O Plano Perfeito
Nota: 7
Dalton Russell (Clive Owen) começa a liberar os reféns de seu arrojado assalto ao banco Manhattan Trust. Como ele vestiu todas as vítimas com o mesmo macacão-e-capuz de seu grupo de ladrões, é difícil saber se quem sai de lá é mesmo um refém ou um bandido disfarçado. Atenção - ele solta mais um. A polícia o cerca, acode, retiram o capuz. "Cuidado, é um árabe!", grita um dos policiais antes de partir para a violência. Nem adianta o inocente bancário (interpretado por Waris Ahluwalia, de A Vida Marinha com Steve Zissou) dizer que não é árabe, mas um indiano sikh. Usa turbante e barba comprida, só pode ser terrorista - é o que todo mundo pensa em Nova York, principalmente a polícia.
É assim, forrado de comentários engajados, que Spike Lee conduz O Plano Perfeito (Inside Man, 2006). A notícia não poderia ser melhor. Significa que o cineasta permanece fiel aos conceitos que esbanjou recentemente em filmes como Bamboozled e A Última Noite. Seja numa comédia de humor negro, num thriller policial ou, desta vez, num comercial filme de assalto, Lee continua fazendo cinema político.
Um filme político de assalto, pois é. Música indiana misturada com hip hop, judeus em fila com mexicanos e orientais, brancos e negros na rixa de sempre, escutas que captam conversas em albanês e precisam desesperadamente de alguém para traduzir esse troço que parece russo. Essa é a Nova York que aparece no cinema como um clichê, o estereótipo do multiculturalismo tolerante, mas que só com diretores como Lee tem suas hipocrisias reveladas. A babel cosmopolita que ele aponta desde Faça a Coisa Certa, de 1989, não é horizontal, politicamente correta, mas vertical, como uma torre mesmo. Em Nova York o contato de raças e etnias se dá por hierarquia e pressão da gravidade.
No caso, evidentemente, os brancos estão no topo (e a cena descrita lá em cima dá a entender que o pobre indiano de turbante é a camada mais baixa da escala). Não é coincidência o sobrenome da personagem de Jodie Foster, Madeline, ser White. Espécie de Mr. Wolf da história, aquela que resolve qualquer problema, é a ela que recorrem os ricaços em perigo - como Arthur Case (Christopher Plummer), dono do banco, assim que fica sabendo do assalto. Logo abaixo desta casta intocável está a lei de fato (ou o que se imagina ser a lei): o detetive Keith Frazier (Denzel Washington), destacado para cuidar do caso, negro dentre uma força policial de ítalo-americanos, afro-americanos, hispano-americanos...
Cabe ao chefe dos ladrões, cujos traços culturais não deixam margem a sabermos de que lado está, quebrar totalmente a hierarquia. E aí está a graça. Política, no sentido mais nuclear do termo, se refere à maneira como as pessoas se relacionam em sociedade, se relacionam com o Estado, com o poder, com os poderosos. Ladrão de banco? Dalton Russell é um ser político em essência (atrás de dinheiro, sim, mas ainda assim político). Está mais para anarcoterrorista, um Codinome V fazendo-se ouvir na insensível Manhattan - mas daí já estou contando coisa demais do filme.
Vale dizer apenas que não assistimos a um tipo de terror espalhafatoso, mas conscientizador. Não de fora para dentro, mas de dentro para fora, cutucando remorsos, alimentando posturas éticas. A culpa era elemento central da transformação de Edward Norton em A Última Noite e continua sendo aqui. O detetive Frazier sente-se culpado, a intocável Sra. White também. Mais uma vez, via subtexto, desponta uma estocada nos fundamentalistas da Casa Branca - não há jeito de ser um paladino se sua alma remoe-se em danação.
Tudo isso fica implícito. Até existem em O Plano Perfeito aquelas pirotecnias de que os fãs de Onze Homens e um Segredo gostam - golpes elaboradíssimos, clímax com tiroteios e explosões - mas elas são inseridas aqui apenas para saciar o vício da platéia. Não têm, a rigor, importância dramática (e isso fica claro na maneira como Lee encaixa tudo isso na narrativa). É possível se entreter sem pensar, pois o timing do diretor é excelente, a tensão não cai um minuto. Mas o que vale na trama é a reflexão.
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