Teorema - Pasolini (1968)
Nota: 8,5
Teorema é um dos filmes clássicos do mestre do cinema italiano, Píer Paolo Pasolini. Produzida em 1968, roteiro (e depois livro) do próprio Pasolini, expressa uma perspectiva particular da crise estrutural do capital a partir de uma de suas principais instâncias sócio-reprodutivas: a família. O que Pasolini nos apresenta é o relato de dissolução de uma família burguesa a partir da chegada de um misterioso hóspede. É a representação estética da crise de reprodução social do capital a partir de um subgênero do cinema: o drama de família (por exemplo, só na década passada, podemos destacar: Beleza Americana, Festa em Família, Tempestade de Gelo, Felicidade).
Como grupo social primordial, a família é uma das mais importantes instâncias sócio-reprodutivas do sistema do capital como forma de metabolismo societário. A partir da crise orgânica do capital, ela tende a dissolver-se ou a assumir uma forma crítica. Na verdade, o seu drama interior é o drama da reprodução do sistema sócio-metabólico do capital. O cinema soube tratar disso com desenvoltura, principalmente a partir da última metade da década de 1960. Em Teorema, Pasolini trata de um processo de crise estrutural que ainda estava em seus primórdios, mas que ele soube apreender com genialidade (de certo modo, é a partir de meados de 1970 que se desenvolve a crise estrutural do capital com múltiplos desdobramentos na sociabilidade burguesa). Em Teorema, o drama de família é o próprio drama do esgotamento da sociabilidade burguesa.
O filme trata de um rico industrial de Milão, na Itália, que hospeda em sua mansão um rapaz, representado por Terence Stamp (não consta o nome do personagem). Aos poucos o estranho muda para sempre a vida de todos do lar, da empregada à matrona. De fato, a chegada do hóspede marca o inicio da degradação da família burguesa, apesar de que as condições internas da dissolução dos laços familiares já estavam pressupostas. O que o estranho hóspede fez foi apenas catalizar o processo de dissolução familiar. Inclusive, teorema significa, segundo o Dicionário Aurélio, uma “proposição que, para ser admitida ou se tornar evidente, necessita de demonstração.” Ora, a mediação-que-demonstra o vazio profundo da interioridade do mundo burguês é o personagem representado por Terence Stamp. Cada personagem membro da mansão é atraído irresistivelmente pela presença carismática do hóspede, assumindo, a partir daí, para si, uma nova personalidade.
É como se o hospede contribuísse para o desvelamento (e explicitação), em cada personalidade, de um conteúdo latente, reprimido, que, ao se exteriorizar, transfigurasse (e implodisse) o papel social de cada personagem - a empregada Emilia, o filho Pietro, a filha Odetta, a matriarca Lucia (representada por Silvana Mangano) e inclusive Paolo, o pai, industrial de Milão, um figura passiva e ausente da cena familiar. Deste modo, Teorema é um drama familiar que expressa, em si, de forma alegórica, a tragédia da sociabilidade burguesa em crise terminal. É a partir da presença – parousia – do hóspede misterioso, que cada personagem nega (e afirma, ao mesmo tempo) a si próprio.
A figura do hóspede é uma representação alegórica, um quase-Messias, cuja passagem pelo espaço familiar anuncia o que estava pressuposto: a dissolução da ordem do mundo burguês. É como um Cristo que veio trazer a desordem e não a ordem para o mundo. Seria Teorema uma versão profana de um outro filme de Pasolini, O Evangelho Segundo São Mateus (de 1964)? Inclusive, tanto a chegada do hóspede, como sua partida, é anunciada por um carteiro quase-angelical, chamado Ângelo (de Anjo?), sorridente, quase um anjo caído, cuja simpatia se contrasta com a sisudez e circunspeção da empregada que o recepciona. Pasolini é um diretor (e escritor) genial e maldito, pois profaniza algo que é caro à tradição conservadora italiana, o imaginário católico (o nome do pai em Teorema é Paulo e do filho, Pedro, e da mãe, Lucia...). Mas ele se apropria desse imaginário barroco para traduzir a crise da sociabilidade burguesa, sua venalidade e barbárie interior.
Pasolini trabalha com alegorias: a dissolução lenta da família é representada pela erosão continua de um terreno arenoso, o deserto que o industrial Paolo ira trilhar, no final do filme. O ambiente da mansão é simples, vazio, expressando a banalidade da existência burguesa. A absoluta incapacidade de comunicação no mundo burguês, do fetichismo das mercadorias, é representada pela relação silenciosa dos personagens da família. Não existe diálogo entre eles. A única relação que existe entre os personagens é consigo mesmo, com seus papéis e impostações de classe. O hóspede misterioso é um jovem regatado, também quase-angelical, e que vive imerso em sua leitura de Rimbaud.
O hóspede implode tais papeis e impostações sociais dos membros da família: o filho assume seu lado artístico; a filha Odetta, jovem introvertida, aficcionada pelo pai e pelos valores que a família representa, descobre o outro lado da vida; a matrona Lucia encontra no hóspede um escape para sua monotonia sexual; a empregada encontra no hóspede o verdadeiro senhor de seus desejos reprimidos e o industrial Paolo, seu canal de interlocução interior. O desejo na narrativa de Teorema é subversivo, pois o que cada personagem descobre é uma dimensão oculta do desejo, reprimida pelas relações sociais burguesas. É a projeção do desejo que expõe (e decompõe) a interioridade de cada um. O mediador do desejo reprimido é o hóspede. É a antítese que nega a personalidade-fetiche de cada membro da família burguesa.
O drama da família que Pasolini nos apresenta é posto no interior de uma perspectiva de classe. Pasolini é um diretor de visão de mundo marxista. A dissolução da família é a dissolução da hegemonia burguesa na Itália, de fundo católica; da sua incapacidade de conduzir a reprodução social, representada pelo elo orgânico da família. Em Teorema, Pasolini se utiliza bastante de alegorias. Quando Paolo, o industrial, renuncia à fábrica, temos a verdadeira representação da incapacidade hegemônica e produtiva da burguesia.
Emilia, a empregada da mansão burguesa é a personagem proletária do drama da família. Apesar de proletária, ela faz parte da tragédia burguesa. É um elemento marginal (e trágico) da dissolução da ordem sócio-metabólica do capital. Ela é o primeiro personagem da família a ser transfigurado pela presença do hospede. É atraída irresistivelmente por ele. Temendo não poder atrair o jovem hóspede, tenta suicido, mas é salva (e amada) por ele. Depois que o jovem hóspede vai embora, a empregada retorna à cidade de origem, uma pequena localidade rural, e torna-se uma figura ascética, alimentando-se apenas de urtigas, absolutamente incapaz de se reencontrar com a vida normal, procurando expiar seu pecado: ter feito amor com o hóspede misterioso. Enfim, Emilia sacrifica a sua individualidade, colocando-a como mediação mística com a figura transcendente do misterioso hóspede. Finalmente, ela se enterra viva, após abandonar a idéia de retorno do hóspede misterioso.
Se a empregada Emilia, o elo proletário do ambiente burguês, sacrifica sua individualidade, os demais membros da família burguesa, após a partida do hóspede, afirmam, à exaustão, a sua individualidade. Por exemplo, o jovem filho do industrial, Pietro, descobre seu lado artístico e sua homossexualidade latente. Na verdade, Pietro rompe com a unilateralidade estética da vida burguesa. A simples presença do hóspede desvela para ele, a diversidade da sensualidade humana. Torna-se um pintor de figuras abstratas, ininteligíveis, mas que representam sua vida autentica (a autenticidade de uma vida inautêntica). Pietro é a representação do artista, na perspectiva de Pasolini. A arte abstrata de Pietro é a representação de um mundo burguês vazio. Cabe a Pietro ser a representação estética do vazio burguês.
De fato, após a catarse familiar, cada personagem busca uma vida autêntica possível. Se Pietro busca uma saída estética, Emilia, a empregada, irá buscar uma via sacra, de uma sacralidade ascética, que não deixa de ser uma busca de autenticidade. Mas é uma autenticidade estranhada posta nos limites de um desejo insurgente, mas obliterado.. A filha do industrial, Odetta, fica emudecida numa paralisia histérica e decide, tal como a empregada Emilia, isolar-se na sua interioridade devassada. Mas, enquanto a loucura de Emilia possui um sentido ascético, quase de caráter místico; a loucura de Odetta a conduz a um isolamento total. É internada num manicômio.
O que percebemos é que, ao partir, o hóspede deixa um vazio terrível na interioridade de cada personagem-membro da família. A matrona da família, Lucia, rompendo com o principio da fidelidade conjugal, tão cara à imagem católica da matrona familiar, busca em aventuras com jovens rapazes as sensações perdidas com o hospede e que preenchiam um vazio sexual (e afetivo). Apesar disso, ela vive uma tristeza profunda.
O industrial Paolo, paterfamilias, dono dos meios de produção, decide, num gesto insano, abandonar o seu papel de industrial, e como um São Francisco de Assis, se despe em plena Estação Central de Milão, renunciando a tudo e se põe a percorrer, sem direção, uma área deserta. Perde a própria sua identidade social. Tal como os demais personagens da família burguesa, que, diante da irrupção da partida do hóspede, reencontram de forma transfigurada, sua individualidade, Paolo só consegue reencontrar sua individualidade, perdendo-a enquanto persona do capital.
Existe, é claro, um paralelo entre o destino de Emilia, a empregada, e o do burguês Paolo. Enquanto que, quando Emilia se enterra viva sugere, de fato, a supressão de uma individualidade angustiada; o despojamento insano de Paolo é meramente a forma possível do burguês afirmar uma “individualidade” inexistente. O desnudamento do burguês é a representação de sua incapacidade hegemônica diante do processo bárbaro do capital. É a negação do capitalista (como suporte) pelo capital. E sua caminhada sem direção pelo árido deserto, ao som da Réquiem de Mozart, sugere um zumbi, um morto-vivo, cuja nudez expressa a incapacidade de uma identidade social.
Na crise estrutural do capital, a burguesia como “classe produtora” torna-se incapaz de encontrar a representação de si mesma. Logo no inicio do filme, num diálogo entre operários, surge a pergunta se todos poderiam se tornar burgueses, patrões de si mesmo. É a idéia da própria dissolução de uma identidade de classe. Deste modo, Teorema, de Píer Paolo Pasolini, é um filme visionário, pois, em 1968, conseguiu apreender o que, diante da lógica da financeirização, é a verdade do capitalismo global: a burguesia, como “classe produtiva”, perde sua identidade social, está despedia de si, vagando pelo deserto. O capital financeiro, ao criar a ilusão de que todos podem ser “burgueses”, ao possuírem ações de empresas, contribui para a sintomatologia de uma crise estrutural do capital e de suas representações de classe, inclusive, de classe produtiva (a burguesia).
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