06 abril 2006

A Máquina



Nota: 7

Até esta semana, o cinema brasileiro tinha uma regra para a qual não existia exceção: filmes em que o nome de Diler Trindade constasse dos créditos seriam ruins, toscos, recheados de cenas que arrancavam de boa parte da platéia o clássico "ai, não!". Com a estréia de A Máquina, o moço (que já classificou o próprio trabalho de "cinema mortadela") finalmente poderá exibir para os amigos e para a família algo mais do que produções duvidosas com recordes de bilheteria. Depois de todos os milhares de caracteres ácidos dedicados às franquias de Xuxa, Renato Aragão e Padre Marcelo Rossi e das bordoadas distribuídas aos recentes Coisa de Mulher e Dom, é chegada a hora de alguns elogios.

A história adaptada do lindo e envolvente livro homônimo de Adriana Falcão é tratada com o respeito que merece. Ninguém se atreveu a "novelizar" os diálogos ou partes do texto com simplificações. As participações especiais — uma das marcas registradas da Diler Produções — foram criteriosamente selecionadas e nenhuma pseudo-celebridade escapulida de uma das edições do Big Brother aparece para arruinar a festa. Até mesmo as locações em estúdio, que tantas vezes nos fizeram sentir saudade dos cenários de papelão das festinhas de fim de ano da pré-escola, trabalham a favor da trama. A cidade imaginária de Nordestina, onde (nas palavras do livro) se desenrola "esta fábula sobre o amor e o tempo", é retratada de maneira teatral, com um fantástico trabalho de iluminação desenvolvido pelo mestre Walter Carvalho.

Dirigido pelo marido da escritora, João Falcão, o filme fala do amor de Antonio por Karina. Muito jovens e sonhadores, os dois têm suas vidas marcadas pela partida de pessoas queridas: a mãe de Karina (vivida por Mariana Ximenes) e muitos dos 13 irmãos de Antonio (representado pelo excelente Gustavo Falcão). Na verdade, ninguém quer ficar em Nordestina, que se separa das maravilhas do mundo que não existem por ali apenas por uma viagem de van. "Se palavra gastasse, duvido que tivesse sobrado algum adeus em Nordestina", diz o narrador, numa referência à van que, todas as semanas, chega vazia e parte lotada — carregando os que se vão e também os sonhos de quem fica.

Os de Karina se parecem com os da maioria das moças do interior: ser atriz de novela, bem longe dali. Os de Antonio são só os de satisfazer todas as vontades de Karina. É por isso que, mesmo sem grande jeito para a coisa, ensaia cenas de novela com ela todas as tardes, ajudando a prepará-la para a fama que virá. Quando ela se cansa de esperar, o apaixonado não hesita: se é o mundo que ela quer, o mundo ele vai buscar. E, como bom migrante, o mais longe que consegue chegar é na televisão. Num desses programas de atrações bizarras, promete viajar para o futuro e melhorar o mundo para sua amada viver mais feliz nele. Diante da descrença do apresentador, oferece em troca a própria vida que será tirada pela tal máquina do título, caso ele venha a falhar.

A simplicidade e a singeleza são os grandes méritos da história, que fica ainda mais atraente graças ao poder único que o cinema tem de estimular a fantasia. Para apreciar o filme, é necessário guardar o cinismo tipicamente adulto no bolso mais fundo que encontrar e se deixar levar como nos tempos em que, ainda sem saber ler direito, nos deixávamos fascinar pelas histórias contadas antes de dormir. Somente nesse espírito será possível deixar 100% para lá as duas ou três escorregadelas que a fita dá. Como na cena em que Mariana Ximenes finge pedalar uma bicicleta e, num dos piores falsetes de todos os tempos, pensa cantar.

Esqueça. Concentre-se na destreza com que os roteiristas armam jogos de palavras, num elogio à língua portuguesa. Ria também com a interpretação propositadamente afetada que Wagner Moura (de rabo de cavalo e paletó laminado) faz do apresentador de TV. Delicie-se com a música inédita de Chico Buarque e com a trilha sonora competentíssima armada pelo DJ Dolores. O filme não é um exemplo de bom cinema, pois temos produções infinitamente superiores, mas o filme, como entretenimento, da conta do recado. São poucas as oportunidades de deleite que o cinema brasileiro nos dá. Há que aproveitá-los! Quem sabe, com um bom volume de ingressos vendidos, Diler finalmente se convença que o espectador brasileiro troca sim a mediocridade da ‘mortadelazinha’ por sabores mais complexos. E assim, nos dê novas produções capazes de honrar a aposta da revista americana Variety que, em 2003, o apontou como um dos 10 nomes mais promissores do cinema mundial. Vamos ver...