar que imperou no país entre os anos de 1964 e 1984 volta a provocar polêmica na telas do cinema brasileiro. A verdade sobre a Guerrilha do Araguaia, episódio sangrento na história brasileira do regime militar, ainda continua obscura. O cineasta Ronaldo Duque, 50 anos, sabia que desvendar o segredo que ainda cerca o sumiço de 60 militantes de esquerda durante o conflito com os militares seria o maior desafio da sua vida. “Foram quase 20 anos preparando a visão sobre uma região cujos habitantes até hoje parecem viver à sombra do medo”, diz Duque, jornalista que migrou para o cinema em 1979, com o curta-metragem Póstuma, sobre o assassinato do índio Ângelo Cretan para, 10 anos depois, em 1989, ganhar o Rio Cine Festival com o documentário No, sobre a ditadura chilena.

Ao custo de 4,5 milhões de reais, Araguaya – A Conspiração do Silêncio percorreu um caminho tortuoso. Como já era de se esperar, o cineasta não recebeu qualquer informação e muito menos ajuda das Forças Armadas para narrar a história do grupo de militantes que montaram na fronteira entre Pará, Tocantins e Maranhão (região conhecida como Bico do Papagaio) um foco de resistência socialista armada à ditadura militar. Outra dificuldade encontrada pelo diretor foi a natureza – as locações para reproduzir a vegetação estavam devastadas – sobretudo a chuva torrencial, que acompanhou a equipe durante os 12 semanas de filmagens e inviabilizou uma estrada improvisada na mata pela produção para facilitar o trânsito. Isto sem falar nos mosquitos que infestavam a cidade paraense de Marituba, perto de Belém, onde foi construída, em 8 meses, uma cidade cenográfica com igreja, escola e cerca de 70 casas. Ouvidos historiadores, sobreviventes, militares e parentes das vítimas, centenas de depoimentos foram colhidos ao longo de 10 anos de trabalho duro, e ajudaram Duque, Guilherme Reis e Paula Simas a elaborarem o roteiro ficcional, que ganhou o primeiro concurso de Roteiros do Pólo de Cinema e Vídeo de Brasília, além do Prêmio de Desenvolvimento de Projetos do Minc e o Prêmio Mais Cinema.

Apesar de embrenhar-se na floresta Amazônica para narrar a repressão do Exército aos guerrilheiros, o filme nasce no asfalto, em 1968, com a repressão às manifestações de protesto ao golpe militar. É neste episódio que ele apresenta cada um dos rebeldes, que inspirados pelos maoístas, compartilharão o sonho de montar uma guerra popular a partir do campo.

“Essa era a proposta da guerrilha, uma ação militar rara no Brasil, que lembra campanhas históricas como a de Canudos”, explica Duque. Filho de mecânico de avião, que durante o regime militar teve de desaparecer por anos por causa de suas ligações com o movimento sindical, Duque começou a pensar em Araguaya no final dos anos 70, quando desembarcou aos 23 anos, em Marabá, para ajudar na montagem de uma estação de televisão. Na época, ele ouvira rumores de que o Exército tinha prendido um grupo de guerrilheiros às margens do Araguaia. Anos depois, a história tornou-se pública, e ele sonhou transformar sua investigação em um documentário. Mas o assunto da Guerrilha era e continua proibitivo na região. “As pessoas tinham e têm medo”, garante o cineasta.

Recentemente, o Governo Federal criou uma comissão encarregada de encontrar os corpos dos desaparecidos políticos e há uma determinação da Justiça que garante a quebra de sigilo de todos os documentos referentes às operações militares no Araguaia. Duque ressalta que não tem pretensão de criar polêmicas com o Governo, mas não se surpreende com as coincidências dos fatos. “A história borbulha, e estamos contanto história de gente viva, que briga por dignidade”, ressalta.

Além do ex-deputado José Genoíno (ex-Presidente Nacional do PT), que no filme tem o codinome de Geraldo (Pablo Peixoto), outras figuras reais da luta armada do Araguaia serviram de inspiração para o diretor Ronaldo Duque. A personagem Alice (Rosanne Holland) baseia-se na guerrilheira Criméia Alice, que engravidou na selva, conseguiu furar o cerco militar para ter o seu filho, e acabou sendo uma das poucas sobreviventes civis do conflito. Tanto Genoíno, quanto Criméia dão depoimentos no filme.

Outros personagens de Araguaya também têm base real: Oswaldão (Northon Nascimento) é Oswaldo Orlando Costa, estudante de engenharia que fez curso de guerrilha na China. Velho (Cacá Amaral) por sua vez é Maurício Grabois, dirigente do PCdoB que foi deputado comunista em 1946. Zé Carlos (Danton Mello) é André Grabois, desaparecido na guerrilha aos 27 anos. O padre Chico (Stephane Brodt) que narra o filme é inspirado nos dominicanos Aristides Camiou e François Gouriou, expulsos do país.

“É a história de uma juventude totalmente convencida do que estava fazendo. Seria leviano achar, 30 anos depois, que aquilo foi uma porra-louquice. Costumo dizer que Araguaya é um filme de ficção com argumento documental. No Brasil ainda são poucos”, afirma o cineasta Ronaldo Duque.

Oswaldão é um dos eixos centrais por onde roda a trama de Araguaya, uma vez que sua experiência em ação facilitava o confronto com agentes militares, entre eles o sórdido cabo Abdon (Cláudio Jaborandy). Os que conviveram com Oswaldão na época lembram do guerrilheiro como um herói. É o caso da professora aposentada Victoria Grabois, 60 anos, que perdeu o pai, Maurício, o irmão André e o marido, Gilberto Olímpio, no conflito. ”Oswaldão era uma pessoa de coração enorme e que deu a vida pelo seu país. Não sei se esse filme pode ajudar as famílias dos 60 desaparecidos a encontrar o paradeiro deles, mas pelo menos pode divulgar para quem viveu aquela época que houve um movimento de resistência no Brasil”, diz Victoria.

O projeto Araguaya é louvável ao abordar um tema tão negligenciado. Porém, o diretor Duque se perde ao longo da execução. A junção entre documental e ficcional nunca acontece com naturalidade. Os poucos depoimentos apresentados no início do filme não dizem muito a que vêm, ficando perdidos e nunca retomados até o final do filme. Além disso, os guerrilheiros são retratados de forma muito idealizada, o que muitas vezes resulta numa caricatura da realidade. A paixão entre dois jovens do grupo, por exemplo, perde a força ao ser apresentada de forma novelesca e superficial. A sensação, no final, é que Araguaya desperdiça um grande tema. Claro que não precisava esclarecer ou mesmo iluminar toda a situação, porque ai é se esperar muito do filme, mas se espera um pouco mais do que se vê na tela, com um assunto tão interessante e pouco abordado. Méritos pelo tema abordado, mas não pelo que se vê na tela.