25 abril 2006

Brasília 18%



Nota: 7

Nelson Pereira dos Santos, que já nos brindou com obras importantes e contemporâneas como Rio 40 Graus, Vidas Secas e Memórias do Cárcere, resolveu desaquecer seu termômetro carioca causticante e nordestino árido pra trazer às telas um compêndio ficcional mediano sobre a corrupta capital brasileira.

O ponto de partida são os bastidores dos escândalos e das histórias mal contadas que aparecem diariamente na mídia. Traz vagamente à tona algo parecido com os contornos que o escândalo político da morte de PC Farias causaram ao país. O renomado médico legista Olavo Bilac (Carlos Alberto Riccelli) funciona como uma espécie de Badan Palhares nesse paralelo. Trabalha em Los Angeles e é convidado pelo IML de Brasília para fazer um laudo sobre a controvertida perícia da identificação de uma ossada, supostamente pertencente à jovem economista desaparecida Eugênia Câmara (Karine Carvalho). Se a perícia confirmar a identidade de Eugênia, ficará provado que ela foi assassinada pelo namorado Augusto dos Anjos (o versátil ator teatral Michel Melamed que, aqui, está literalmente preso e contido), cineasta e última pessoa a vê-la antes do desaparecimento. Os políticos acusados querem que o Augusto permaneça na cadeia, e por isso pressionam o legista para identificar o corpo de Eugênia. Aí entra em jogo a questão ética, misturada a um amontoado de motivações pessoais que entrarão em choque no derradeiro parecer sobre a causa mortis da novilha defunta.

A fininha veia cômica embutida nesse freezer cinematográfico até que promete. Dar aos personagens nomes de protagonistas da literatura é um chiste bem-vindo do diretor. Talvez se trate de uma ironia em relação ao tratamento dado à qualidade do texto do filme. Enquanto que os escritores e poetas buscam a posteridade artística e a perpetuação de suas obras, o recorte folhetinesco típico de notícia sensacionalista de jornal estampa seu cheiro perecível e seu frescor efêmero. Ou então, essa licença poética de se apoderar de identidades literárias conhecidas serve para reforçar a idéia de que o filme, mesmo e apesar de suas nuances baseadas em fatos, nada mais é do que uma obra de ficção, resultado de um processo criativo livre e esquizofrênico do autor.

A porcentagem indicativa do título, de acordo com informações extra-oficiais de releases (ou talvez eu tenha dormido em algum momento explicativo crucial da exibição da película), refere-se tanto à baixa taxa de umidade da cidade quanto ao número de filmes de ficção realizados pelo diretor. Trata-se também de uma anedota subliminar contada por Nelson para ele mesmo. Até aí tudo bem. Nada impede que o autor se utilize à exaustão de elementos cognitivos herméticos como forma de brincar com seu público. O problema é que, nas informações não fornecidas pela assessoria de imprensa da distribuidora do filme, tudo leva a crer que o número 18 do filme diz respeito ao termostato que mede a frigidez cênica predominante. O Aritana Riccelli leva demais a sério a morbidez estática de seu papel. Confunde o dilema pessoal com a falta de expressividade de seu semblante. Exagera em seu olhar que contempla o nada, em busca do desnecessário. Mais uma vez, o cinema brasileiro teima em manter os vícios interpretativos que trocam diálogos por declamações. Tudo é muito falso, sem vida, sem naturalidade. Felizmente, o cineasta evitou a armadilha de tornar o filme datado demais, ligando-o a acontecimentos contemporâneos. O que mais incomoda é, justamente, o quanto a situação retratada tem se mostrado crônica no Brasil.

A idéia de "colar" nomes de vultos literários quase sempre nacionais aos personagens reforça essa atmosfera de irrealidade que os cerca, enquanto, paradoxalmente, o filme se dedica a detalhar uma corrupção que existe menos nos fatos do que nos rostos, nos modos sarcásticos, no hábito de tramar por tramar que caracteriza políticos e assessores (sobretudo assessores). Que ao final ninguém saiba se estamos diante de um filme político, policial ou fantástico não deixa de ser um mérito adicional, que condiz bastante com a imagem que fazemos de Brasília. Com habilidade, Nelson Pereira não permite que o sentido assente e se revele durante 3/4 do filme. Pena que no quarto final este filme de mestre se empenhe tanto em encaminhar o fim da trama. Com isso, a forte ambigüidade criada até ali se dissolve para passar pelo gargalo das convenções.

O diretor disse que o roteiro de seu filme é anterior à corrupção atual no governo Lula, mas disse que fez atualizações antes de filmar. Uma dessas atualizações foi na profissão do maior corrupto da história: "originalmente, era um empreiteiro. No final, ficou sendo o homem da publicidade".

Ao mesmo tempo, Nelson preocupou-se em não ficar parcial com essa atualização. "O que há de novo nesta crise é que a esquerda, que pela primeira vez vai ao poder, pratica exatamente o que os antigos donos do poder praticaram, não todos, mas boa parte", disse.

"Mas acho que consegui recuar o olhar do meu filme de forma que não restrinjo a corrupção a nenhum partido. A corrupção na minha história não é nem da esquerda nem da direita, é do poder. A corrupção não tem ideologia."