16 março 2006

Um Herói do Nosso Tempo



Nota: 8

Shlomo, Salomão, em hebraico quer dizer "paz". Filho de Davi, Salomão se tornou em 997 a.C. o terceiro soberano do Reino de Israel, aquele que construiu o templo de Jerusalém, que simbolizava a sabedoria, que se virou com respeito para as outras religiões - aquele rei que, enfim, honrou o significado de seu nome. Depois de sua morte Israel foi dividida em duas, começo do declínio que levaria à invasão dos babilônios, depois dos romanos, e à consequente diáspora judaica.

Em seus filmes o romeno Radu Mihaileanu reserva um lugar especial ao legado do rei. Trem da Vida, prêmio do público e da crítica na Mostra de Cinema de São Paulo em 1998, trata de uma vila judia no Leste Europeu que tenta escapar dos nazistas. Shlomo é o nome de um dos habitantes, meio bobo meio louco, que anuncia a chegada dos alemães e que planeja a fuga em direção à Terra Prometida. Shlomo é também o nome do icônico protagonista de Um Herói do Nosso Tempo (Va, Vis et Deviens, 2005), o primeiro longa de cinema de Mihaileanu nestes sete anos. Só que desta vez Shlomo está só - e sua causa não é, digamos, a mais popular dentre os israelenses.

O filme aborda um tema que muita gente desconhece: o esforço dos judeus da Etiópia para alcançar Jerusalém. Sim, existem judeus negros e africanos. São conhecidos como falashas e descendem diretamente de Salomão e da Rainha de Sabá. Por décadas sofreram com a fome, o abandono no continente, a guerra civil, os conflitos tribais, a opressão exercida pelos sudaneses. Em 1984 e 1985 o Mossad, a polícia secreta de Israel, promoveu uma missão especial de nome Operação Moisés. O objetivo: em pouco mais de 24 horas, tirar quase 10 mil falashas do Sudão e transportá-los a Jerusalém.

Acontece que sair da situação sub-humana na África era também um desejo laico. Na hora do embarque, uma mãe etíope ordena que seu filho se finja de judeu para conseguir fugir. A criança se nega, não quer deixá-la, mas acaba entrando no avião. Uma vez em Israel, adota o nome de Shlomo e sente na pele as dificuldades de adaptação, o preconceito, a saudade - mas resiste, sem esquecer as últimas frases que ouviu da mãe, reproduzidas no título original do filme, "vá, veja, transforme-se".

Nos 140 minutos de película acompanhamos três fases na vida de Shlomo (o ator que o interpreta na vida adulta, o etíope Sirak M. Sabahat, é a cara do Seu Jorge...). Em todas elas, transpiram as lições legadas pelo Rei Salomão, em especial a solidariedade com o diferente, um tipo de valor que os israelenses nativos negam aos segregados etíopes. E o menino se transforma. Começa a fazer o bem, a partilhar, a ajudar. O fato de Shlomo aqui ser um judeu falso no sangue mas legítimo em seus ideais não é apenas uma provocação do diretor romeno. Ele está tentando dizer que o judaísmo, na sua porção mais benéfica, mais salomônica, não se herda, mas se aprende.

A questão que o personagem de Scholomo propõe é o que é a identidade de um ser humano, para além do povo judeu. Hoje, temos todos uma identidade específica e profunda, de um lado, que vem da família, da cidade, do país, da cultura em que nascemos e, por outro lado, abraçamos muitas outras identidades. O filme coloca essa questão. Scholomo é cristão, etíope, africano e vai se tornar também judeu, israelense, francófono. Os conflitos atuais no mundo vêm da questão da identidade e da aceitação do outro. O fanatismo mundial, seja muçulmano, cristão ou judaico vem do fato de que não aceitamos o outro, a diferença. Não aceitamos o fato de que nós estamos nos tornando outros.


E o mote do filme não deixa de ser oportuno: comovemo-nos todos com o sofrimento milenar dos judeus, mas e o sofrimento dos africanos?