Ray
Nota: 7
As biografias são o último refúgio de uma Hollywood em crise criativa. É o que mostra a safra de oscarizáveis de 2004 - Howard Hugues, Ray Charles, J.M. Barrie, Alfred Kinsey, Cole Porter e Paul Rusesabagina (de Hotel Rwanda) são todos personagens baseados em pessoas de verdade. Aliás, os grandes sucessos de bilheteria do ano passado também seguiram esta linha: Jesus Cristo e George W. Bush. Ironicamente, trata-se de um retrato da falência. A fábrica que cresceu substituindo a realidade por sonhos já não consegue criar uma ficção melhor que a vida levada por gente de carne e osso.
Não que a existência de Ray Charles Robinson tenha sido desinteressante. Muito pelo contrário. O cantor, pianista e compositor, artífice da mistura entre gospel e R&B na música norte-americana, falecido em 2004, soube viver intensamente e lutar por sua carreira - para que nunca ninguém o transformasse num "aleijado" por causa da sua cegueira, ou num marginalizado por causa de sua cor, conforme exigia a sua mãe igualmente contestadora. O edificante Ray (2004), de Taylor Hackford, se concentra nessa batalha contra o preconceito físico e moral.
Mais do que interpretar, Jamie Foxx incorpora Ray. O ator, que já tinha formação musical, aprendeu a tocar as composições do ídolo, "cegou-se" com próteses durante as filmagens para parecer mais crível. Os trejeitos e a voz são idênticos - o que o gabarita, segundo a lógica da indústria, como favorito ao Oscar de Melhor Ator. E isso legimita o filme a ser mais um painel oficialesco do biografado, um rasante sobre duas décadas de música, do que uma análise das suas idiossincrasias. É como se o próprio Ray Charles aparecesse ali para contar a sua história, com todos os lapsos de memória e esquivas sobre polêmicas a que tem direito.
E polêmica é o que não falta, principalmente na segunda metade de um filme que cresce aos poucos. Como um rolling stone, Ray se vicia em heróina, coleciona garotas e, mesmo depois de casado, pouco fica em casa para cuidar da família. Vale muito a pena ver como nascem canções célebres. "Hit the road Jack", por exemplo, nada mais é que o desabafo de uma backing vocal grávida diante da negligência de Ray.
Os excessos e o tino para o sucesso rendem um bom princípio de conflito. Educado desde sempre a não se deixar enganar por ninguém, Ray se desembaraça de ex-amigos e ex-amantes sem constrangimento. O filme esboça essa questão quando o cantor deixa a gravadora Atlantic que o criou em busca de um contrato melhor. E a escancara de vez quando o já consagrado ídolo demite Jeff, o fiel escudeiro de uma carreira inteira. Até que ponto isso não compromete o seu caráter e, em última análise, a integridade da sua música?
O problema é que o apagado diretor Hackford (Prova de Vida, Advogado do diabo) não tem gás para levar essa discussão de fundo investigativo ao fim - como fez, por exemplo, Clint Eastwood no superior Bird (1988), a biografia de Charlie Parker. Aqui, previsivelmente, a luta contra as drogas monopoliza o enredo e, com a sua solução feliz, evaporam-se todos os outros conflitos de ordem moral. Mais do que apaziguador, esse final é evasivo. Afinal, numa biografia oficial, não dá para ficar cutucando feridas quando o que importa é a homenagem, não é mesmo?
Mas peraí... Não é justamente por ser burocrática demais, solene demais, que Hollywood está à míngua?
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