17 fevereiro 2005

Menina de Ouro



Nota: 8

O treinador de boxe Frankie freqüenta a missa toda semana, mas não é exatamente um devoto. Vai à igreja para atazanar o padre com insinuações capciosas sobre a Imaculada Concepção e outras crenças. Como contra-golpe, é questionado se escreveu à filha que não vê há anos. O treinador se esquiva fácil, diz que sim, sorrindo. Mais de uma vez o pároco indaga por que aquele pagão continua mentindo e o aborrecendo. Mas quando, num momento grave de Menina de ouro (Million dollar baby, 2004), Frankie realmente precisa de respostas, é a igreja que ele procura angustiado.

Em resumo, ele duvida de dogmas consagrados mas acredita no poder da expurgação. Essa é a síntese não apenas deste, mas de boa parte dos personagens vividos nos últimos anos por Clint Eastwood. O tempo do vingador invencível Dirty Harry já se foi. Pode ser a idade chegando, pode ser a consciência de que a "América" não é o modelo de justiça que se imaginava, mas o fato é que os heróis de Eastwood agora se incomodam com a mortalidade, com o fardo da obrigação de vencer e, principalmente, com o sentimento de culpa.

Afinal, o que une o pistoleiro de Os Imperdoáveis (1992), o detetive de Dívida de sangue (2002) e os amigos de infância de Sobre meninos e lobos (2003) é nada menos que o remorso. E, nesse aspecto, o solitário e atormentado Frankie é o mais formidável e complexo personagem já vivido por Eastwood. Menina de ouro trata do embate da caipira Maggie (Hilary Swank) contra o conformismo e contra o preconceito do treinador machão que a princípio não quer ajudá-la a iniciar na carreira de pugilista. Mas é o drama de Frankie que dá ao filme o seu misterioso poder de comoção.

Como diretor, Eastwood evolui visivelmente. Consegue pensar cada plano, cada tom dramático no uso de sombra e luz, sem parecer acadêmico ou artificial. Merece bater Martin Scorsese no Oscar de Melhor Direção, assim como Menina de ouro merece vencer todas as sete categorias em que concorre. Tudo bem que ele exagera ao vilanizar as pugilistas adversárias de Maggie - um erro primário que periga jogar o filme no simplismo - mas os acertos do cineasta são maiores que os deslizes.

Repare, por exemplo, no seu retrato ao mesmo tempo carinhoso e implacável dos costumes e da gente do Sul dos EUA - o personagem Danger, do ótimo ator Jay Baruchel, com o seu sotaque carregado e a sua autoconfiança desmedida, é um achado raríssimo. A coragem de Eastwood para desenvolver situações pesadíssimas, tanto visual quanto metaforicamente, como a da assinatura do contrato no hospital, é coisa que normalmente não se vê numa indústria pudica como a norte-americana.

Hollywood já deu ao público obras-primas sobre o boxe, como Touro indomável (1980), do próprio Scorsese. São clássicos justamente por pegar emprestado o esporte como mote para falar da vida. E por mais que pareça um filme tradicional, feijão-com-arroz, Menina de ouro mostra o seu valor autoral nessas entrelinhas. Saber a hora de resistir e também a hora de baixar a guarda é a sua mais valiosa lição para o mundo real.